A
SOCIEDADE COMO PORTADORA DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA
Frank
Svensson
Ao reconhecermos que o processo social de
produção interage com todas as outras formas de atividade humana, notamos
também que a produção material e a produção espiritual se processam em ação
recíproca, e percebemos ainda a existência de processos criativos no nível da
sociedade como um todo. Considerando a matéria social, em suas formas de
produção e em suas relações sociais, como veículo de manifestações espaciais e
temporais, passa a ser de interesse especial uma estética da sociedade. As
transformações sociais manifestadas na configuração dos assentamentos humanos
passam a ser do maior interesse para a estética. Podemos falar, sem reservas,
de uma estética da sociedade, se entendemos a arquitetura como ramo artístico
da realidade em toda a sua materialidade. Isso não nos limitando aos edifícios
e às coisas como portadores de manifestação artística, mas incluindo as pessoas
e suas formas de agrupamento como veiculadoras de expressão artística.
Um dos aspectos essenciais da estética da
sociedade reside no fato de o trabalho constituir a transformação de atividades
em seres e coisas que trazem em si o testemunho de como surgiram. Através do
trabalho, a criação de novos seres e novas coisas é, ao mesmo tempo, submetida
a um processo de objetivação e a um processo de subjetivação. A matéria, em seu
estado natural, é transformada em objetos, impondo à criação humana
comportamentos específicos e relações sociais indispensáveis. O que é, então,
próprio à criação no nível de toda a sociedade e diferente da criação do
indivíduo?
Nos países capitalistas, empregaram-se
diferentes conceitos quanto a condições e modo de vida. Durante muito tempo,
falou-se de “standard de vida” e “renda per capita”. Durante
os últimos anos, tem-se muito empregado a expressão “qualidade de vida” sem
maior precisão quanto a seu significado. Na maioria das vezes, qualidade de
vida tem sido vista como ligada à alienação das pessoas para com seu meio
ambiente e, principalmente, em relação à natureza. O sociólogo espanhol Manuel
Castells fez ver, em seu livro Luttes urbaines, como empresas
multinacionais investem enormes somas em programas, visando a lucros com
“melhoria da qualidade de vida”. O capitalismo se deu conta da genuína força
existente nos movimentos de defesa do meio ambiente, e procura subjugá-los num eco-establishment
de produtos naturais produzidos em série, e em inúmeras soluções contra
a produção de impurezas. Isso, depois, é envolvido numa atmosfera de propaganda
com o intuito de fazer as gentes se esquecerem da luta de classes e das
condições de propriedade que motivam e orientam a crescente pilhagem da
natureza, principalmente nos países pouco industrializados.
Conceitos quantitativos e qualitativos da
sociedade e do processo da socialização pecam sempre por falta de clareza, se
não consideram o modo de vida relacionada às condições concretas de vida. As
atividades humanas pressupõem o uso de objetos que surgiram por meio de
trabalho anterior e por relações entre homens, as quais foram determinadas
pelas condições sociais reinantes. Mas, através das atividades, criam-se novos
objetos para diferentes formas de uso, e a permuta dos mesmos entre os homens
gera novas formas de relações sociais. Assim, na realidade, não é possível fazer
diferença entre modo de vida e reais condições de vida. Não conseguimos
apreender a vida das pessoas sem saber o que produzem e o que consomem, se
possuem condições de trabalho estável com salário garantido, se vivem em casas
confortáveis ou não, por quantos anos vão à escola, quais os meios de
transporte dos quais se valem, etc. A partir dessa base de relações, entre modo
de vida e relações de vida, desenvolve-se uma
ação recíproca
dialética de qualidades, tais como riqueza, liberdade e cultura. Esclarecendo
a ação recíproca dessas categorias da totalidade social, conseguimos nos
aproximar de uma estética da sociedade.
Nossas primeiras impressões do que seja riqueza e liberdade são
predominantemente sensoriais. A passagem para a compreensão da realidade de
tais aspectos da vida implica, no entanto, a objetivação das primeiras
impressões subjetivas. Para chegar à realidade da riqueza e da liberdade, Marx
as relatou ao trabalho. Ele fez ver que, durante parte do tempo de trabalho, o
trabalhador cria a produção indispensável a suas necessidades. Durante a parte
restante do tempo de trabalho, ele cria a mais-valia que o capitalismo retém,
sem lhe remunerar. A própria essência da exploração capitalista reside na
mais-valia e explica por que os capitalistas estão interessados em que aumente
cada vez mais. Numa sociedade que se decidiu pelo socialismo, o tempo de
trabalho e o tempo livre são distribuídos visando à eqüidade. Os capitalistas
perdem o acesso à mais-valia de outrem e a produção é desenvolvida como condição
para, ao mesmo tempo, obter-se riqueza e liberdade. Novos valores só podem
surgir por meio de aumento da produção em ação recíproca com o desenvolvimento
das aptidões humanas. O tempo liberado para o lazer, para a recreação, que
permite o desenvolvimento das aptidões, só pode resultar de relações de
produção desenvolvidas. Em parte, o trabalho é desenvolvido em favor de
realização e lazer em si e, em parte, visando permitir tempo livre para o uso
dos produtos e para o desenvolvimento cultural.
Às
custas da classe trabalhadora nacional, bem como dos desempregados e dos países
e das regiões pouco industrializadas, os países capitalistas altamente
industrializados conseguem apresentar “exemplos de exceção” de elevado standard
de vida. Mas, o resultado concreto que a “espontânea” economia de
mercado consegue apresentar a assalariados, desempregados e povos pouco
industrializados é o fato de não proporcionar e repartir riqueza e liberdade
para todos. Para o capitalismo, a intensidade de trabalho, o arrocho salarial e
o endividamento dos países pouco industrializados não se dão por acaso, mas
constituem condição objetiva para continuada exploração. Por isso, nem riqueza
nem liberdade podem ser garantidas a todos. Isso leva a situações
insustentáveis, fazendo com que a maior parte da população, em diversos países,
cada vez mais se decida por novas formas de democracia, distintas da burguesa.
As novas formas de democracia que surgem expressam a passagem de uma liberdade
formal, de direito, para uma liberdade econômica e de toda a sociedade, como
condição para a criação de tal riqueza. Riqueza e liberdade limitadas a certos
indivíduos podem, então, evoluir para o enriquecimento da individualidade de
todos os membros da sociedade.
Os adeptos do liberalismo querem fazer crer que
essa nova forma de liberdade não seja liberdade. Mas, o que é então liberdade?
Liberdade de que e para quê? Será possível alcançar a liberdade real fora da
tendência que leva as pessoas a se colocarem em coerência com a natureza e suas
leis, bem como com os processos da sociedade? Tal coerência com a natureza e
com a sociedade implica a crescente conscientização, quanto a suas leis e
processos, para agir em consonância com os mesmos e não provocar conflitos pela
imposição voluntariosa de desejos e interesses pessoais. É possível isso
acontecer, a não ser através do processo da proletarização e pelo
desenvolvimento do processo da produção? O fato de o trabalhador deixar de ser
um simples componente do processo tecnológico da produção, e passar a programar
e regular o mesmo, é que leva a mudanças qualitativas. O caráter e o conteúdo
do trabalho se modificam em favor de uma atividade mais criativa que exige
maior capacidade de relacionar o específico a globalidades maiores. Isso
apresenta novas exigências à formação e à qualificação do trabalhador, assim
como a novas formas de organização das classes obreiras, visando à melhor
repartição do trabalho dentro das relações entre agricultura e indústria, entre
educação, pesquisa e serviços.
Quando o processo de produção gera novos
valores visando a maior riqueza de vida para todos e, assim, leva à liberdade
das pessoas, toda a sociedade pode exercer sua atividade criativa com
plenitude. É dessa 'coerência', entre a sociedade e a natureza, que surge a
ambiência mais rica da espacialidade e da temporalidade de nossos lugares. A
necessidade de considerar uma estética da sociedade torna-se então cada vez
mais evidente.
Uma estética da sociedade combina mal com os
conceitos burgueses e pequeno-burgueses de arquitetura, os quais tiveram como
objetivo o edifício em si e a intensidade do desfrute espacial. Mas,
a atitude daquela parte do povo que não é beneficiada pela arquitetura
estabelecida não pode ser a de aguardar o grande dia da eqüidade. Cada situação
específica apresenta exigências próprias, quanto a como lutar por justiça
social e por desenvolvimento. O que todas as situações, no entanto, têm em
comum é a necessidade de relacionar a prática com o conhecimento de como a
globalidade maior se desenvolve. Considerar os métodos e os processos dedutivos
é tão importante como considerar os indutivos. Caso contrário, seremos
facilmente vítimas das chamadas “teorias da convergência”, as quais, grosso modo,
insinuam chegarmos a uma sociedade melhor, independente do caminho escolhido.
Como teorias da convergência, classificamos
aquelas teorias sobre a socialização que propugnam por uma espécie de
“capitalismo popular”, afirmando ser o Estado burguês um “Estado de bem-estar”.
Quer se fazer crer que, em seus estágios avançados, não existem diferenças
essenciais entre países capitalistas e países socialistas. Com isso, os países,
independente do caminho escolhido para seu desenvolvimento, mais cedo ou mais
tarde, atingiriam um estágio “pós-industrial”, cuja natureza deve decorrer de
um elevado nível de desenvolvimento científico e técnico. Mas, com um tal
enfoque, fazemos vista grossa ao fato de o desenvolvimento dos países
capitalistas haver se dado às custas do subdesenvolvimento dos países pouco
industrializados, os quais, dentro do sistema capitalista, se tornam cada vez
mais dependentes e explorados1.
1. As teorias da convergência
surgiram com P. Sorotkin, que exercera o cargo de secretário de Kerenski e
havia sido professor de sociologia em Leningrado. Com a queda do governo
Kerenski, Sorotkin transferiu-se para a Tchecoslováquia e posteriormente para
os EEUU. Ali elaborou uma teoria contra o marxismo-leninismo e uma obra
panfletária contra o socialismo: EEUU versus URSS. E durante a década de
1940 que Sorotkin formula sua teoria da convergência, na qual defende uma ação
conjunta do "liberalismo do Ocidente" e do "coletivismo do
Oriente". Seu principal livro é: A crise da nossa época.
As teorias da convergência que
sucederam à de Sorotkin seguem duas tendências principais: uma 'pessimista' ou
'catastrófica', que teme a destruição da humanidade, e outra que constitui uma
variante do reformismo. Os defensores desta declaram que tanto o socialismo
como o capitalismo constituem fases de transição para uma sociedade 'pós-industrial'.
Entre os teóricos desta segunda tendência encontram-se Daniel Bell e seus
alunos, Oswald Rostow, J. Galbraith e Alwin Toffler. Toffler é o líder de uma
“terceira geração” de teóricos da convergência e opina que a revolução
técnico-científica leva a conseqüências idênticas no capitalismo e no
socialismo.
No campo da arquitetura, as teorias da
convergência se refletem através do pós-modernismo, o qual sucede ao modernismo
arquitetônico, estruturado a partir das idéias dos Congressos Internacionais de
Arquitetura Moderna (CIAM). Distancia-se da tendência social-realista da
arquitetura, a qual se vinculou, muito mais, ao processo de proletarização da
sociedade industrial e às organizações próprias do proletariado, vindo a se
manifestar nas soluções de habitação e de urbanismo de enclaves da
social-democracia austríaca, nos anos 30, nas experiências e no desenvolvimento
da arquitetura funcionalista dos partidos social-democratas do norte da Europa,
bem como na arquitetura e no urbanismo dos estados obreiros surgidos após a
Revolução de 1917. Para obter clareza quanto à diferença fundamental entre
essas tendências da produção da arquitetura, é necessário, na opinião do autor,
analisar a relação entre o sujeito e o objeto da arquitetura em face do processo
de proletarização da sociedade. Dentro do processo de proletarização, as
classes obreiras tendem a passar de objeto a sujeito da arquitetura, o que não
é levado em conta pelo pós-modernismo.
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