Duas aulas proferidas pela da prof. Zuleide Faria de Mello na Universidade de Brasília, 08.11.2003. Curso de extensão: Arquitetura e Marxismo.
Transcrição: Frank Svensson
Vejam
o que Marx faz:
As novelas são absoluta
reprodução de uma sociedade do não trabalho. Interessante não é? Mas vejam só
porque que eu sou marxista. Só para chegar aqui. Porque vejam, o que o Marx
faz? Porque até agora eu falei da Grécia. Não falei de outra coisa. Marx em
meados do século XIX é a rigor discípulo de Hegel. Fazia parte de um grupo
chamado hegelianos de esquerda. E os hegelianos de esquerda eram filósofos
alemães. Queriam, segundo Marx, produzir imensas transformações ao nível das ideias
abstratas. Quando Marx escreve A Ideologia Alemã, começa dizendo de forma
absolutamente sarcástica que naquele momento na Alemanha estava ocorrendo
profundas transformações. Os filósofos alemães estavam transformando o mundo.
Falam disso e falam daquilo e ele diz que todas essas transformações se dão ao
nível do pensamento. Mas os filósofos alemães acreditam que a sua revolução
deixa no chinelo a revolução francesa embora não saia da estrutura de pensar.
Nenhum contato com a realidade do mundo.
Aí então é que Marx se
propõe a crítica da filosofia clássica. E vai lá para a antiga Grécia. Marx era
reconhecidamente da área de filosofia. Enveredou para a área da economia, da
historia da política, mas era originalmente da área de filosofia. A tese dele
foi A diferença da Natureza entre Demócrito e Epicuro, dois pré-socráticos.
Demócrito já fala um pouco da teoria dos átomos, e o Epicuro avança e Marx
analisa esta diferença entre o enfoque da teoria atômica de Demócrito e de
Epicuro. Ele é um filósofo alemão. Ele, quando começa a escrever A Ideologia Alemã, presta primeiro o
devido louvor a Hegel. Porque reconhece que o Hegel avançou na teoria do
conhecimento ao resgatar pelo menos em parte a dialética que se produziu na
Grécia, embora não a dialética pré-socrática, mas a dialética platônica.
Marx diz uma coisa que
também parece um jogo de palavras. Ele afirma que Hegel colocou a dialética de
cabeça para baixo e se há que repô-la sobre seus próprios pés. Se a gente não
se der o trabalho de saber o que isso significa, acha que ele bebeu uma
cervejinha a mais porque ele bebia cerveja. Bebeu uma cervejinha a mais e
começou a fazer jogo de palavras. Mas não é isso. Marx retoma ipsis-literis os princípios de Hegel mas
acrescenta: mas Hegel colocou a dialética
de cabeça para baixo. E aí se a gente não tiver cuidado, dá um nó, está
tudo certinho, mas está de cabeça para baixo, então não está certinho.
O que é que Marx vai
dizer. Que os princípios da dialética estão corretos. E quais são os princípios
básicos da dialética em Hegel? A luta
dos contrários, o choque e a luta dos contrários; a transformação da quantidade em qualidade e a negação da negação. Esses são os três princípios gerais da
dialética de Hegel e de Marx também. Mas quando Hegel retoma esses princípios
da dialética como conteúdo idealista de que o mundo é uma mera projeção de um
outro mundo, ele diz: aí o Hegel se perdeu e colocou a dialética de cabeça para
baixo. Aí então ele se propôs resgatar a dialética na sua origem epistemológica
que é, na verdade, a dialética
materialista.
Daí Marx produzir dois
grandes ramos do conhecimento: o materialismo dialético que diz respeito a
todas as formas de pensar; e o materialismo histórico. Porque? Porque Marx se
propõe entender afinal o que é o capitalismo e a revolução do capital; como
surgiu este fenômeno histórico-social. Como é que o capital se reproduz e não
mais do que de repente uns ficam muito ricos e outros muito pobres. Ele quer
entender isso. Aliás, ele diz quando ele acaba de escrever o livro A Ideologia Alemã, o qual se perdeu
durante muitos anos: eu quis acertar as
contas comigo mesmo e ofereço esse livro à crítica roedora dos ratos. Botou
numa gaveta e parece que só em 1932 descobriram os manuscritos de A Ideologia Alemã.
Quando Marx quer
entender o que o capitalismo e suas leis históricas são, ele vai pegar o
materialismo dialético aplicando a leitura histórica e à partir daí ele se dá
conta de uma série de questões e com este ramo que brota do materialismo
dialético, que ele chama de materialismo histórico, uma nova historiografia.
Marx faz aí um corte epistemológico. Todos sabem naturalmente o que é um corte
epistemológico. Eu não vou nem explicar, pois tenho certeza que todo mundo aqui
sabe. Sabem? Então fala aí (Thiago fala
mas eu não consigo ouvir o que ele
disse)
Porque que os gregos
criam alguns conceitos que chegam até nós? Quando a gente fala que se faz um
corte epistemológico se faz um corte da teoria do conhecimento. Como a gnose
que é a teoria da origem. Da gênese, enfim, da reprodução da vida. Só para a
gente se situar de vez nesta questão: na antiga Grécia, Platão, por exemplo, em
sua obra A República, uma palavra composta da palavra grega respública, rés =
coisa e pública = pública mesmo. Portanto república é coisa pública, nem mais
nem menos. A gente está tentando, fazendo uma força danada para ver se a
república vira coisa pública não é verdade? Até hoje não tem sido. Mas a gente
está ai tentando mais um tempo.
A república, diz
Platão, é a mais alta forma de governo. Por definição sim. Às vezes na prática
não bate bem, mas enfim. Platão também cria o conceito de cidadania. Isso que a
gente briga por hoje em dia: A gente precisa ser cidadão. Continuamos querendo
também. Nós queremos a coisa pública. Queremos a cidadania. Brigando por isso.
É verdade que tem uns três mil anos já. Mas não há de ser nada. E democracia.
demo = povo e cracia = governo. Outra coisa fantástica. Governo do povo. E aí
repetimos todos: Não é verdade? Não, vivemos num sistema democrático, a gente
vota e reduzimos a democracia a uma mera representação eleitoral. Isso com
muito esforço.
Então vejam. A gente
enche a boca e diz: eu sou um democrata, mas o fulano não é. O Fidel não é um
democrata, mas que coisa. O Bush diz: tem que mudar; não quer saber, vivo ou
morto tem que mudar, para instaurar a democracia, a liberdade em Cuba. Como no Iraque. Bush está dizendo
que a quantidade de atentados no Iraque é contra a liberdade que os americanos
estão implantando lá. Viva a liberdade! E democracia é governo do povo. Aí, a
gente repete: somos democratas, agente vota, eleição direta, ta-ra-rá, ta-ra-rá. Mas, creio eu, creio eu, que de um modo geral
as pessoas não param para entender ou perguntar o que é afinal democracia?
Se a gente não precisa
fazer força só repete. Qualquer papagaio também repete. Na minha casa lá no
interior do nordeste, havia papagaios geniais que repetiam tudo. Mas parece que
não pensavam. Só repetiam. Então, para a gente não só repetir que é democrata e
vive numa democracia, acho que valia a pena a gente perguntar como que era na
Grécia? Quem era povo na Grécia? Nelson Werneck Sodré, um dos maiores
historiadores deste país, escreveu um livro: Quem é povo no Brasil? Estamos tentando saber até hoje. Um dia a
gente vai ficar sabendo quem é povo no Brasil. Mas quem é povo? Quem era povo
na Grécia? Ah é fácil, qualquer estatística resolve isso. Os escravos. Os
escravos não tinham qualquer direito nem da própria vida, pertenciam ao seu
senhor e dependiam do humor de seu senhor a cada dia. Portanto não eram
cidadãos. As mulheres estavam todas segregadas. Todas. Submetidas a regime de
cativeiro. Independente do que os homens digam, não mudou muito. Não mudou
muito. Mas está mudando. Um dia chegaremos lá. Chegaremos lá. Mas vejam, então
as mulheres não tinham nenhum direito. Nenhum. E eram, como sempre foi, pelo
que se saiba mais ou menos metade da Grécia. Qualquer sociedade de um modo
geral cinquenta por cento é de homens e os outros cinquentas são mulheres.
Então cinquenta por cento, de mulheres não tinha nenhum direito. Não sei
quantos milhares ou milhões de escravos não tinham nenhum direito. Os estrangeiros
também não tinham nenhum direito. Então, brincando, brincando, perfaziam uns
oitenta por cento. Lá e cá. Ontem e hoje. Sobra vinte. Esse é um cálculo meio
furado, porque na verdade eu apenas estou dando um exemplo. Por favor, não
digam que eu disse que era vinte por cento. Eu não tenho dados precisos, estou
dando um exemplo.
Oitenta por cento não
tinha nenhum direito. Oitenta por cento não era cidadão. Portanto oitenta por
cento não estava abarcado pelo conceito de democracia. Quem era povo na Grécia
era a elite; a nobreza, a aristocracia. Como hoje. Eu só estou colocando isso
aqui para que quando a gente falar em democracia pelo menos dar assim um estalo
de Vieira: gente que coisa é essa de que eu estou falando, será que existe, é
verdade, como é que é, como deixa de ser ou como é que a gente faz que seja? É
outra coisa.
Então, esses conceitos
são conceitos produzidos historicamente em determinados tempos históricos e em
determinadas circunstâncias históricas. Mas, por um bondinho que sai de lá e vem
para cá, ele chega despido de todas as considerações e a gente que perdeu o
conhecimento da gênese, do que aconteceu, do processo histórico, que de um modo
geral a gente não conhece sabe, a gente repete: não, viva a democracia, eu
defendo a democracia. Agora, eu defendo a democracia como a lei, não é essa que
anda por aí.
Do ponto de vista dos
conceitos, também é preciso botar os pingos nos iis. Universidade produz
conceitos. Porque o conhecimento tem uma base conceitual, como tem uma base
metodológica. Não há ciência, seja da natureza, seja da sociedade, que não
trabalhe com conceitos. Que não trabalhe, na verdade, com metodologias. Porque
o método é um instrumento de trabalho. Alguém pensa que é uma coisa complicada,
mas não é. Por exemplo: uma costureira. Você pega um vestido; tem que ter a
fazenda, a tesoura, a máquina, são instrumentos de trabalho. Portanto ela
precisa dessas coisas para produzir um vestido. E o cientista? O cientista
preciso do conhecimento, de um método de análise da realidade concreta e da
epistemia, de uma teoria do conhecimento.
Agora, também tem uma
pequena questão só para embananar, que é a seguinte: a teoria marxista trabalha
com uma ideia, de que neste período chamado primitivo, de propriedade coletiva,
enfim, não havia ideologia como a gente a conhece hoje. Havia um corpo de ideias,
por favor, não vão dizer, sair por aí dizendo que a Zuleide disse que não havia
corpo de ideias. Eu não disse isso. Ideologia é outra coisa. Ideologia é um
conceito. Porque? Porque todos pensavam no fundamental mais ou menos da mesma
forma. O mundo se representava, na cabeça, nas ideias, no pensamento, mais ou
menos da mesma forma. Quando surge o estado, a propriedade privada, a
escravidão, naturalmente, você agora tem que começar a trabalhar com
pensamentos divergentes entre si. Sabem porque? Por uma coisa simples. Eu fico
só imaginando que os interesses de um senhor de escravos não correspondem aos
interesses do escravo. Se corresponder, a coisa está pior do que a gente
imagina. Não é verdade? Porque o interesse de um senhor de escravos não pode
corresponder ao interesse do escravo por serem coisas absolutamente divergentes
entre si. Portanto não têm momento de compatibilização. Mas no processo
industrial, do mundo moderno, também. Porque os grandes interesses da grande
burguesia mundial também não correspondem aos interesses dos trabalhadores. Não
é verdade. Portanto é isto, a essa produção de ideias contrapostas entre si,
que defendem coisas absolutamente diferentes, para grupos humanos grandes, é
que se chama de ideologia. Ideo vem de ideia e logia vem de logos,
conhecimento, a razão que os gregos instalam no processo do conhecimento. Eu,
ser que penso o mundo, eu tenho condições de explicar o mundo.
Então é essa razão que
vai dar racionalidade, a gente fala de pensamento racional, somos todos
racionais, não é verdade? A gente não acredita nisso piamente? Acredita, claro
que sim. Acreditamos todos porque somos racionais. Somos os únicos animais que
pensam. Como os outros animais nunca foram consultados, acredito. Também não
estou dizendo que pensam. Estou dizendo que nunca foram consultados. As
mulheres também não pensam. Mas também nunca foram consultadas. E quando
começam a pensar dá um rolo que não tem tamanho. Não é verdade?
Então vejam gente, eu
acho que é disso aí que nós estamos falando. Marx em A Ideologia Alemã tem dois capítulos em que ele coloca o seguinte:
como se produz a consciência. Eu que conheço o mundo, eu que tenho consciência
do mundo, como é que esta minha consciência se produz no mundo? Esta é uma
questão. E por isso mesmo vem uma série de outras questões. Porque o
trabalhador que trabalha de sol a sol para ganhar um salário, ou um sem terra
que não tem terra, ou um desempregado que não tem trabalho nenhum, naturalmente
seus interesses gerais e a sua forma de inserção no mundo são distintas, porque
consciência é a minha inserção no mundo. Eu conheço o mundo no qual estou
inserida, eu não conheço outro. Está certo? Então, se eu conheço o mundo a
partir de tudo o que eu conheço desde quando eu bebi o leite materno; isso é
bom, isso é feio, isso é bonito, isso é preto, isso é branco, não é assim que a
gente ensina para as criancinhas? È verdade, e não tem nenhuma gama
intermediaria. O cinza não existe. Ninguém se lembra de dizer que preto e
branco dá cinza. E a cor cinza chumbo ou cinza claro vai depender da quantidade
de preto ou da quantidade de branco. Então gente, eu só estou colocando aqui
para vocês alguns rabos de foguete, fazendo aqui papel de advogada do diabo.
Sentem nalguma praça pública, olhem para a lua e pensem: Amanhã o que aconteceu?
Quem sabe dá certo.
Marx em A Ideologia Alemã escreve dois capítulos
excelentes. Um é A produção da
consciência. Como é que eu produzo a
consciência que eu tenho do mundo, de acordo com o mundo em que estou inserida?
Eu lembro que eu fiz um trabalho numa favela no Rio de Janeiro durante seis
anos. Aí as cartilhas de alfabetização diziam: A ave viu a uva. A pobre criança da favela tinha uma dificuldade
impressionante para aprender. Não ela não tinha dificuldade de aprender. Ela
tinha dificuldade de saber o que era uva. É só isso. Ela não sabe o que é uva.
Portanto não é o cérebro dele que tem dificuldade. Ela não sabendo o que é uva,
ela não decodifica, ela não visualiza, não imagina, não conscientiza.
Uma vez eu fui a uma
médica, Ela passou uva chilena. Eu olhei para ela e disse a senhora por acaso
perguntou o que eu faço na vida. Não, porque? Eu sou uma mera professora da
universidade que ganha pouco, hoje eu dou oito horas por dia sem nenhuma
reposição salarial e nem sei onde se compra uva chilena. Então não vou usar. Não é verdade? É verdade.
Será que é porque eu não tenho condições de saber o que é uva chilena? Não. É
porque está fora do meu alcance. E eu estou dando um exemplo rasteiro. Mas como
isso tudo, se eu nunca visualizei, se eu não tive nenhum tipo de contato nem
que seja intelectual, eu não posso decodificar. Eu não posso traduzir isso com
as minhas formas de conhecer. E depois não posso dizer que o menininho da
favela não é inteligente suficiente para aprender. Claro, botando lá um monte de
coisas que ele nunca viu, ele não imagina. Ele não consegue conceber ao nível
de seu pensamento. Então ele vai ter muita dificuldade de se alfabetizar.
Mas a gente fazia lá
uma gincana e passava uns desafios para os meninos, e uma vez a gente deu uma
tarefa (todo mês a gente fazia isso): descobrir o sócio da associação da favela
que mais devesse à associação da favela e trouxesse o cara para pagar. Duas
horas depois chegou o menino de doze anos com um cara pela mão. Eu estaria até
hoje procurando porque não era minha realidade. Não sei se o menino é mais
inteligente do que eu. Não faço ideia. Mas uma coisa é o seguinte: ele em duas
horas chegou com um cidadão e disse esse é que mais deve e ele disse que vai
pagar. A gente quase cai da cadeira e perguntou: é verdade? O homem disse: é, a
senhora faz ai a conta, eu só não vou pagar de uma vez porque não posso mas
esse menino foi tão brilhante que eu me sinto no dever de pagar e acabou pagando.
Se eu fosse subir a
favela, andar naqueles barracos estaria fazendo isso até hoje. Portanto o
conhecimento do mundo é produzido pelo mundo no qual eu estou inserido. Eu numa
favela com certeza terei muito mais dificuldade do que o menino da favela.
Agora, quando eu levo o menino para o meu terreno aí se dá o contrário. Portanto
essa é a base da ideologia. A base da consciência.
O outro capítulo de
Marx em A Ideologia Alemã de Marx é
exatamente: A base real da Ideologia. Como
é que as pessoas conseguem, constroem, na sua relação com o mundo, uma visão de mundo. Uma visão de mundo que
precede as formas de conhecimento posteriores. Certo? Este é um outro pequeno
problema. O estou colocando aqui para não sair do terreno da filosofia até
agora. Aí é um problema de convencimento meu, vocês desculpem, mas eu estou
convencida que se todos nós não fizermos um esforço de conhecermos melhor os
conceitos e as formas de pensar não vamos resolver os problemas. Não vamos. Até
porque cada um fala mais grego do que o outro. Além do grego dos gregos tem o
grego que a gente não decodifica. Ou inglês se quiserem. Porque? Porque as
visões de mundo e os interesses do ser no mundo não são iguais. Porque os
trabalhadores todos no geral, no geral, tem mais ou menos o mesmo corpo de
interesses. Qual é o interesse geral dos trabalhadores? Primeiro, um bom
salário. Segundo, boas condições de trabalho, férias, descanso, semana inglesa.
E tudo mais, não é isso? E o patrão tem todos esses interesses? Claro que não.
Ele não é suicida. Ele quer saber como é que numa jornada de trabalho se produz
muito mais do que se produz. Para eu poder jogar o produto na mais alta faixa
de lucro, para poder reproduzir o capital, para enfrentar concorrência.
Então gente, eu creio
que é uma questão de pensar, uma questão de entender e penso também o que Marx
diz em A Ideologia Alemã que se a essência e a aparência se confundissem não
haveria necessidade da ciência. O que Marx está dizendo é que o conhecimento
científico não pode se basear apenas na aparência dos fenômenos até porque essa
aparência pode ser falsa. Porque pode partir de bases falsas. E não é nem
sempre por má fé não. Por engano mesmo, por isso, por aquilo. Não quer dizer
que é só por má fé. Não é. Entendido isso qual é o papel de uma pessoa que está
numa universidade? É exatamente produzir conhecimento e fazer do conhecimento
um instrumento de mudança. Porque também tem o seguinte: as formas de
conhecimento e as formas como o conhecimento foi apropriado, faz com que hoje a
gente só tenha meia dúzia de doutores, meia dúzia em relação aos seis milhões,
e um bilhão de analfabetos. Ultimo dado das Nações Unidas.
Aí, vamos e venhamos,
como é que a gente resolve problemas com um bilhão de analfabetos que não
aprenderam a pensar, que não tem uma estrutura organizada de pensamento? Que
não sabem o que é ciência, aliás, não sabem nada praticamente. Aí a gente fala
que eles não entendem. Apenas não dominam os mesmos artefatos que nós
dominamos. Porque não tiveram, provavelmente, as mesmas oportunidades que nós
não é? Porque o pão e o conhecimento deviam ser divididos por todos. Porque
essas são as duas coisas fundamentais. Sem o resto a gente sobrevive. Não tem
carro. Eu nunca tive carro. Eu penso que se eu for dirigir eu só vou fazer
bobagem. Eu pego o ônibus, lá o motorista que se vire. Quando chega no ponto eu
salto. Vou-me embora. Se estiver muito atrasada eu pego um táxi. Bom, mas o que
eu estou dizendo é que a gente sobrevive sem quinhentas mil quinquilharias, mas
não sobrevive sem pão e não sobrevive sem conhecimento.
Se me disserem que uma
pessoa sem conhecimento tem condições de intervir na sua realidade eu me dou o
direito de achar que não. Porque ela não consegue siquer entender a linguagem
que a gente fala. Essa linguagem mais sofisticada vamos dizer que uma pessoa da
favela não entende. Criança não sabe. Não é porque ela seja burra. É porque ela
não aprendeu.
Deixa-me perguntar aqui
uma coisa. Quem saberia aqui descrever o que são as noites brancas? Um de cada
vez. Vamos lá. Alguém responde: O sol
da meia noite acima do circulo polar
Como é que vocês
imaginam uma noite branca? Só para a gente tentar decodificar. Noite por
definição é negra. Tanto que os teólogos da Idade Media quando uma pessoa
estava muito cheia de dúvidas em relação à teologia etc. eles diziam que
estavam vivendo a noite negra da alma. Porque negro é comparado na verdade a
tudo que não permite a entrada da luz quer dizer o conhecimento. Portanto se
noite por definição é a falta de luz como é que eu posso falar de noites
brancas?
Vamos fazer aqui um
exercício de reflexão. Noite. Ai você diz, mas noite não pode ser branca porque
noite é negra. Mas se eu falo de noite branca tenho que procurar entender como
é que esta noite negra deu uma noite branca.
Alguém responde: noite
cheia de neve. No Sul tem duas noites brancas, quando neva e quando a lua é cheia.
Mas isso não é uma
noite branca. É uma noite com neve. Eu vou aqui fazer duas deduções. A primeira
coisa é que realmente vocês não conseguem descrever uma noite branca porque não
tiveram contato com isso, seja na realidade concreta, seja a nível intelectual.
Dostoievski, por exemplo, tem um livro belíssimo chamado As Noites Brancas que
deu peças de teatro. Eu chego à conclusão de que além de vocês não conhecerem o
fenômeno das noites brancas não leram Dostoievski para saber pela leitura e
pela descrição do Dostoievski o que é. Então vejam só, isso na teoria do
conhecimento não é uma coisa tranquila porque eu me aproprio do mundo pelas
representações do mundo. Eu me aproprio daquilo de que de alguma forma ouvi
falar. Eu ouvi, ou alguém contou e detalhou. Como pelo visto isso não aconteceu
vocês não têm condições de decodificar, de minimamente dizer mesmo por
aproximação o que são as noites brancas. As noites brancas são um fenômeno da
natureza e não são noites com neve não. Noite enluarada é noite enluarada, a
noite não deixou de ser negra. Apenas há um contraste com a luz da lua. São
coisas distintas.
As noites brancas são
um fenômeno polar. O que é esse fenômeno? Uma coisa fantástica. É o seguinte:
vocês já devem ter ouvido falar que no pólo norte durante dois meses pelo menos
o sol não se põe. É um fenômeno da natureza no pólo, ou seja, que o sol não se
põe significa que não escurece. É por isso que depois os animais e até as
pessoas vão embernar. Passam um tempão sem dormir e depois embernam. Eu estive
lá, na Finlândia, e vi que o sol não se põe. E o que é que acontece? A noite
não se faz porque a noite é a ausência da luz do sol. Não foi isso que a gente
aprendeu? Assim simplesinho, simplesinho? Durante doze horas o sol fica de um
lado e durante doze horas, do outro. Quando um lado fica iluminado o outro está
escuro. O sol só consegue pegar a parte da terra que está virada para ele. Ora,
com este fenômeno que se dá no pólo norte o que é acontece? O sol fica com a
mesma intensidade até perto de meia noite e quando dá meia noite exata, uma
coisa fantástica, o sol vai se pondo, só que ao mesmo tempo em que vai se pondo
na linha do horizonte, ele vai nascendo em seguida fazendo com que não
escureça. Então não é neve nem a luz da lua. A luz da lua na verdade parece
amarelada, mas as noites brancas é porque o sol e a luz do sol bate naquela
quantidade imensa de geleiras resultando uma luz esbranquiçada que não é a luz
do sol a qual exatamente é amarela. O sol não chega a se por. Ele se oculta e
imediatamente sai. Então não há um momento de interregno que permita dizer que
escureceu. Não há. Você pode em determinado lugar, lá na Suécia, ou na
Finlândia, ver a noite branca. Ou então comprar e ler o romance de Dostoievski
o que fica um pouco mais barato. Então vejam porque é que vocês não puderam
conhecer. Procurem ler a peça que é magnífica.
Então vejam, porque é
que vocês não puderam dizer isso? Porque nunca por nenhuma forma vocês tinham
tomado conhecimento. Deixe-me contar aqui uma piada. Eu só sei piadas de salão.
Fiquem tranquilos. Disseram que um amigo ia passando e ai viu um amigo dando
uma surra num judeu. Estava quase matando o judeu de tanta pancada. Diante
disso retrucou: mas amigo, desse jeito você vai acabar matando esse homem; o
que é que ele fez? Ao que o amigo indignadíssimo respondeu: mas você não sabe o
que eles fizeram? Eles quem? Os judeus.
Eles mataram Jesus Cristo. É mas isso
tem dois mil anos. É, mas só agora é que eu que eu soube.
Isso é uma piada, mas
na verdade é assim. Eu só falo de um fenômeno após tomar conhecimento. E essa é
uma colossal complicação na teoria do conhecimento. Porque se eu não tomei
conhecimento eu sequer imagino. Portanto o mundo que eu conheço é o mundo no
qual eu estou inserido diretamente. Por
isso Marx dizer que a consciência do homem é a consciência de um determinado
momento, de uma determinada classe social ou de uma determinada região do
mundo. Fora disso eu vou fazer igual ao amigo que só sabendo naquele momento
que os judeus mataram Jesus resolveu ir à forra. Dois mil anos depois. Não tem
importância. Ele não sabia. Não é?
Portanto esta é uma
complicação. O real concreto só existe para mim quando eu me aproprio dele. Daí
também isso permitir ao nível da construção do pensamento e das idéias uma
série de equívocos por desconhecimento. Nem sempre por ma fé. Às vezes é
também. Um mundo de pilantras aí querendo ganhar dinheiro às custas da gente
inventando modas. Mas não é. Não é sempre e não é todo mundo. É porque a gente
realmente não tomou conhecimento. Portanto tentar conhecer ajuda a gente.
Conhecer o mundo, conhecer a realidade do mundo. E mais. Adquirir instrumentos
de análise. Para poder então a gente
decodificar este mundo. Até para a gente decidir afinal que mundo nós queremos.
E a gente tem pouco tempo. Não estou aqui fazendo catastrofismo não. É que o
grau de poluição do planeta, o grau de fome, de miséria, de degradação, está
colocando a humanidade toda afinal numa encruzilhada. Não há nenhuma garantia e
não está escrito em lugar nenhum que a humanidade sobreviverá apesar de tudo.
Não está escrito.
Portanto o mundo é o
mundo que a gente construir. O mundo é o mundo que a gente queira ter. E o
mundo será um mundo melhor se a gente decidir o que vem primeiro. Não basta ir
para os fóruns sociais mundiais e dizer queremos um mundo melhor. Queremos
todos um mundo melhor. Agora, também é verdade que o mundo que está aí, com
guerras, com fome, com todo o tipo de devastação, é um resultado das formas de
organização social que os homens produziram no mundo. Portanto só os homens
alterando as formas de organização social, podem afinal criar esse mundo melhor
para todos.
Mas, aí algumas
perguntas?
1ª
pergunta: Professora, eu sou professora da Fundação
Educacional aqui de Brasília, e na minha escola estamos desenvolvendo uma
atividade de representação artística sobre a consciência negra. Um trabalho em etapas. A primeira é trabalhar
as cores preta e branca para os alunos associarem às condições de raça. A
segunda é usar as cores da integração africana, o verde, o amarelo e o
vermelho. E hoje foram eles criarem uma propaganda colocando a questão da
inserção do negro. Aí um aluno, Vinicius, que deve ter seus treze anos, negro,
o material era de jornal, aí ele veio com essa frase que me inquietou: o negro
é o passado do branco. Eu queria que você me ajudasse a refletir sobre essa
afirmativa.
Resposta:
Isso significa que os meninos pensam, não é? Eu acho que isso é um pouco figura
de retórica. É uma imagem. O que ele quis dizer eu não sei, mas eu imagino que
ele mais ou menos quis dizer. Ele mais
ou menos sabe que houve escravidão e que ele na verdade foi construído pela
escravidão. E aí tem alguns lados que a gente também não sabe, por exemplo,
quando Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, o Brasil tinha a mata atlântica.
Tudo era a mata atlântica, do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Os mapas dão conta
disso. Mas a cada ano a mata vai diminuindo. Hoje tem regiões inteiras sem
árvore. A mata atlântica toda destruída. Os índios eram no mínimo cinco
milhões. Hoje com muito esforço a gente conta duzentos mil. Foram todos mortos.
Os negros também. Houve períodos no Império em que a vida média de um escravo
era de dois anos. Do dia em que chegava ao dia em que morria. Dois anos.
Chegava aquele negro de 2 ms de altura da África dois anos depois estava morto
pelo grau de espoliação da força de trabalho. Então eu imagino que o menino com
o pouco que ele deve conhecer está se referindo a isso. Na verdade ele vê o
passado dos brancos como um passado negro. Estou certa? Um passado na verdade
de um alto grau de destruição, de ambos, os indígenas e os negros. Para as mulheres era comum, quando as
mulheres escravas engravidavam, para o seu senhor era uma coisa ruim porque era
mais uma boca para comer além do que ninguém vai me dizer que uma mulher com
nove meses de gravidez faz o mesmo que uma em estado normal. Não é verdade.
Eles faziam as negras abortarem com cabo de vassoura. Pode fechar a boca porque
é isso mesmo. Não havia médico, não havia penicilina. Foram milhões de negros
que chegaram ao Brasil, para um passado negro. Nós somos na verdade os brancos
que resultaram desse passado.
2ª
pergunta: Eu queria um esclarecimento sobre o conceito de
ideologia. Eu sempre entendi a ideologia como uma forma de escamotear a verdade
para as pessoas prejudicadas visando entenderem que na realidade existem os
superiores e existem os inferiores. Existem os que pensam e existe os que
trabalham. A senhora mencionou a ideologia como o confronto de ideias. Eu
queria um esclarecimento a respeito disso.
Reposta:
Grosso modo é isso aí. Porque quando a gente fala de ideologia, você de um modo
geral está se referindo à ideologia dominante. Você não está falando da
ideologia dos dominados. Até porque a história que foi escrita até hoje é a
história dos dominantes. Não há a história dos dominados. Essa história não
existe escrita. A ideologia também não de um modo geral. Então você diz que a
ideologia é um corpo de idéias que se destina a manipular, escamotear a
realidade. Grosso modo é isso. Mas quando você se refere à ideologia dominante.
Porque para que a ideologia dominante mantenha os níveis de dominação ela tem
que se valer de uma série de artifícios. Se ela disser exatamente as coisas
como elas são, eu digo que ela não vai muito longe. Agora, o que você também
não pode é universalizar esse conceito porque por outro lado é verdade que a
gente espera que uma classe que não está comprometida com a dominação e a extorsão
possa afinal eleger a verdade como critério, para enfim melhorar as coisas. Que
aprenda a dizer a verdade. Porque de um modo geral, por exemplo, numa favela de
um modo geral as pessoas dizem o que elas pensam, sentem, elas são muito
simples e o pensamento é o que ela externa o que ela devaneia. Você pega uma
criança. Uma criança de um modo geral não mente. É bobagem dizer que criança
mente. Criança fantasia. Depois de seis, sete anos, começa a inventar um monte
de fantasias, mas não é mentira. Ela não mente. Quem mente é o adulto para ela
e ela aprende a mentir. Aí quando ela faz dez, onze anos ela já é doutora em
mentir. Ela já tem doutorado em várias
academias do mundo, mas porque que ela aprendeu
a mentir. Então, a ideologia é mais ou menos isso.
A ideologia da classe
dominante usa artifícios e naturalmente obscurece a verdade porque se um industrial disser para um trabalhador que
a mais valia de seu trabalho no processo de trabalho e é com esse mais valor
agregado ao produto que no mercado permite a taxa de lucro, o patrão manda ele
para outro lugar. E ele não volta no dia seguinte para trabalhar. Então ele tem que dizer que não é mais valia
mesmo. O que é isso? Quem foi que meteu isso na tua cabeça? Só pode ter sido
comunistas. Não pode ser outra categoria de gente. Isso foram os comunistas que
inventaram para você se voltar contra mim. Agora, também é verdade que o patrão
diz isso porque a maior parte dos trabalhadores também não sabe. Nunca ouviu falar.
Então, essa mentira acaba ganhando foros de verdade. Ele pode até ter uma certa
desconfiança de que tem alguma coisa errada, mas ele não sabe o que é.
Só para dar um exemplo.
Você pega um metalúrgico de São Paulo, da Volkswagen. Ele sai da fábrica e olha
o pátio coalhado de carros. Aí você pergunta: um desses carros é seu? De jeito
nenhum. São de meu patrão. Ele é capaz de morrer dizendo que não é dele porque
ele não se reconhece como produtor daquele produto. Por uma série de artifícios
Na medida em que ele não se reconhece como produtor desse produto ele não pode reivindicar
parte desse produto como seu. Porque num
processo de produção em cadeia cada trabalhador realiza uma pequena parte do
produto. Ele aperta parafusos. E com o carro pronto ele sabe o que á o
parafuso, mas o carro pronto ele não sabe o que é. Não conhece o resultado todo
de seu trabalho. Isso tudo escamoteia. Isso tudo coloca um véu, mascara a
realidade. Mas é verdade também que os trabalhadores não sabem. Se souber vai
para o sindicato e diz que quer uma jornada de trabalho menor, quer férias,
quer isso, quer aquilo. Quero aposentadoria. Não quero a previdência que está
aí. Quero outra melhorzinha. E isso dá
um trabalho danado.
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