Uma herança de surpreendente atualidade
Tadução do 8º capítulo do livro::
Tadução do 8º capítulo do livro::
Robert Misik: MARX PARA
APRESSADOS
Tradutor: Frank
Svensson
Brasília, 23.01.2006.
Da mesma forma como uma
galinha cega pode catar grãos, os maiores pensadores podem cometer enormes
erros. Algo que talvez se deva ao radicalismo intelectual necessário para
reverter velhas ideias e derrotar os ídolos de antanho – um radicalismo que não
se administra mais, mesmo se ele deve acionar até ao fundo a dinâmica de seu
próprio arrazoado. Quase por definição, os pensadores radicais obedecem ao
princípio que vale mais se equivocar nas grandes coisas do que ter razão nas
pequenas. Os erros que encerra a obra de Marx são desses. Marx era convencido,
de um extremo ao outro de sua obra, que as condições de propriedade burguesa,
ou seja, mais de duzentos anos de formas de desenvolvimento das forças
produtivas produziriam em breve suas próprias cadeias e que, como o feudalismo
outrora, a gangue do feudalismo explodiria ela também, A socialização do
trabalho e a centralização de seus meios materiais alcançam um ponto em que não
podem mais ser contidas em seu envelope capitalista. Esse envelope se rompe em
pedaços. A hora da propriedade capitalista soou. Os expropriadores são por sua
vez expropriados. (C.I. 3, p. 205), previu Marx na célebre conclusão do Livro I
de O Capital – e a produção
capitalista engendra ela mesma sua própria negação com a fatalidade que preside
as metamorfoses da natureza. A acumulação capitalista e o princípio da
concorrência conduzem à queda dos pequenos capitais e à concentração dos
grandes, analisa Marx. As novas formas de sociedades capitalistas – como, por
exemplo, a formação de grandes sociedades por ações – criando grupos a uma
escala sempre maior, conduzindo a um crescimento constante do numero de
monopólios. Esse capitalismo suscita um desenvolvimento cada vez mais considerável
das forças produtivas; portanto, chegando a um certo ponto não será mais capaz
de inovar. Ele aperfeiçoará a distribuição social do trabalho, combinará os
resultados cada vez mais complicados do trabalho combinado, mas tirará cada vez
menos partido das chances oferecidas por esta nova organização da produção.
Pois o princípio da concorrência não suporta o trabalho cooperativo e a
propriedade capitalista que condena a maior parte das gentes a um trabalho
assalariado estúpido, compromete as grandes possibilidades que oferece
potencialmente a criatividade dos trabalhadores. O capitalismo é um entrave à
inovação.
Apesar de rigorosamente
lógico, esse raciocínio se mostra falso. Atualmente a economia capitalista
conseguiu o salto da produção industrial de massa na era de novas tecnologias,
na época do trabalho intelectual, da informatização, da produção telecomandada
pela microeletrônica, da biotecnologia, e da Internet, ninguém, hoje,
continuará pré-vendo, uma incapacidade de inovação do capitalismo. Melhor do
que isso: este capitalismo se revela capaz de explorar a fundo a criatividade
de seus trabalhadores intelectuais, considerar seus impulsos rebeldes, sua
resistência a se integrar como forças produtivas, e ele os força a se inserir
na malha do trabalho cooperativo e autônomo que se mostra naturalmente cheio de
princípios do salariado, da concorrência, do valor. Seria hoje arriscado prever
um revés do capitalismo por causa de sua inaptidão de organizar em cooperação
um trabalho autônomo e responsável. De fato, as grandes empresas, os
trabalhadores independentes do tipo Eu SA e, por exemplo, os que concebem logiciels não são mais instados a
coordenar em alguns segundos o trabalho entre Nova Yorque, Ulm e Bangalore, a
lhe reestruturar, e lhe administrar de forma criativa?
Apesar das megafusões
destes últimos anos, o processo de formação de monopólio parece hoje muito
ambíguo: os monopólios aparecem e desaparecem, os velhos mostram-se pesados;
são objeto de desconfiança das empresas recentemente criadas que adquirem elas
mesmas dimensões impressionantes, mantendo assim indefinidamente o princípio da
concorrência. Sem considerar as leis antitrustes impostas pelo Estado, o que
nos remete a uma das circunstâncias que motivaram mudanças as quais forçaram Marx
a colocá-las entre parênteses em seu arrazoado. A pauperização prevista por
Marx como consequência lógica do princípio capitalista – mesmo se em O Capital,
ele fala mais de uma pauperização relativa do que absoluta – não se agravou;
deixemos em suspenso a questão de saber se é da lógica da produção capitalista
como tal de acrescentar também uma certa melhoria da qualidade de vida dos
trabalhadores (como o pretendem os pais da economia de mercado) ou se, também,
esse fenômeno não seria mais o resultado de fatores de modificação, tais como
as intervenções do Estado visando manter a estabilidade do sistema, ou consequência
de vitórias obtidas pelas classes desfavorecidas em suas lutas por sua parte da
riqueza social. Uma coisa é certa: os proletários têm hoje muito mais o que
perder que só suas cadeias.
A argumentação segundo
a qual o Estado, e principalmente o Estado social da Europa ocidental, de fato
não passa de uma instância de dominação de classes, um instrumento da ditadura
da burguesia à qual responder – após a revolução – por uma ditadura do
proletariado a qual, uma vez consolidada, conduzirá, pouco a pouco, ao
desaparecimen-to do Estado, só é sustentada hoje por adoradores inveterados de
Marx.
Surpreendentemente a
teoria formulada por Marx não tem sofrido por esses erros – nem mesmo da
evolução social. No início do século 20, o marxista húngaro Georgy Lukàcs
resumiu esse estado de coisas num paradoxo: Supondo, mesmo sem admiti-lo – que
a pesquisa contemporânea tenha provado a inexatidão de fato de todas as
afirmações particulares de Marx, um marxista ortodoxo sério poderia reconhecer
sem condições todos esses novos resultados, rejeitar todas as teses
particulares de Marx – sem, portanto ser forçado, um só instante, a renunciar a
sua ortodoxia marxista. (História e
consciência de classe, Paris, Ed de Minuit 2004, p. 17).
O mérito intacto de
Marx repousa sempre sobre o método de análise dos processos sociais por ele
concebido. Assim, é verdade ainda hoje não existir melhor maneira de aprender
pensar do que ler Marx. É verdadeiramente grotesco querer fazer deste pensador
um doutrinário puro e duro, ele, para quem a história é feita de contradições,
de surpreendentes paradoxos, de inesperadas piruetas e de dialéticas
cambalhotas. Ele que soube nos mostrar que o mundo não é um conjunto de coisas
findas, mas um complexo de processos como escreve Engels em Ludwig Feuerbach e
o fim da filosofia clássica alemã (p. 61). A leitura de Marx é um remédio
contra todos os positivismos atrofiantes e as verdades definitivas. Preferimos
o lema: não é porque seja assim que restará assim. Não importa qual situação
social, por mais profundamente enraizada que possa parecer, encontra-se sobre o
fio da navalha, sempre pronta a retornar. O mundo é estável, fixo e imóvel?
Não, o mundo está em perpétua mudança, ele é submetido à lei de uma eterna
dinâmica que não esconde nenhuma verdade metafísica, mas simples-mente a ação
recíproca de necessidades, atos individuais e contingências. Estaremos no fim
da história? É preciso se resguardar de tais predições; quem sabe o que o
amanhã nos reserva? Como alguém de são juízo pode sucumbir à ideia que a ordem
social que nos orientou até aqui é uma ordem definitiva e daqui em diante
imutável? Como é possível, ao mesmo tempo, considerar a eterna renovação e a
permanente transformação da sociedade que se acelera? Não podemos esperar nada
além de uma coisa: o inesperado. Guardemo-nos também de deduzir dos limites do
homem os limites do futuro. Os homens aprendem marchando, enquanto atuam, que
têm uma atividade prática. E na prática social em que, alguns, podem tropeçar
acidentalmente, eles che-gam repentinamente, diz Marx de uma maneira
incomparável, a balançar toda a podridão do velho sistema ... [e vêm] aptos a
fundar a sociedade sobre novas bases (I. A. p.37).
Um pensar decorrente da
leitura de Marx é também imune contra os desencorajamentos propriamente
conservadores contra explicações simplistas e constitui, por consequência, a
condição do conhecimento. Ao mesmo tempo com, em e após Marx., nós podemos
aprender como forças as mais diversas, tais como as ilusões e as condições
materiais, as histerias de massa e as tradições, as estratégias de poder e as
emoções rebeldes, agem umas sobre as outras, para chegar a resultados que
ninguém realmente desejou e que constituem o conjunto de uma estabilidade
precária das condições de vida que nos marcam e são, elas mesmas por nós
marcadas. Porque se surpreender se os mais inteligentes entre os críticos de
Marx o reprovam geralmente de tal maneira que não podem negar sua origem
marxista.
Mais a mais a ciência
marxista dos processos sociais é um medicamento contra todas as cretinices
intelectuais. O marxismo é o modelo perfeito de uma total interdisciplinar-dade.
Onde estariam as nossas teorias sociais as mais avançadas sem Marx? O que seria
do estruturalismo francês sem a análise da estrutura econômica sem sujeito e as
teorias de sistemas alemãs modernas sem a descrição grandiosa do mundo
automático; enfim, que seria dos Estudos Culturais, tão modernos de nossos
dias, sem os ensaios inspirados de Marx escritos por especialistas da cultura
como Frédéric Jameson ou Terry Eagleton? Da mesma forma que a economia de O
Capital não fala de coisas econômicas, mas de relações sociais, o
empreendimento inteiro de Marx é uma ciência humana no sentido mais largo. A
cultura torna-se mercadoria e a mercadoria cultura, o individualismo torna-se
um fenômeno de massa e a desideologização ideologia. Como melhor descrever tudo
isso sem a intuição de Marx para descobrir os paradoxos e as irônicas
meia-voltas?
Como podemos saber tudo
isso sem dar lugar a uma consciência trágica ou a um cinismo doentio – quando
todo desejo de propriedade não faz outra coisa que penetrar na malha cerrada
dos condicionantes externos, quando o crescimento incessante dos potenciais
econômicos e tecnológicos só faz aumentar o abestalhamento e a cegueira? Para
dissimular as depressões há o gesto de Marx: saber que tudo o que nasce,
morrerá infalivelmente, que o pior pode resultar no melhor, que toda regressão
comporta uma parte de progresso e que nas pequenas coisas existem grandes. As
árvores não alcançam o céu. Somos assegurados por outro lado que tudo vai
também no sentido contrário.
É certo que a teologia
secular que encontramos no mundo das ideias de Marx, como o papel messiânico do
proletariado ou essas reminiscências da História Sagrada que guardam ainda a
noção de progresso, nos parecem atualmente vindas de outro planeta. Fato é que
é difícil de ver uma espécie de progresso de Beethoven a Dieter Bohlen* (posto
de lado o progresso incon-testável que representam as forças produtivas de um
estúdio de gravação informatizado) e o progresso que há do bodoque à bomba
atômica é pelo menos discutível
E, portanto não podemos
nos submeter à lógica de uma consciência somente trágica e depressiva. Certo, a
história não é uma História Sagrada ao fim da qual se encontrará a sociedade
sem classes, de sujeitos autônomos; mas ela é também um processo ascendente e
dotado de uma finalidade: existe entre a Europa do neolítico e a Europa
contemporânea uma diferença que merece certamente o nome de progresso. Se,
hoje, Marx não pode mais nos ensinar um otimismo irrefletido, ele pode pelo
menos nos proporcionar uma certa confiança argumentada no futuro.
Cada instante
histórico, mesmo o mais insignificante, é sempre um início; aquilo que segue é
sempre contingencial. Daí porque tudo o que fizermos ser importante.
Pensar com Marx
significa, portanto, neste início de milênio, pensar com as condições de
existência contra as condições de existência que contribuem sempre a produzir –
se isso não é sua negação – pelo menos energias rebeldes. Se for verdade que o
capitalismo sem limite, refinado, baseado no saber se entende tornar produtiva
por si mesma a vontade dos sujeitos, é igualmente verdade que ele suscita essa
vontade sobre uma base cada vez mais larga. O capitalismo não se esvazia, como
pensava Marx, porque não sabe tirar partido da criatividade que tem o poder de
suscitar, é precisamente porque tem o poder de despertá-lo, explorá-lo, de
alimentá-lo e cultivá-lo que cria um potencial de emancipação – não mais sob a
forma da unidade da classe obreira como organizaram os Antigos, mas sob a forma
da vontade de um grande número. Uma multidão de homens não unidos por muita
coisa, mas donos de uma ideia de vitória que escapa a simples racionalidade
pecuniária, de uma dignidade que sonha autodeterminação – e esta não só em
metrópoles isoladas, mas também à escala planetária. Sonhos (ou mal-estar
quando são irrealizáveis), que – notemo-lo – não inventados por espíritos
sonhadores ou por teóricos da esquerda-caviar
(Possivelmente também), mas sonhos realmente imbricados nas condições elas
mesmas. A dinâmica interna do
capitalismo condiciona as idéias de autonomia que se chocam sem cessar com as
realidades da produção, da organização, da relação com o capital, e as
estruturas de dominação. As consequências são múltiplas: frustrações, revoltas
abortadas e existências subjugadas, mas, por outro lado, invenções lúdicas de
novos contextos de vida – pelas jovens gentes que fazem seu truc – tentativas de resistência, as Eu
SA e uma arte de viver. Esse capitalismo é um teatro, um laboratório que tem
por bela particularidade que as experiências feitas sobre esta cena podem ao
mesmo tempo esvaziar e acertar. O movimento material fez os sujeitos e não os
adiciona sem contradições. Ao contrário, não cessa de reproduzir as
contradições. Como um nó inextirpável, o potencial de emancipação ocupa o
espaço paradoxal ocupado pelo capitalismo. Sobre este capitalismo da era
informacional, com as surpresas que ele proporciona, Karl Marx, o velho doutor
de um pensar com condições contra as condições, tem muito a dizer -- e foi o que quisemos tornar acessível ao leitor.
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