Frank Svensson, prof. Titular aposentado da Universidade de
Brasília, membro do CC do PCB.
O pensamento humanitário em Marx
Ser crítico implica julgar. O crítico social não se pode limitar a
relevâncias. Precisa de um referencial para aferir o fato considerado. Em Marx,
há referencial para fundamentar as apreciações que faz?
Proudhon1
afirmava encontrar na natureza de seres e coisas referência para seu sistema
jurídico. Bentham2 e
colaboradores seguiam conceitos de fundamentação psicológica, defendiam que o
humano quer o máximo de bem-estar contra o mínimo Constran-gimento. O indivíduo
era a unidade; nada além da unidade. Deduzia-se a principal norma legislativa:
a maior quantidade de felicidade para a maior quantidade de indivíduos.
Marx recusou o
ahistórico direito natural de Proudhon, e a utilitária doutrina de Bentham.
Refletiu se se dispõe doutros valores afora os que se fundamentam em modo e
relações de produção, sem o que pensa impossível julgar uma sociedade. Pode-se
ver que essa sociedade que Marx considera – a Inglaterra vitoriana – apresentou
traços desconexos quanto ao puro capitalismo, inibiu a crítica avalia tória.
O relativismo de Marx
não é extremado como parece. Trabalha perspectivas opostas. Vê o homem produto
de relações sociais que não controla, enquanto o vê produtor dotado de
consciente vontade de criar utilidades que respondam a suas necessidades. Num
aspecto o desenvolvimento obedece a leis sociais independentes da vontade
humana. Noutro, é o homem a figura central. Supera carências sociais do mesmo
modo que supera a imposição das condições naturais. A história é obra sua. Marx
a adota como base da avaliação da sociedade capitalista.
Marx é um humanista?
Depende do que se atribua a esse multivalente vocábulo. Se por
humanismo se entender visão de mundo que nega pontos de vista naturais,
soberania de vida espiritual sobre a matéria, Marx é opositor ferrenho.
Interpreta que os mais elevados anseios ligam-se à base natural e à terrena
infraestrutura social. Ao se entender humanismo como pensamento que cria o
homem-objeto-gladiador oposto às tentativas de degradá-lo por outros objetivos,
é Marx um genuíno humanista. Avalia in
O Capital o que é humano:
Forma social superior, tendo por princípio fundamental o
desenvolvimento livre e integral de
cada indivíduo 3.
_____
Substituir o indivíduo parcial, pelo indivíduo integralmente desenvolvido
para o qual as diferentes funções
sociais não passariam de formas diferentes e sucessivas de sua atividade 4 .
_____
O trabalho da fábrica exaure os nervos ao extremo, suprime o jogo
variado dos músculos e confisca toda a atividade livre do trabalhador, física e
espiritual 5 .
_____
Tempo para educação, para desenvolvimento intelectual, para preencher
funções sociais de convívio social, para o livre exercício das forças físicas e
espirituais 6.
_____
A manufatura deforma o trabalhador monstruosamente, levá-lo
artificialmente a desen-volver habilidade parcial, à custa da repressão de um
mundo de instintos e capacidades
produtivas7.
_____
O modo de produção capitalista destrói a saúde física do trabalhador
urbano e a vida mental do trabalhador do campo. Ao destruir condições naturais
que mantêm o intercâmbio cria a necessidade de restaurá-lo como lei reguladora
da produção e em forma adequada ao
desenvolvimento integral do homem8.
Pode-se encontrar expressões semelhantes de avaliações, mas estas se
bastam. Valor positivo é pleno desenvolvimento de riquezas humanas. Negativo é
o que limita e compartimenta o livre crescimento das aptidões. Marx parte do
ideal humanitário. Um ou outro quiçá se surpreenda num empedernido materialismo
que suponha o interesse aferido na questão do estômago. Em realidade, há o
raciocínio clássico calcado no idealismo alemão, oriundo da ética aristotélica.
Aristóteles objetivou melhor desenvolver aptidões da natureza humana.
Nessa plenitude residia a verdadeira felicidade. Seu tipo ético ideal é o
senhor amplamente culto, afeito a encargos práticos, receptivo a valores
estéticos e familiarizado com o mundo do pensamento teórico. A conceituação de
Aristóteles influiu nos modelos de homem culto da Idade Média e da Renascença.
Na sociedade industrial reaparece no huomo
universale (IT), no gentil homme
(FR), no gentleman (ING), no nosso
cavalheiro. Para o neo-humanismo e o
romantismo alemão o ideal ganha forma: não era implantar novo modelo genérico.
Era maximizar a individualidade singular.
Karl Marx formou-se segundo o programa neo-humanista, familiarizado com
seus vultos em literatura, filosofia. Pertence a uma geração de pesquisadores
sociais para a qual autores da Antigüidade ofereciam literatura viva, atual.
Em O Capital menciona economistas ingleses e franceses, intervenções
nos debates parlamentares, opiniões de empresários. Cita Homero9, Tussídides10, Xenophon11, Platão12, Isócrates13 e principalmente
Aristóteles, pesquisador que primeiro analisou tantas formas de pensamento
naturais e sociais. Tinha por parâmetro o pleno e o livre desenvolvimento de
atividades espirituais e sociais. Seguia a tradição humanista de acentuar o
singular pessoal.
Sua concepção de vida, no entanto, era aristocrata, ligava-se a uma
perspectiva de classe historicamente dada. Aristóteles voltava-se a atenienses
bem situados, não dedicando seu pensamento a escravos ou massa de marinheiros,
camponeses, artesãos. Dans les temps
modernes os pregadores do livre humanismo focam grupos detentores de privilégios
de boa formação e bom nível de vida.
O humanismo de Marx é radicalmente democrático. Se argumenta em favor
de pleno e livre desenvolvimento individual pensa no segmento social econômico
de modo espiritual despojado. Descreve as condições reinantes e denuncia as
forças que decepam e deturpam a individualidade do trabalhador. Indigna-se
violentamente à luz da formação humanista.
Pode-se desperceber seu motivo, porque Marx (por princípio) recusa
revestir seus pensamentos com a retórica professoral idealista. Segue Hegel: a
filosofia deve evitar parecer edificante. Se parecer um cínico realista - assim
tem sido apresentado por escritores queixosos de sua falta de sentimentos
favoráveis a valores éticos - é porque a não-atenção deles ao ofendido idealismo
baseia os irados e obstinados ataques.
O novo homem
O proletário, o destituído trabalhador assalariado, traz curiosa
dubiedade à historia da filosofia de Marx. É indefesa vítima da desumana ordem
social que lhe explora a força de trabalho, a fim de criar contínuo acréscimo
de lucros. Sua posição é anômala para quem esposa a ideia do livre
desenvolvimento humano. Justamente por indigência e alienação predispõe
favoravelmente o novo e desenvolto tipo humano. Melhor se entenda com Marx e
Engels, n' O manifesto comunista de 1848, que Marx reconhece expressão de suas
intenções.
Descrevem o proletário como um
apartado da sociedade burguesa, destituído dos privilégios que são o conteúdo
da vida desta, que tem ação social, enquanto o proletário fica de fora; nada
mais é que um elementar humano. Não respeita os valores oficiais da burguesia,
seus conceitos de religião, moral e patriotismo. Para o proletário são somente
preconceitos burgueses, por traz dos quais ocultam seus interesses.
A classe dominante o excluiu de participar dos recursos materiais e das
tradições espirituais com a sensatez de analisar as coisas com clareza. Liberto
de herdada bagagem conceitual, o proletário detém a capacidade de edificar nova
cultura em nova ordem social.
Marx praticamente não encontrou o trabalhador destituído de tradição e
ilusões nos crescentes distritos industriais da Europa. Esta é uma construção
literária que não tem origem em Manchester ou Lyon, mas em radicais filósofos
culturais. Em Descartes surge a ideia do homem liberto apoiado na razão
natural, sem valer-se de erudição nem de bazófia escolástica.
Conhecimento real via John Locke14,
adquire-se por experiência e reflexão, não por uso de expressões de professores
preferidos. Não é privilegio de um segmento acadêmico; é frequentemente mais
acessível a leigos inteligentes que nada sabem sobre formas substanciais, mas
pensam sobre coisas que significam algo para a vida prática. Boyle15, físico, aconselha
pesquisadores a frequentar oficinas de artesãos e a adquirir ensinamentos
práticos.
No século XVIII, instituições
sociais e convenções herdadas desfilavam para o observador desconhecido que as
mirava com olhos firmes. Podia ser um viajante oriental persa de Montesquieu ou
um homem primitivo como o filho da natureza, de Voltaire16.
Hábitos e maneiras de pensar, óbvios para a sociedade em Paris, são-lhes
invenções estranhas, anormais. Em suas críticas especulações transparece a
postura de oposição do escritor.
Em Rousseau17, a
intocada natureza do homem se posta contra o artificial mundo onde todos jogam
seu papel, segundo prescreve a conveniência. Sua mensagem deságua em atitude
conservadora, idealização de simples e felizes formas de vida do passado,
quando o homem era ele em si, não o produto de uma carcomida civilização. A
idéia do humano elementar contra o artificial e o convencional até inspirava
radical crítica social, indicativa do mundo futuro, mais feliz em se opor a
esclerosadas, doentias tradições.
Quando no Manifesto se permite ao proletário sem tradições ver sob o
olhar do estranho: a civilização
burguesa, torna-se o representante do homem natural, sem mensagem no mundo
sobrecarregado de tradições. Nele Marx deposita esperanças de futuro, ao
desmoronar a última forma de domínio classista. Não foi o único a acreditar na
evolução dos trabalhadores. A filosofia social de Comte18 propõe que se construa uma sociedade cientificamente
organizada.
Ter-se-ia uma reserva de aptidões a empregar por meio de esclarecimento
popular, no melhor espírito positivista. Crias da época industrial estão
relativamente livres das maneiras teológicas e metafísicas de pensar. Espera-se
que sejam mentes receptivas à filosofia cujo programa dita: conhecer para
prever e agir. Comte, contudo, estava totalmente distante do pensamento em
favor da missão histórica do proletariado. Com força própria, criar um novo
mundo. Era um conservador reformista, não um radical extremista. Queria unir a
ideia de progresso a cristalizadas tradições da restauração. O desenvolvimento
se orientaria por homens de científica formação, com base em experiências
comprovadas, evitando repentinas mudanças que cedo ou tarde gerariam
retrocessos.
Os sonhos da época das revoluções pertenciam (Comte) a uma metafísica
pré-científica, assim como fantasias de reacionários à restauração do antigo
regime e a abstratos ideais de liberdade dos liberais. Era questão candente da
época:
Como o crescente operariado poderia melhor ser inserido na sociedade
industrial que se configurava? A resposta rezava: Tornando-o participante nos
resultados da moderna ciência e na forma de pensar que fundamenta suas grandes
conquistas. Assim se faz contraponto à tendência de românticas aventuras que
resultariam em negativas surpresas.18
Quando as abstrações da filosofia iluminista atingiram os moradores dos
subúrbios, alastraram-se incêndios revolucionários. Quando os sóbrios métodos
de laboratórios e oficinas influíram sobre o pensamento das massas, elas
aprenderam a distinguir entre bem intencionadas reformas e projetos futuristas
vagos. A crise social passa a poder ser resolvida, em época de maior
organicidade social.
Comte e Marx partem da alienação
dos trabalhadores na sociedade estabelecida. O que os diferencia é: a) Comte
quer superar o antagonismo de classes apoiado na científica engenharia social e
na planejada formação popular de princípios positivistas; b) Marx quer tornar
os trabalhadores conscientes da sua condição de educarem-se para a sociedade
que sucederá a burguesa. Só aí se realizará o sonho humanista de
desenvolvimento democrático pleno.
Notas:
1. Proudhon, Pierre Joseph. 1809-65. Dizia-se anarquista, defensor da
sociedade livre baseada no direito natural, sem regulação estatal. Legou
importante papel ao anarco-sindicalismo na França e noutros países latinos.
2. Bentham, Jeremy. 1748-1832. Filósofo e político. Suas pesquisas
visavam à reforma do sistema jurídico inglês. Opunha-se ao direito natural, que
concebia de fundamentos psicológicos. Defendia: quanto mais indivíduos
participassem da felicidade, maior felicidade individual haveria. Ao indivíduo
competia esforçar-se pela felicidade de todos.
3. Marx, Karl: O Capital . Civilização Brasileira, Rio (livro I p. 688)
4. Ibidem. (livro. I p. 559). 5. Ibidem. (lv. I p. 483). 6. Ibidem.
(livro. I p. 300).
7. Ibidem. (livro. I p. 412). 8. Ibidem. (lv. I p. 578).
9. A Homero se atribuem os maiores poemas épicos da Grécia antiga, de
intensa influência ocidental: "A Ilíada" e "A Odisseia".
10. Tucídides (460-400 a.C.). Como Heródoto, é dos maiores
historiadores do mundo antigo.
11. Xenofonte (427-355 a.C.) Soldado, historiador, escritor grego
natural de Erkhia, na Ática. Participou da Guerra do Peloponeso.
12. Platão nasceu em 428 a.C. É o primeiro grande filósofo ocidental a
deixar considerável obra escrita, pedagogo, político-teórico. Criou a mais
importante escola de oratória da Grécia, de poderosa influência intelectual e
política na luta pela unidade do povo helênico.
13. Sócrates. Ateniense retórico.
14. John Locke. (1632-1704). Filósofo iluminista inglês.
15. Boyle, (1627-1691). Químico e físico de origem anglo-irlandesa.
16.Voltaire, François-Marie (1694-1778) Escritor francês. Citem-se Cartas Filosóficas, Tratado sobre Tolerância e
Contos.
17. Jean Jacques Rousseau. (1712-78). Destaquem-se as obras Discurso
sobre a origem da desigualdade entre os homens; Do contrato social; Emílio ou
Da Educação (1762).
18. Auguste Comte. (1798-1857). Engenheiro politécnico e filósofo
francês. Obras principais: Sistemas de política positiva ou Tratado de
sociologia = institui a religião da humanidade e o calendário positivista
(santos são grandes pensadores da história); forjam divisas: Ordem e Progresso;
Viver para o próximo; Amor por princípio, ordem por base, progresso por fim.
Funda igrejas positivistas (ainda as há).
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