Frank
Svensson
A
origem do termo e do pensamento fenomenológico
Outra expressão
significativa das filosofias irracionalistas de frequente presença nas teorias
da arquitetura da sociedade capitalista é o pensamento fenomenológico.
Devemos a introdução do
termo fenomenologia no mundo da filosofia a Johann Hein-rich Lambert,
matemático, físico, astrônomo e filósofo alemão (1728-1777) nascido em
Mülhausen (na época território suíço).
Como fenomenologia designava a doutrina do aparente --- das Schein --- à diferença do real --- das Sein. Com a importante obra de Hegel, Fenomenologia
do Espírito / Phenomenologie des Geistes,
de 1807, é que a fenomenologia como enfoque filosófico ganhou uma dimensão
histórica. Hegel acrescentou à visão
estática de Lambert o emprego do termo para o estudo das formas de apresentação
do Espirito, ou da Ideia absoluta, em seu desenvolvimento, passando do estágio
de ingênua consciência sensorial, pelo de autoconsciência, até atingir o de
consciência absoluta. Ao invés de só
tratar do aparente, o objetivo da fenomenologia passou a ser o de seguir o
desenvolvimento do espírito, a partir do manifesto, até atingir o verdadeiro; a
partir do aparentemente real até o absolutamente real.
É depois de Hegel que a
fenomenologia passou a ser vista como a doutrina sobre o mundo relativo e
contingente do sensorial, à diferença do mundo do espírito absoluto, cujo
esclarecimento por meio da razão era a função do racionalismo idealista. A contribuição trazida com a cosmologia de
Hegel e a decorrente reanimação do pensamento dialético alcançando o seu ápice
com Marx, atingira frontalmente o "ensimesmamento" solipsista. A solução prevista para sair do atoleiro ao
qual o pensamento dialético havia forçado as doutrinas filosóficas centradas no
ego, era a de introduzir em suas proposições um certo elemento de objetivismo. Podemos reduzir a três
os principais direcionamentos desse esforço:
1. Isolar a filosofia
do mundo circundante e das ciências que o estudam. Aceitar como objeto de interesse da
fenomenologia exclusivamente os fenômenos da consciência entendida como o único
e imediatamente dado.
2. Esses fenômenos da
consciência não são entendidos como fenômenos psíquicos, e sim como essências
absolutas de significado geral e independentes da consciência individual, mas
que se encontram só nela e não têm existência fora dela.
3. As mencionadas
essências não se conhecem mediante a abstração intelectual (razão), mas são
vivenciadas diretamente e depois descritas tal qual são contempladas num ato de
intuição.
A
fenomenologia no Século XX
Ao longo do tempo o
emprego do termo fenomenologia tem variado consideravelmente. Na passagem do século XIX para o XX ganhou um
novo significado. Isso por meio do
matemático e filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) Em sua obra Verificação lógica / Logische
Untersuchungen (1900-1901) introduziu o termo como denominação de sua
contribuição. Com essa sua nova
fenomenologia quis ultrapassar os limites de uma simples disciplina
filosófica. Ao contrário de seus
antecessores, não a entendia como uma correspondência negativa ao ser
absolutamente real. Procurava, segundo
ele, reabilitar a "realidade" sensorial sob condições próprias, e não
superá-la. Para Husserl o imediatamente
manifesto ou vivenciado, por ele denominado de contemplação (Anschauung),
constitui o primeiro estágio do conhecimento.
O objetivo da nova fenomenologia por ele apresentada era o de esclarecer
tudo o que nos pudesse ser dado dessa forma. Defendia que verdade, realidade, e
ilusão, devem ser examinadas da forma como se manifestam à consciência.
A tendência
irracionalista que chega ao século vinte o faz em choque como um movi-mento
oposto procedente da esfera das ciências naturais o qual também aceita o
reflexo do real na consciência como ponto de partida do processo de
conhecimento. À diferença da
fenomenologia busca encontrar a verdade sobre o real por meio de um processo de
aprofundamento o qual com a ajuda de práticas objetivas leva a novos reflexos,
distintos do primeiro, e a novas práticas e assim sucessivamente. Trata-se de um processo eminentemente crítico
e contínuo, evitando satisfazer-se com a contemplação da contemplação. Dessa forma evidenciou-se invulnerável às
investidas do irracionalismo.
Ante tal fato a fenomenologia
surge como uma tentativa de objetivar o irracionalismo de forma lógica, de
envolver o conteúdo irracional com formas lógicas. A fenomenologia de Husserl aparece como uma
terceira via para o mundo da filosofia.
A filosofia deve, segundo ele, ser uma ciência rigorosa. As suas proposições devem ser verdades tão
absolutas como as leis da lógica e as proposições da matemática. Ao mesmo tempo que insistiu resolutamente na existência
da verdade absoluta, Husserl destacou a necessidade de distinguir o ato
cognitivo, como processo psíquico que ocorre na consciência, do conteúdo ou
sentido desse ato:
O
que é verdadeiro ... é verdadeiro em si, a verdade é identicamente una, sejam
homens ou monstros, anjos ou deuses quem as profere.
Céptico ao impulso do
conhecimento da psique, principalmente com as formulações de seu contemporâneo
Sigmund Freud, entendia que as leis e formas do pensamento lógico não são
dependentes das particularidades da psique do indivíduo. Seguindo os neokantistas afirmava que as leis
lógicas eram ideais e apriorísticas, que a "lógica pura", como a
matemática, é fidedigna apenas porque é apriorística e nada tem a ver nem com o
mundo real nem com o processo real do pensamento. É nessa linha de raciocínio que teóricos da
arquitetura como Kevin Lynch e Norberg Schultz se recostam na concepção dos
arquétipos de Jung. Segundo Jung nós
trazemos nalgum subsolo da nossa
consciência referências imagéticas diretoras de nossas proposições formais.
Depois de divorciar as
leis lógicas da realidade objetiva e do processo real --- raciocínio objetivo
--- do pensamento, Husserl faz constar que, além disso, nenhum saber verdadeiro
pode relacionar-se com os fatos do mundo real, que a filosofia, se quiser ser
uma ciência rigorosa, deve renunciar à tarefa de fazer deduções partindo de
dados das ciências experimentais. Renuncia, assim a quanto nos liga ao mundo exterior, re-orientando nossa
consciência para o mundo interior, até ela própria, passando a dedicar-nos à
contemplação da contemplação. Isso fica
muito claro na clássica obra de Kevin Lynch A
Imagem da Cidade.
A
arquitetura quando limitada à percepção da percepção
Em sua obra A Imagem da cidade, Kevin Lynch
interessa-se sobremodo pela imagem sensorial da arquitetura e, especialmente,
da cidade como objeto maior da mesma.
Essa tendência se caracteriza pela vontade de aclarar a relação entre o
indivíduo e o assentamento humano, tendo o indivíduo como ponto de partida. A antiga postura kantiana, com o correr do
tempo se misturou com manifestações existencialistas e fenomenológicas. Tal desenvolvimento se contenta em estudar a
contemplação da cidade à partir das relações entre o cidadão e a cidade. Não consegue objetivar o sujeito dessa
contemplação dentro do desenvolvimento das relações socioeconômicas como uma
força externa à vontade do indivíduo.
A postura que essa
tendência tem quanto ao objeto contemplado desenvolve-se numa analise indutiva
e unidirecional que, predominantemente, vai do indivíduo à sociedade, do
cidadão à cidade. As exigências de uma
análise dedutiva, a partir da compreensão da globalidade da formação
socioeconômica, para nesta localizar a parte, o indivíduo e o cidadão como
veículos da parte subjetiva da contemplação são muito menores. Essa forma de análise é crítica, mas tem uma
postura, em face do social e do histórico, sem maiores pretensões de
participação ativa na transformação do capitalismo em uma fase historicamente
ulterior e socialmente mais avançada.
As teorias de Kevin
Lynch são exemplo disso:
Há
um prazer particular em contemplar uma cidade, por mais banal que possa ser
vista. Como um pedaço de arquitetura a
cidade é uma construção no espaço, mas numa escala maior, e exige longos
períodos de tempo para a perceber.
Comete o engano de
entender a cidade como algo no espaço, sendo que a cidade não existe no espaço
e sim se manifesta em forma de tempo e espaço.
Lynch entrama esse idealismo objetivo com um subjetivo, em seu esforço
por atingir uma coletiva imagem da cidade. Sua maneira de entender aquilo a que
chama imagem da cidade, Lynch a sintetiza da seguinte forma:
Cada
representação individual é singular, uma parte de seu conteúdo raramente, ou
nunca, é comunicado, e mesmo assim se une à imagem coletiva, que, conforme o
meio ambiente, é mais ou menos
obrigatória, mais ou menos envolvente.
Essa análise se limita ao efeito dos objetos físicos perceptíveis. A imaginação pode ser influenciada de outras
maneiras, notadamente pela significação social de uma zona, sua função, sua história
ou mesmo seu nome. Isso não abordaremos,
desde que nosso objetivo aqui é o de descobrir o papel da forma em si
mesma. Tomamos por aceito que, no
urbanismo atual, é necessário utilizar a forma para reforçar a significação e
não para negá-la. Nas imagens das
cidades estudadas até aqui, o conteúdo que se pode relacionar às formas físicas
pode ser classificado sem inconveniente, segundo cinco tipos de elementos: as
vias, os limites, as quadras, os nós e os pontos de referência. Com efeito,
esses ele-mentos se aplicam de maneira mais geral desde que os
encontramos, parece, em muitos exemplos de imagens do meio ambiente.
Lynch reconhece que a
"imagem da cidade" é formada pela ação recíproca entre quem contempla
e o objeto contemplado, e que pode melhorar através da formação contínua do
observador, bem como pela modificação do meio ambiente para melhor. Poderíamos, portanto, desenvolver nossa
imagem da cidade influindo sobre sua forma, o fazendo por um processo pessoal
de formação a respeito da compreensão da cidade. O fato de se contentar com uma geometrização
da cidade, que busca sua forma como tal, soma-se a uma dimensão neo-kanteana e
resulta do fato de que o interesse que se teve pela cidade transforma-se num
interesse maior pela imagem sensorial suscitada pela cidade. Uma espécie de
percepção da percepção. Assim, a arquitetura é subjetivada pelo desejo de
objetivar a imagem que a mesma permite no pensamento.
A localização de
pessoas, coisas e fenômenos implica uma diferenciação sensorial, um processo de
análise e síntese, que se dá entre as coisas e as reações do organismo humano
para com as mesmas. Nessa análise,
interagem receptores-meios e os centros cerebrais, como um sistema integrado. Dessa diferenciada ação recíproca, entre
objeto e sujeito, surgem imagens constantes que guardam as expressões espaciais
das pessoas e das coisas, apesar de nossos receptores externos terem angariado
novas informações. Nossa memória nos
permite rever o espacial na forma que havíamos percebido antes e apesar de
novos dados terem surgido a respeito.
Mas isso não nos limita a um comportamento passivo e unilateral de
somente receber, com nossos sentidos, a expressão espacial das coisas,
excluindo nossa atividade de análise, síntese e generalização, em seu desenvolvimento. Não podemos ter como alvo, somente as
propriedades externas das coisas sem relacioná-las com os condicionamentos e as
necessidades a que estão ligadas. Assim,
não chegaríamos nunca a um conhecimento mais profundo sobre a constituição da
cidade como objeto maior da arquitetura.
Em sua condição
concreta, a forma e o conteúdo estão inseparavelmente ligados um ao outro, e é
o conteúdo que é decisivo. Se não
relatarmos a forma da cidade às necessidades objetivas que se apresentarem em
suas relações produtivas e sociais, não conseguiremos compreender plenamente a
forma de seus lugares. De dentro dessa
ação recíproca, entre a forma da cidade e seu conteúdo, a forma não constitui
um fator sem importância. A forma que
apreendemos da cidade, e guia nossa intervenção que a vai modificar, pode
estimular, ou não, o seu desenvolvimento.
Mas a forma não pode ser tomada
como algo em si mesma, sem ser vista como expressão de seu conteúdo
objetivo. Senão cometemos o equívoco neo-kanteano,
confiando mais na imagem sensorial das coisas concretas, em vez de dirigir
nossa confiança às próprias coisas e aos próprios fenômenos.
Kevin Lynch baseia suas
observações, também, em entrevistas pessoais. Dá oportuni-dade a pessoas
isoladas de se manifestarem sobre a "imagem da cidade". Dessa forma, a palavra se apresenta como um
meio essencial para esclarecer o conteúdo das coisas. O significado da palavra é incorporado às
coisas como propriedades objetivas e não como conteúdo da palavra em si. O conteúdo sensorial da percepção toma para
si o significado da palavra e deixa de lado a forma e a função da palavra como
componente da língua. É importante notar
que a palavra não se relaciona com nossa imagem do objeto, mas com o próprio
objeto. Dessa forma, as coisas se apresentam
como veículo de outras propriedades que não somente aquelas apreendidas
imediatamente pelos sentidos. O homem se
apropria, com a ajuda da palavra, do testemunho daquilo que já houve e
incorpora, com isso, uma dimensão histórica do observado.
O que distingue as
interpretações dessa ação recíproca entre o sensorial e o racional é o fato de
a compreensão materialista dialética dar às coisas o caráter primeiro, e de ver
o conhecimento como um processo que permite a aproximação gradativa da verdade
objetiva. O idealista, de sua parte, tem mais confiança na imagem das coisas no
pensa-mento, nos conceitos e no significado.
Dessa forma, só alcança o sensorial, o signifi-cado imaginado e não
chega ao objeto como tal. O sensorial é
transformado em seu contrário, em algo em si mesmo e não é visto como reflexo
do real que na verdade o é.
Quando nos achamos ante
aquilo que é veiculado por entrevistas pessoais, não devemos esquecer que a
experiência do entrevistado é dirigida por necessidades vitais, independente de
quais os métodos e instrumentos cognitivos empregados. O sensorial age sempre como alguma forma de
comunicação, a que provoca a resposta do corpo à relação entre estímulo e ação. A fruição é atividade em si. Não conseguimos entender inteiramente as
particularidades pessoais da percepção, sem considerar suas causas vitais. O testemunho pessoal sobre a cidade,
estimulado por entrevistas, tem que ser posto em relação com seu
desenvolvimento objetivo, o qual é guiado por leis.
A observação, no nosso
caso da cidade, não pode ser limitada a um esclarecimento passivo. Sua propriedade essencial é a de orientar a
atividade humana, em seu intercâmbio com a natureza e a sociedade. Assim, não podemos limitar a atividade da
percepção à sua manifestação histórica específica, nem tampouco às propriedades
físicas exteriores. É a dinâmica ação
recíproca da Natureza, da Sociedade e da História, dos homens em atividade que
se manifesta em espaço e tempo.
O trabalho de Kevin
Lynch revela esforço em obter uma base mais científica para o conhecimento da
arquitetura. Ele reconhece a observação
e como a primeira fase do conhecimento, e que o mundo externo ao pensamento vem
a nós através de nossos sentidos. Mas,
na medida em que o conteúdo subjetivo do sensorial predomina a vontade de
descobrir a forma como tal, ele afasta a possibilidade de atingir o essencial,
bem como o típico. Os elementos
classificadores da cidade, por ele escolhidos, não são nem essenciais nem
típicos, a não ser em medida limitada e, portanto, de pouca aplicação. Métodos desse tipo substituem frequentemente
o estudo mais amplo da arquitetura, que implica considerar o sensorial e o
subjetivo como uma dimensão em ação recíproca com o consciente e o objetivo,
independente do nível de abstração que isso venha a exigir. O resultado é limitado e, às vezes até
alienante quanto ao conhecimento real sobre as pessoas e as coisas reais.
As três cidades,
Boston, Jersey City e Los Angeles, que Kevin Lynch usa para as observações
mencionadas em seu livro A Imagem da
Cidade, certamente, por diferentes condicionamentos históricos e naturais,
desenvolveram diferentes relações entre forma e conteúdo, entre o ocasional e o
necessário. Mas um fato têm em comum, a
imposição do modo de propriedade capitalista que definiu a maneira das
necessidades atuarem e, com isso, também de se expressarem na forma da
cidade. Aos cidadãos foi usurpada a
possibilidade de um processo realista de conformação de sua cidade, de forma a
espelhar as reais necessidades da vida material e espiritual.
Em nossa carreira como
professor de arquitetura temos tido a oportunidade de aplicar um tipo de
exercício pedagógico habitualmente denominado de percursos urbanos. Trata-se de um tipo de exercício que Kevin
Lynch defende, e que, hoje é comum em todo o mundo. À diferença de exercícios que, de
preferência, se atêm a considerações individuais sobre o que existe na cidade,
colocamos nossos percursos sempre em relação com a formação socioeconômica do
país. Relacionamos nossas observações
com aquilo que Marx chama de anatomia da sociedade.
O problema principal da
anatomia da sociedade, Marx o esclareceu em sua teoria sobre a base e a supra
estrutura. A partir do resumo de tal
teoria, encontrado no prefácio de seu livro Contribuição à crítica da economia
política, foi-nos possível estruturar nossas impressões recolhidas nos
percursos, considerando questões como: Quais e como são os locais de
trabalho? Como é que, justamente, esses
lugares estruturam a espacialidade da cidade?
Quais os lugares que visam a reprodução da produção? Por que e como
surgem os lugares de circulação de pessoas e mercadorias? Que expressões espaciais e temporais têm os
aparelhos jurídicos, políticos, religiosos e culturais da supra estrutura na
cidade? Nossos percursos, naturalmente,
eram muito genéricos, mas permitiam uma primeira visão global a partir das
necessidades objetivas da sociedade, do espaço, e do tempo da cidade.
A
expressão espacial da cidade é ao mesmo tempo temporal
Kevin Lynch tem se
empenhado em, também, compreender melhor a temporalidade da cidade. Em seu livro, What time is this place?, ele defende a seguinte tese:
A
imagem pessoal do tempo é fundamental para o bem-estar individual, assim como
para que tenhamos êxito na hora de
dirigir a mudança ambiental e para que o meio ambiente desempenhe um papel na
construção e manutenção dessa imagem do tempo.
Lynch preconiza a ação
recíproca entre o que denomina de tempo interno e de tempo externo e, quanto à
imagem do tempo, observa o seguinte:
Os ritmos, os objetos e
os acontecimentos existem; mas o tempo e o espaço são vitoriosas invenções do
homem. Cada indivíduo cria de novo o
passado, o presente e o futuro. Aos dezoito
meses, a criança dirá "agora"; aos dois anos, "pronto"; e
aos três, "amanhã" e "ontem" (...) O tempo é um artifício
mental para ordenar os acontecimentos, para identificá-los como coexistentes ou
sucessivos.
Lynch leva em conta os
ritmos e ciclos biológicos e não nega que esses dependam de nosso intercâmbio com
o meio circundante. Mas não leva em
conta que resultem de um longo processo de desenvolvimento.
Pavlov, e vários depois
dele, demonstraram que a temporalidade da psique não é uma invenção do próprio
homem mas constitui um reflexo do movimento do mundo material, ou seja, de suas
propriedades espaciais e temporais. Do
ponto de vista filosófico, Lenin, por sua vez, fez ver que:
Se
as sensações de tempo e de espaço podem dar ao homem uma orientação biológica
útil, o fazem exclusivamente à condição de refletir a realidade objetiva
exterior ao homem.
O tempo existe
objetivamente independente do que pensamos a seu respeito. O que o homem alcançou foi a capacidade de
percebê-lo, mas isso não significa que, a partir de uma abstração desligada da
realidade objetiva, tenha inventado o tempo.
Kevin Lynch considera a
matéria social da seguinte maneira:
Buscamos
uma imagem social do tempo que reforce, celebre e vivifique o presente, ao
mesmo tempo que incremente suas ligações significativas com o passado e,
principalmente, com o futuro.
Pretendemos com Boécio "assegurar toda a plenitude da vida em um
momento, aqui e agora, passado, presente e futuro". A imagem que buscamos deve estar em
consonância com o que podemos descobrir objetivamente acerca do mundo, e deve
ser autêntica, mas também há de estar em consonância com nossos modos
especificamente humanos de pensar e sentir, e com nossa função orgânica. Seria uma orientação para a ação corrente,
permitiria a coordenação e a diversidade, e seria além disso uma base para
dotar de significado a existência humana individual.
Para atingir um
conhecimento mais profundo sobre a temporalidade urbana, temos, também neste
caso, que buscar a essência dos fenômenos e considerar as transformações de
base socioeconômica da sociedade. No
resumo que Marx faz da anatomia da sociedade burguesa, ele se refere a algo que
chama de época de mudança. Trata-se de
momentos da história da humanidade, quando uma formação sócio-econômica,
através de uma revolução social, transforma-se numa nova e mais desenvolvida
formação.
Se realmente queremos
compreender a temporalidade da arquitetura e da formação urbana, não podemos
nos contentar com as dimensões sensoriais que os indivíduos possam ter do
tempo. Nossa visão de mundo será falha
se não considerar a temporalidade social como um fator objetivo. Quando analisamos a transição para uma
formação ulterior a do capitalismo, temos que considerar as formações
socioeconômicas que lhe antecipam e esclarecer os processos que as conduziram
ao estado atual.
Cada formação
socioeconômica tem suas leis históricas próprias que dirigem seu surgimento e
desenvolvimento. Essas formações se
submetem, por sua vez, às leis que as reúnem no processo maior da
História. Expressões espaciais e
temporais das diferentes formações socioeconômicas sobrevivem umas nas
outras. Da mesma forma, encontramos
manifestações de distintas formações convivendo em diferentes países, regiões e
cidades. Como é que eu poderia melhor
entender as expressões espaciais e temporais da arquitetura e dos assentamentos
em meu país de origem, ou em outros por onde a vida me levou, sem esclarecer as
formações socioeconômicas pré-capitalistas, em sua interação e passagem a novas
formas?
Relacionando a
observação do especificamente local na expressão arquitetônica à anatomia
socioeconômica e aos períodos de mudança é que podemos chegar mais perto do
real. Considerando as relações entre o
singular e o universal, podemos esclarecer o que é típico para a arquitetura
local. Para perceber, em seu caráter
típico e em suas circunstâncias típicas, aquilo que, ao mesmo tempo, é
específico, singular e universal, faz-se necessária uma atividade que considere
a arquitetura em seu desenvolvimento como relação entre objeto e sujeito, entre
cidade e sociedade, em ação recíproca do que é especificamente local e do que é
genericamente universal. Isso não se
consegue se depositarmos nossa confiança na fruição e na percepção da
arquitetura, em vez de confiar na própria arquitetura.
Substituindo as coisas
e as pessoas, em suas propriedades e relações concretas, pela fruição e
percepção das mesmas, privamos a fruição e a percepção de sua qualidade
principal: a de constituírem meios cognitivos para aprofundar e desenvolver o
conhecimento sobre as pessoas reais e as coisas reais que compõem a
materialidade concreta dos lugares.
A
arquitetura como a forma da forma
Uma outra tendência do
conhecimento atual da arquitetura -- com apoio no pensamento irracionalista --
a requerer especial atenção analisa, de preferência, o imediatamente manifesto
e constrói a partir de tais observações modelos abstratos que procuram
descrever as relações das coisas e das pessoas entre si. Limitando-se às coisas e às pessoas
imediatas, põe-se de lado o conhecimento sobre as relações das mesmas com
aquilo que não é aparente e presente, e não se atinge o conteúdo essencial das
mesmas: o social.
Fazer da forma algo em
si mesmo, no caso da arquitetura a forma dos lugares da vida em sociedade,
implica uma decadência cognitiva. O filósofo Georgy Lukács caracterizou tal
limitação como sendo uma forma inversa do conhecimento. Em vez de compreender a forma e o conteúdo
numa frutífera relação de toda a atividade humana, isola-se a forma de seu
conteúdo, fazendo do abstrato algo real.
Aquilo que, intelectualmente, foi formalizado é transformado em
estrutura portante das ações subjetivas e objetivas das pessoas, passando a
substituir o processo real. Resulta
disso um empobrecimento cognitivo em favor da conservação da ordem social
estabelecida, em favor da burguesia. O
conteúdo é sacrificado em favor da forma, o real em favor do ideal e o
específico em favor do genérico e abstrato.
A necessidade que o
idealismo burguês apresenta de um funcionalismo e de um estruturalismo
neopositivista não decorre somente da necessidade de melhor saber manusear
concomitantemente uma maior quantidade de funções complexas.* (pé de página
explicando) Constitui, também, a resposta dada a uma postura filosófica que, em
face de situações complexas, não quer reconhecer a realidade concreta em sua
mudança histórica. Trata-se de uma
decadência cognitiva que, ideologicamente, serve às manipulações das classes
dominantes.
A ação recíproca do
funcionalismo e do estruturalismo, como ciência social, explica aquilo que
poderia ser denominado de teorias da análise de sistemas aplicadas à
arquitetura. Análise de sistemas,
estruturalismo e funcionalismo visam, segundo o enfoque idealista, esclarecer
como os sistemas, suas estruturas e funções funcionam. Como são motivadas, ganha menos atenção. Acontece que o processo da socialização, bem
como suas causas, não pode ser esclarecido somente através do conhecimento das
formas e das relações funcionais. Para
resolver o problema de como a sociedade funciona, de como é motivada e de como
se desenvolve, não podemos limitar a compreensão do processo da socialização a
funções, estruturas e sistemas. Temos
que analisar a socialização tanto estrutural como geneticamente, o que resulta
na explicação de sua estrutura histórica e, ao mesmo tempo, na explicação da
estrutura através da sua historia.
Funções, estruturas e
sistemas são instrumentos cognitivos indispensáveis. Seria errô-neo não reconhecer a importância
dos mesmos ante a necessidade de captar o movimento, os processos e a
transformação da realidade em formas do pensamento. Seria errôneo, também, não reconhecer a
capacidade de desenvolvimento da lógica não-dialética. Não podemos negar que seus métodos de
estruturação e sistematização têm validade científica quando da análise de
situações determinadas. O que não
podemos ignorar, no entanto, é que esses métodos apresentam problemas que só o
método dialético pode resolver. Quanto a
lógica formal, em seu esforço para refletir uma determinada situação se afasta
do conhecimento que esclarece a transformação e o desenvolvimento, como a
filosofia, a estética, a moral, a política e as várias ciências históricas,
deparamos com problemas deste tipo.
As teorias de
Cristopher Alexander constituem um interessante exemplo de como, segundo a
lógica formal neopositivista, podem ser formulados modelos teóricos visando à
aplicação concreta em problemas de arquitetura. Seus textos, The timeless way of a building;
A pattern language; The Oregon experiment; e A city is not a tree, consideram,
preferencialmente as coisas imediatas e a opinião dos usuários, quanto a seus
lugares e ao uso dos mesmos. Tal como
Kevin Lynch, Christopher Alexander se limita a buscar a forma como algo em
si. Aquilo que os distingue é o fato de
Lynch buscar a forma numa imagem sensorial que reflete o existente, enquanto
que Alexander busca, na proposta abstrata, uma forma que ainda não existe. O processo de passagem da imagem sensorial
daquilo que existe para a imagem abstrata daquilo que se propõe não é analisado
nem por Lynch nem por Alexander. Se
interessam por duas situações cognitivas sucessivas mas distintas, sem vê-las
num processo de desenvolvimento do sentido, do conhecido e do praticado.
O problema central das
teorias de Alexander reside no conflito entre reconhecer a necessidade de
melhor captar a complexidade da arquitetura e, ao mesmo tempo, ignorar a
transformação histórica da sociedade, da condição de objeto para a condição de
sujeito da arquitetura. Alexander
reconhece o quanto o objeto da arquitetura é complexo e propugna por novos
instrumentos cognitivos, tais como: modelos matemáticos para análise e
síntese. Ele vê tal desenvolvimento como
tão inevitável quanto o desenvolvimento de novas ferramentas para trabalhos
que, por um lado, levam em conta uma considerável quantidade de funções e, por
outro, têm uma certa flexibilidade ante o imprevisível. Dessa forma, ele não consegue resolver o
conflito entre aquilo que foi pragmaticamente formulado, a partir do
imediatamente manifesto, e a falta de conhecimento quanto à dinâmica da
realidade. A transformação dos
habitantes das condição de objeto para a condição de sujeito da arquitetura e
do planejamento implica uma luta que só pode ser resolvida com métodos
dialéticos.
Em Notes on the synthesis of form, Alexander lançou a base da teoria
que desenvolve em seus livros posteriores.
Seu enfoque da arquitetura está marcado pela vontade de caracterizar os
contextos urbanos, as relações dos edifícios, entre si, e de transferir as
relações humanas, suas motivações e o desenvolvimento das mesmas para um plano
abstrato. Quando analisa o processo
consciente da projetação, ele afirma que antes de transformarmos problemas em
formas, pelo fato de sermos autoconscientes, temos que inventar, antes de mais
nada, parâmetros conceituais para o nosso projeto. Não submetendo tais parâmetros a um processo
cognitivo social mais amplo, permite-se, no entanto, a um , ou a alguns poucos,
inventar, pragmática ou emotivamente, os mesmos, dando livre acesso aos
subjetivismo.
Para incorporar
plenamente o social na conceituação da arquitetura, não basta os métodos e os
perfis profissionais da sociedade capitalista.
Faz-se indispensável considerar a transformação histórica das relações
entre a arquitetura como forças produtiva e as relações de sua produção. As organizações próprias dos trabalhadores e
dos moradores têm que ser incorporadas ao planejamento e à configuração
arquitetônica.
OBS. Continua em próxima postagem
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