Cingapura e Sucupira
A decisão de fazer o tal
planejamento de 50 anos passa ao largo de qualquer traço democrático de
participação, de consulta e mesmo de comunicação à população
Texto Orlando Cariello Ilustração Mateus Zanon
Opinião
orlando.cariello@terra.com.br
mateus@grandecircular.com
Em Brasília, a primavera traz as chuvas que encerram os longos meses de seca implacável e revigoram o verde. Neste ano, o governo local tomou a si a missão de encorpar o já batido e previsível presente da natureza e agraciar o Distrito Federal com uma surpresa, um mimo a seu ver irrecusável: um “plano estratégico” completo para os próximos cinquenta anos, comprado pessoalmente pelo governador Agnelo Queiroz nas boutiques de novidades metodológicas do capitalismo emergente da Ásia, que aliás tem visitado assiduamente nos quase dois anos de gestão.
Mais que
um anúncio, a anunciação de tempos de desenvolvimento irrigados por uma enxurrada
de investimentos de grandes grupos econômicos internacionais carreados pela expertise
(o termo da moda) dos especialistas da Jurong Consultants de Cingapura, empresa
contratada sem licitação por “módicos” 8,6 milhões de reais, com plenos poderes
para dizer como deve ser Brasília e todo o DF daqui para a frente.
O
arrebatamento do governador e de alguns destemidos auxiliares pelo Plano
Cingapura faz lembrar a obsessão do prefeito Odorico Paraguaçu pela construção
e inauguração do cemitério da fictícia cidade de Sucupira, em O Bem-Amado, novela
televisiva de Dias Gomes levada ao ar quarenta anos atrás. Como Odorico fez com
seu cemitério, o governador Agnelo parece ter transformado o plano na razão de ser
de seu governo, ainda que a população do Distrito Federal esteja, neste
momento, penando com a precariedade dos sistemas públicos de saúde, de
segurança, de educação, de transporte etc. No discurso sucupirano do
governador, o plano será o rompimento com “um passado de atraso e
obscurantismo, para um projeto de longo prazo, sustentável e ao lado de
parceiros com credibilidade no mundo”, enquanto as críticas de arquitetos e urbanistas,
de jornalistas, de entidades profissionais ou de políticos (inclusive aliados
do governo) são meras manifestações de “provincianismo” “miopia”, “falta de informação” e “fundamentalismo”1.
Pode-se
discutir tudo isso, a começar pela possibilidade do governo de Agnelo, com a
composição política e os parceiros que tem, romper com o passado. A “falta de
informação” é de responsabilidade exclusiva do governo, já que a decisão de
fazer o tal planejamento de 50 anos e contratar os consultores cingapurenses passa
ao largo de qualquer traço democrático de participação, de consulta e mesmo de
comunicação à população – tudo indica ter sido tomada entre o governado e seus
círculos mais próximos, particularmente os empresariais. O contrato da Jurong
com a Terracap (por que com a imobiliária estatal?), sem assinaturas, só foi
tornado público no portal do GDF na internet no dia 25 de outubro, um mês
depois de aprovado no conselho de administração da empresa. O termo de
referência, publicado no mesmo dia, mostra a empresa consultora estabelecendo
os termos do contrato, e não uma definição, pelo governo local, do trabalho a
ser feito; a tradução juramentada desse termo tem data de 23 de outubro,
portanto, vinte dias depois da data de assinatura do contrato. Ao contrário do
que diz o governador em sua acusação de “miopia”, as críticas em geral estão vendo
longe, enxergando até mesmo o deslumbramento provinciano que parece ter tomado
conta do governo.
O
“fundamentalismo” apontado pelo governador está, na verdade, no sentido neoliberal
de sua proposta de desenvolvimento da cidade, que submete rigidamente os
interesses da maioria da população aos interesses empresariais. Gerou-se, ao redor
do mundo, uma rede de consultores especializados no chamado “planejamento estratégico
urbano”, modelo de intervenção que se traduz na aplicação de métodos empresariais
de planejamento, de gestão e de marketing às cidades, tratadas como
organizações econômicas privadas e como mercadorias. O “modelo cingapuriano” é
apenas uma variante dessa rede comandada pelo capital internacional, assim como
os “consultores catalães”, estes ancorados na venda do modelo da revitalização de
Barcelona. No Rio de Janeiro, em 1993, um acordo formal entre a prefeitura de
Cesar Maia, a Associação Comercial e a Federação das Indústrias deu origem ao Plano
Estratégico da Cidade, que viria a ser financiado e conduzido diretamente por um
consórcio de 46 empresas e associações empresariais. O plano carioca produziu pérolas
como considerar as favelas um “incômodo” na cidade projetada para o lucro, e
não o resultado de uma imensa desigualdade social, esta sim, indesejável 2.
Os
especialistas desse “planejamento estratégico” seguem a mesma proposta global
de cidades ditas “competitivas”, francamente regidas pelos interesses do grande
capital (os “investidores”, imobiliários ou não). Seus planos requerem a adesão
consensual da população para seu completo sucesso, como se não houvesse desigualdades,
exploradores e explorados, classes e interesses de classes contraditórios na
cidade capitalista. São cidade para o capital e seus negócios, não para os habitantes.
O que se vê no discurso oficial em Brasília e na tentativa de supressão da crítica
é a imposição desse falso consenso em torno do modelo cingapuriano, a
apresentação da Jurong como portadora da solução única para o futuro do DF.
O
“fundamentalismo” neoliberal, o “provincianismo” e a “miopia” (ou
hipermetropia, quem sabe (?) de Agnelo estão fazendo o Palácio do Buriti
assemelhar-se à prefeitura de Sucupira, e esse definitivamente não é o melhor
destino para Brasília, nem para o governador. Ainda que pelo menos Sucupira seja
uma coisa brasileira. )
1 Entrevista a Ana Maria Campos, no Correio Braziliense de 21 de outubro de 2012.
2 Ver
ARANTES, Otília, VAINER, Carlos e MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento
único: desmanchando consensos. Petrópolis (RJ): Vozes, 2000. brasileira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário