Frank Svensson. Apontamentos para o estudo das origens europeias
da arquitetura no Brasil. O trecho referente a Grandjean de Montigny na Europa.
A atuação de Montigny na Alemanha
Entre
1810 e 1813 Montigny trabalhou, na cidade de Cassel, para Jerome Bonaparte, a
quem Napoleão fizera rei da Vestfália do Norte. Não é possível ignorar o fato
de tratar-se de um cargo de arquiteto num governo de intervenção, ou mesmo, de
ocupação.. Isso explica, em parte, por que o trabalho de Montigny, em Cassei e
em suas cercanias, constitui um período pouco conhecido da sua obra. Parece,
mesmo, tratar-se de atividades mais conhecidas no Brasil do que na própria
Alemanha.
Capa de livro publicado por Montigny sobre o seu projeto para a sala do trono de Jerome Bonaparte, em Cassel
No
Brasil, o seu próprio testemunho, dado a seus alunos e por esses a outras
gerações de arquitetos do Rio de Janeiro, viria a resultar no inusitado
interesse atual por sua vida c obra.
Na
Alemanha os príncipes territoriais eram grandes proprietários de terra,
permitindo uma nova forma de feudalismo. Diversos fatores haviam debilitado o
poder político e econômico da burguesia alemã. O espírito burguês, quanto às
artes, brilhava com sua ausência durante os séculos XVII e XVIII. O estilo
cortesão-aristocrático era diretamente importado da França ou trazido por
intermédio de artistas franceses, convidados a trabalhar na Alemanha. Comum
também era se copiar obras francesas. inclusive as de arquitetura. 28
A dinastia de arquitetos Du Ry constitui um
exemplo disso. Ligou-se a Cassel através de convite feito para vir atuar na
região de Hess feito a Paul Du Ry que se encontrava trabalhando na Holanda. O
filho de Paul, Charles Du Ry (1692-1757), veio, poste-riormente, a ser o
Oberbaumeister em Cassel. Ali nasceu o filho deste, Simon Louis Du Ry
(1726-1799), o qual estudou arquitetura na Suécia, na França c na Itália,
tornando-se mais conhecido por seu plano para a cidade de Carlsruhe.29
Simon
Louis Du Ry foi substituído, em Cassei, logo antes de sua morte, pelo arquiteto
alemão Heinrich Christoph Jussow (1754-1835). Durante três anos Jussow havia
estudado, na França e na Itália, como bolsista do conde regente da região de
Hess. Ganhou, ainda, uma bolsa de um ano para estudar na Inglaterra. Jussow foi
Baudirektor da cidade de Cassel até a ocupação francesa, a qual durou de 1806 a
1813.30
Durante
o período de Jerome Bonaparte corno rei da Vestfália do Norte, Jussow, um
arquiteto de grande experiência, foi substituído pelo bem mais jovem Grandjean
de Montigny. Por que foi substituído e a partir de que princípios éticos c/ou
ideológicos Montigny aquiesceu em substituí-lo é difícil detectar com precisão.
O fato constitui, no entanto, um exemplo histórico de algo que não é nada
incomum, principalmente em se tratando de trabalho de arquiteto em pais que não
o seu de origem.
Em
situações sustentadas por novas condições políticas, ou financeiramente
promissoras, muitos arquitetos têm substituído outros sem a mínima atenção para
com os trabalhos anteriormente já desenvolvidos por aqueles. Isso é feito
principalmente em se tratando de substituir os arquitetos do país hospedeiro,
sem maiores problemas de consciência ou de ética e sem maior cuidado em
arraigar as propostas no contexto cultural e histórico do novo país.
Para
tomar posição em face de um tal comportamento, parece-nos necessário considerar
que a ética surgida com a passagem da formação feudal para a capitalista, como
era o caso na França, implicou o surgimento de um novo tipo de indivíduo, o
qual passou a julgar o mundo de maneira nova e a se comportar de forma distinta
da da nobreza. Novos róis e novos valores surgiram e, com isso, uma nova
maneira de pensar. Formou-se uma nova estrutura de consciência ética.
Conhecimento e moral passaram a desenvolver-se em ação reciproca, formando uma
unidade totalmente nova. A época da li-vre concorrência abriu novos campos à
criatividade do arquiteto.
Com
a revolução burguesa, as formas de supremacia de classe foram forçadas a se
modificar. As formas pelas quais as diferentes classes sociais se comunicavam
entre si ganharam traços mais dignos. Tratava-se de novas condições de classe,
marcadas por re-lações humanas que, quanto à forma passaram a mostrar traços de
maior consideração para com o próximo. Mas, quanto ao conteúdo, permaneceram
antagônicas com relação ao poder e à propriedade.
Hipocrisia,
egoísmo e interesses mercantis, continuaram a impregnar as relações humanas
comuns à formação socioeconômica capitalista. O desenvolvimento de novos
hábitos deu-se dentro de um processo cheio de contradições. As questões
relativas à personalidade do arquiteto passariam a ser vistas como o centro de
sua vida espiritual, com extensões aos campos da ética, da filosofia, da
religião e das artes. Suas iniciativas passaram a ser relatadas ao conceito de
sucesso. Obter o mesmo implicaria em reco-nhecimento social, fazendo crescer,
como consequência direta os méritos morais do arquiteto em questão. A
iniciativa, o empenho, o cálculo e a intensidade aplicada em obter a solução
das contradições pessoais ligou-se à ambição, apresentada como um es-tímulo
natural da sua vida social. •
À
descoberta que o homem fez de si mesmo, segundo o en-foque burguês, se seguiu a
crença de que a libertação do indivíduo automaticamente implicaria seu
aperfeiçoamento moral. A forma de atuar do arquiteto passou a refletir a
confiança na capacidade de o indivíduo livre
autodesenvolver-se. Um desenvolvimento sem pré-requisitos, que não pode levar a
resultados que não os favoráveis, mesmo os de ordem moral. O individualismo e o
racionalismo caracterizam essa liberdade de pensar, de amar e de criar do
indivíduo.
Para
a arquitetura surgiu um novo tipo de personalidade. A arte da Renascença jogou
luzes sobre o mundo interior do arquiteto, exposto a tendências contraditórias,
inerentes ao novo período. Um período que misturou de forma muito nítida,
valores em extinção com aqueles que
surgiram com as condições burguesas. Uma tensão que se desenvolveu ligada ao
enfoque da personalidade do indivíduo, como ser natural e como ser moral, e que
marcaria, de forma muito clara, todo o século XIX.
Durante
o período bonapartista de Montigny, a origem revolucionária do mesmo não pode
ser ignorada, mas ao mesmo tempo o significado popular da Revolução era
aniquilado inapelavelmente. O poder pertencia à bem aquinhoada burguesia. O
apoio que esta obtivera da classe operária, para conquistar o poder, passou a
ser totalmente ignorado. Da mesma forma, as tendências contraditórias da
arquitetura tornaram-se nítidas, pondo aquelas que limitavam-se a buscar o
cerimonial e o convencional, em contradição com as que buscavam o conhecimento
de novas formas de vida e de trabalho.
A
arquitetura que buscara conhecimento na História, desde que Souflot fornecera
os desenhos para a igreja de Saint-Geneviéve (Pantheon), em Paris, passou a
entregar-se a elegante ilusionismo e à astúcia para com os princípios da arte
renascentista. A reinterpretação das expressões da Antiguidade, passou a sofrer
influências de uma nova visão de mundo e a conduzir a uma nova interpretação da
liberdade de fazer arte.
A
liberdade reconhecida ao gênio passou a ser entendida como um direito de cada
arquiteto. Toda e qualquer expressão pessoal passou a ser considerada como
única, insubstituível, obedecendo a leis próprias e a seu código próprio de
normas. Ao arquite-to passou a ser permitido integrar escolas, grupos e ter irmãos
de luta, mas em se tratando de criar só era considerado a si mesmo. Tratava-se
da arquitetura proposta por um homem isolado, diferente da de seus confrades de
produção arquitetônica.31
As obras de Montigny na Alemanha
As
atividades de Montigny na Alemanha implicaram a manutenção de edifícios da
corte e da capital da Vestefália do Norte, bem como na elaboração de projetos
para agradar a nova "Casa real". Os desenhos de seus projetos estão
guardados em diferentes luga-res. Afora seis desenhos existentes no Rio de
Janeiro, há uma proposta de ampliação da cidade de Cassei, no Hessisches
Staatsarchiv, na cidade de Marburg. Outra parte desta mesma proposta existe em
Potsdam, no Zentrales Staatsarchiv. Alguns desenhos e croquis existem
arquivados no Staatlichen Kunstsamlungen do Palácio Wilhelmshóhe, em Cassei.
Ali se encontram, também, dois exemplares de seu livro: Palais des États et Sa Nouvelle Sale a Cassel.32
Este
livro consta de oito páginas de texto, descrevendo o projeto, e nove pranchas
com desenhos de plantas, secções e detalhes para a Sala do Trono e do
Parlamento, no antigo palácio residencial do conde regente. Durante o reinado
de Jerome Bonaparte na Vestefália do Norte, esse palácio recebeu o
Grandjean de Montigny: Planta da
Sala do Trono e do Parlamento, em Cassel, Vestefália do Norte.
o nome de Palais
des Etats. Hoje é conhecido corno Museu Friedricianum e funciona, também, como
sede das bienais de arte moderna que se realizam em Cassel. Foi impresso em
Paris em 1815, o mesmo ano em que foi editado o seu livro sobre a arquitetura
da Toscana. Ambos os livros são do mesmo tamanho (30x47 cm) e impressos
litograficamente no mesmo tipo de papel.
Morales
de los Rios localiza, erroneamente, a Sala do Trono e do Parlamento no Castelo
Wilhelmshõhe, e não no atual edifício do Museu Fridericianum, onde realmente
foi construída. Visitando o museu, o autor encontrou uma sala dedicada à
história do edifício.. Nela estão
expostos os desenhos de Grandjean de Montigny (um exemplar de seu livro) para a
Sala do Trono, mas sem permitir ao observador verificar que se trata de um
projeto daquele arquiteto.
Os
desenhos aqui citados cobrem somente uma parte dos trabalhos de Montigny em
Cassel. Sabe-se que no Salon de 1814, em Paris, ele apresentou, entre outras
propostas. uma de um arco triunfal para os Grandes Écuries, uma ponte e alguns
chafarizes, para aquela cidade.33
Montigny
propôs a construção, junto ao castelo Wilhelmshöhe, na época rebatizado para
Napoleonshöhe, de um pequeno teatro que pudesse servir ao mesmo tempo como sala
de baile. Seus desenhos mostram um pequeno edifício, de um só piso. Abrigaria
26 lugares no camarote real, o qual estaria situado ao fundo da sala e
ligeiramente elevado com relação ao piso do teatro, capaz de receber pelo menos
urna centena de espectadores. Um arquiteto alemão por nome Klenze reivindica a
autoria desse projeto.
O
projeto de Montigny, conservado no Rio de Janeiro, leva a mais de uma
formulação teórica. As colunas superpostas que indicam a forma arredondada da
sala parecem retomar una forma simplificada de um projeto de tipo Durant da Ecole Polyteechnique, em Paris.34
Grandjean de Montigny: Desenho de
móvel. Arquivo Wilhelmshõhe, Cassei.
Le Vieux Chateau de Cassel incendiou em 1811. Montigny, em colaboração com Hector Scholer,
apresentaram um projeto para sua reconstrução. Propuseram, também, uma praça
com fontes e estátuas. Projetos que jamais foram executados.
Depois
desse incêndio, Montigny elaborou o projeto de um novo palácio real a ser
implantado na cidade. Dois desenhos brasileiros
mostram essa proposta cir-cunstanciada a uma praça redonda no fim da Rue
Royale. Através de um jardim irre-gular chegar-se-ia à praça onde viaturas
poderiam depositar os visitantes. Dali se entrava no edifício de planta
quadrada. Um projeto mais simples parece propor uma variante menos custosa, na
qual foram eliminadas as alas do palácio.
Grandjean de Montiguy: Desenho de móvel. Arquivo Wilhelmshõhe, Cassel.
Grandjean de Montiguy: Desenho de móvel. Arquivo Wilhelmshõhe, Cassel.
Morales
de los Rios atribui a Montigny dois parques de tipo inglês. Um deles é a
proposta de ajardinamento para o novo palácio em Cassel. O outro, Parque
Cathrinenthal, denominação ocasional para o parque do Castelo Wilhelmthal, a 7
km de Cassel, faz parte de uma propriedade de veraneio do antigo conde regente
da região. No castelo, hoje museu, o visitante poderá comprar publicações sobre
o mesmo, nas quais o parque projetado por Montigny consta como tendo sido
configurado pelo paisagista alemão Daniel August Schwartzkopf. 35
A
falta de interesse dos pesquisadores alemães para com a obra de Montigny, em
Cassei, prende-se, naturalmente ao fato de ter sido ele um arquiteto da
ocupação francesa daquele pais. Some-se a isso o fato de as propostas de
Montigny não apresentarem o nível de outros projetos elaborados por arquitetos
franceses estacionados em outros países da Europa, na mesma época. É de se
perguntar, ainda, se a distância, no espaço e no tempo, entre a Alemanha e o
Brasil e entre a época de Montigny e a nossa, não tenha permitido idealizações
e fantasias a respeito, tanto da parte dos que, hoje, à partir da Alemanha ou
do Brasil, preferem esquecer ou dos que querem tornar mais clara a memória da
obra de Montigny. Um problema ligado à romantização e à idealização comum aos
que em outro país que o de origem vão trabalhar num contexto cultural e
profissional distinto.
Grandjean de Montigny fica
desempregado e deixa a Europa
Com
a queda de Napoleão Bonaparte, em 1813, Grandjean de Montigny perdeu o emprego
e teve de deixar Cassel. O tzar da Rússia Alexander I dirigiu-se, em 1815, aos
arquitetos Percier e Fontaine pedindo que sugerissem o nome de um arquiteto
para o cargo de professor de arquitetura na Academia imperial de Belas-Artes de
São Petersburgo. Esse arquiteto iria substituir o arquiteto Thomas de Thomon,
também laureado Prix de Rome, e falecido em 1814. Montigny foi o primeiro nome
lembrado para tal cargo, mas este declinou do convite preferindo a
possibilidade surgida de seguir para o Brasil.
Montigny
veio ao Brasil, em 1816, junto com um grupo de artistas e artesãos franceses. O
Rei de Portugal, havia sido convencido, pelo embaixador da Inglaterra naquele
país, a mudar-se para o Brasil, fugindo das tropas de Napoleão, em 1811, ano em
que o rei Dom João VI seria coroado o imperador do novo mundo de língua portuguesa,
com sede de governo na cidade do Rio de Janeiro.
Grandjean
de Montigny viria a ser a figura principal das mudanças arquitetônicas pelas
quais o Rio de Janeiro iria passar no quarto de século a seguir. Por ironia da
História, as referências para a nova arquitetura e a nova configuração urbana
da nova sede do Império seriam justamente a nova arquitetura e a nova
configuração urbana da Paris de Napoleão Bonaparte, de cujas tropas invasoras
D. João VI fugira para o Rio de Janeiro.
N o t a s :
28
Arnold Hauser: Historia Sopcial de la
Litteratura y el Arte. 3 vols. Ediciones Guadarrama. Madri. vol II, os
capítulos: Alemania y ia Ilustración, Revolución y Arte, e El Romantismo Aleman
y el Europeu Oc-cidental, pp. 797-959.
29.
Hans-Cristoph Dittscheid: Kassel -
Willhelmshõhe, und die Krise des Schlossbaues arn Ende des Ancien Régime
(Cassel -Willhelmshõhe e a Crise dos Castelos no Fim do Ancien Regime).
Wernersche, Alemanha, 1987, pp 19-26.
30.
Ibidem,
31.
A. Titarenko: La Structure de ia
Conscience Morale Essai de Recherche (A Estrutura da Consciência Moral -
Ensaio). Eds. du Progrés, Moscou, 1974, o trecho: “Traits Fondamentaux de la
Structure de ia Conscience Morale Bourgeoise” (Traços fundamentais da Estrutura
da Cosciência Moral Burguesa). pp 142-156. Ver ainda de Shiskin. A. F.,: Etica Marxista. Ed. Grijalbo S.A.,
México DF, 1966.
32. Grandjean de Montigny: Palais des Etats et Sa Nouvelle Sale a
Casse! - Publié par Grand'Jean de Alontigny, Premier Architecte de S. M. le
Roi de Westphalie. Paris, 1815.
33. Grandjean de Montigny
(1776-1850) - Un architecte français à
Rio. Catálogo da
exposição sobre a obra de Montigny, promovida pela Biblioteca Marmottan, entre
26 de abril e 25 de junho de 1988, em Boulogne-Billancourt. O trecho de Werner
Szambien: “Grandjean de Montigny à Cassei”, pp 29-35.
34.
Ibidem,
35. Wolfgang Einsigbach. e Franz Xaver Portenlanger: CALDEN-Schloss und Garten Willhelmsthal
(CALDEN-Castelo e Parque Willhemsthal). Verwaltung Der Staatlichen Schlõsser
und Garten (Administração dos Castelos e Parques estaduais). Hessen. Bad
Homburg vor der Hõhe, 1980.
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