segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A CIDADE DE RECIFE


O Recife, capital do Nordeste não é cidade duma só cor, nem dum só cheiro, como muitas encontradas por Kipling em suas viagens, que depois as podia evocar admiravelmente num só adjetivo, expressão dum estado sensorial. Longe disto.

Por seu arranjo arquitetônico, pela tonalidade própria de cada uma de suas ruas, o Recife é desconcertante, como unidade urbana, impossível mesmo de se caracterizar. Casas de todos os estilos. Contrastes violentos nas cores gritantes das fachadas. Cidade feita de manchas locais diferentes, não há por onde se possa apanhar na fisionomia das casas o tom predominante da alma da cidade.

A Praça Rio Branco faz mesmo lembrar Hamburgo. Pois, não é mesmo um assombro pro viajante que vem da Europa! Quem diria que desse outro lado do Atlântico, no Brasil, país de mestiços e bem nos trópicos, o viajante iria topar com um espetáculo destes, logo no primeiro porto que o navio toca. Espetáculo típico de cidade européia e das grandes. Salta o viajante do paquete, desce ao longo dos armazéns e desemboca mesmo na praça monumental. Cinco avenidas se abrindo em leque, com magníficos estabelecimentos comerciais. Ruas largas, limpas, retas, com as filas inquebrantáveis dos edifícios uniformemente solenes. Bancos, telégrafos, companhia de vapores... Prédios asseados, com um ar de disciplina e riqueza. De recato mesmo e de desconfiança européias. Os homens de poucas palavras, tratando dos seus negócios. Fisionomia inteiramente européia dessas bonitas ruas. É verdade que são curtas, curtinhas mesmo, se acabando logo ali adiante na beira do rio. Mas quando elas se acabam, lá vem as pontes lançadas elegantemente sobre o Capibaribe. E, depois outras praças: da “Independência” e da “República” – cm seus palácios e palacetes – do Governo, da Justiça, do Diário de Pernambuco, todos feios, feiíssimos, mas também monumentais como os das grandes cidades européias.

As pontes nos trazem ao Bairro de “Santo Antônio”, das repartições públicas, das casas de modas, do comércio a varejo, dos cinemas e das confeitarias, e da elegância da Rua Nova, cheia de casas velhas. Ainda fisionomia européia, mas não a Paris, nem a Hamburgo, e sim, a Lisboa, num mais à vontade muito português. Casarões de três, quatro andares, pregados a meia água só de andar térreo. O Bairro da “Boa Vista” continua com magros sobrados de varandas de ferro espremidos pela rua da Imperatriz abaixo.

Já “São José” tem um aspecto quase suburbano, inteiramente diferente, com suas ruas atropeladas, enoveladas, com suas casas em promiscuidade, com seus pequenos funcionários públicos de vida apertada para parecer classe média, morando em casinha de porta e janela, e com seu comércio de artigos baratos, com preços apregoados nas portas por árabes e turcos. Ruas estreitas, becos, travessas. Confusão. O aperto da rua Direita e da rua do Livramento. Cenário oriental. Mercado de miudezas e de chitas vistosas pregadas nas fachadas das casas de nomes ingenuamente deliciosos: “A Simpatia”, “A Magnólia”, etc.

“Dois Irmãos”, “Madalena”, bairros antigos, históricos, tradicionais. Velhas igrejas barrocas, recatadas, porém, sem o excesso de ornamentação que em geral o estilo comporta, como por exemplo, nas ruas do México, como uma catedral que em Puebla e tive a impressão de momento, que um pé de vento ia desmanchar o rendilhado da fachada, de tão rendilhado que era. As de Recife, são mais pobres e mais discretas, porém, de uma graça e doçura bem espirituais. Bairros de antigas residências patriarcais, dos hospitaleiros senhores de engenho. Casas de trinta quartos, com oito, dez janelas de frente.

“Casa Amarela”, bairro de residências novas, algumas ostensivamente ricas e de mau gosto, onde moram alguns usineiros enriquecidos de repente, outras bonitinhas, algumas interessantes, bem acabadas. Cor universal.

“Afogados”, “Pina”, “Santo Amaro”, zonas dos mangues, dos “mocambos” , dos operários, dos sem profissão, dos inadaptados, dos que desceram do sertão na fome e não puderam vencer na cidade, dos rebelados e dos conformados – dos vencidos. Zona dos “mocambos” – cidade aquática – com casas de barro batido a sopapo, telhados de capim, de palha, de folhas de flandres. Cumbucas negras boiando nas águas. Mocambos – verdadeira senzala remanescente, fracionada em torno as Casas Grandes da Veneza Americana. Poesia primitiva de negros e mestiços fazendo xangô e cantando samba. Fisionomia africana.

Recife é todo esse mosaico de cores, de cheiros e de sons. Nesse desadorado caos urbano, reflexo confuso da fusão violenta de várias expressões culturais, só uma coisa tende a dar um sentido estético próprio à cidade do Recife. A absorver e a anular os efeitos dos contrastes desnorteadores, dando um selo inconfundível à cidade. É a paisagem natural que a envolve. O seu mundo circundante, com seus acidentes geográficos e sua atmosfera sempre em vibração, varada em todos os sentidos pelos reflexos intensos da luz sobre as águas.

Este ar e este solo onde assenta a cidade do Recife, e donde a cidade tira toda a vida de sua fisionomia, são efeitos exclusivos dos rios que a banham. Do Capibaribe e do Beberibe. Por toda a cidade eles correm em zigue zague, passando aqui, acolá, debaixo duma ponte, dando um ar de doçura a cidade. Cidade de paisagem doce, em pleno nordeste adusto.

Herodoto dizia que o Egito era um dom do Nilo. Tudo lá era fruto das águas: terra, economia e religião. Também o Recife – essa pitoresca cidade, discreta e envolvente – é um dom dos seus rios. Das águas dos seus rios encontrando as águas do mar, formando bancos de pedras – recifes. Rios que deram origem à cidade e foram importantes fatores de sua história. Rios nativistas, como os chamou Artur Orlando, que ajudaram a expulsar da pátria o invasor holandês. Rios valentes, aos quais o caboclo do nordeste empresta em sua fantasia, uma alma impetuosa e violenta, de quem nasce predestinado à aventura. Alma igual à do próprio caboclo nordestino. Rios que vem de muito longe, disfarçando no acaso de seus coleios, a ânsia de se encontrarem.

O Capibaribe que vem de mais longe, da serra dos Jacararás, nos Cariris Velhos, desce aos trancos por cima das pedras, encontrando cidades e povoações, contando simbolicamente todas as peripécias da vida do sertão.

Ora num tom humilde, quando é tempo de seca e de necessidade, escorrendo pelo meio do leito ardente seu escasso fiozinho d’água, muito em silêncio, com medo que ao menor ruído sejam atraídas as bocas sedentas para chupá-lo até à última gota. Ora num tom de pabulagem, transbordando das margens a opulência das suas águas ruidosas, relatando a abundância das terras onde as chuvas fertilizantes se derramaram copiosamente. Na descida vão as águas refletindo sempre paisagens diferentes. Cada vez mais acolhedoras. O duro leito de pedras transforma-se num fofo lençol de areia e a paisagem árida do sertão com cactos eriçados de espinhos e folhas afiadas das macambiras, vai se amolecendo em aspectos mais doces, com tons de verde úmido e carregado, de vegetação de brejo. As águas ansiosas passam, porém, indiferentes à paisagem, indiferentes aos encontros com os pequenos afluentes generosos que trazem suas águas para ajudar o rio a descer, nessas terras do nordeste onde se ajuda a tudo e a todos. Afluentes humildes, mas que também contam suas histórias: Ribeiro de Arrôs, Ribeiro do Urubu, da Grota e da Fenda, do Mel e da Cachaça, do Paú da Arara, da Pedra Tapada e não sei mais donde.

O Capibaribe continua descendo, surdo a essas histórias, cego ao regionalismo das paisagens, na ânsia infinita de encontrar o outro fio de fama – Cadê o Beberibe? Aparecem mais afluentes modestinhos: o Camarajibe, o Monteiro, o Tejipió, mas, cadê o Beberibe? Já dentro da cidade, o Capibaribe lança um braço para um lado, segue para outro lado, fazendo um cerco pro Beberibe não escapar. Alcança-o logo adiante, e aí os dois rios se entrelaçam, se confundem e afogam nas suas águas misturadas, esse prazer profundo das ânsias cansadas pelas distâncias percorridas. Dois aventureiros de fama que se juntam com satisfação para contar suas aventuras. No ímpeto do abraço bárbaro, as águas se avolumam, se espalham e tontos da alegria do encontro, os rios perdem o rumo, saem embriagados a cambalear pelos baixios, a se esfrangalhar pelos charcos, a se deitar pelos remansos, formando, nessa boemia de suas águas, as ilhas, os canais, os mangues, os paús, onde assenta esta saborosa cidade do Recife, resumo das aventuras heróicas que os rios contaram e continuam contando, ao se encontrarem numa praia do Atlântico.

Recife, telhados, torres e cúpulas. Ondulações. Ruínas históricas. Lendas portuguesas, holandesas e afro-brasileiras. Recife, azulejo lavado de luz, à sombra dos coqueiros, boiando nas águas.

 *Josué de Castro – Documentário do Nordeste – Livraria José Olympio Editora – 1937.

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