Em seu já célebre ensaio As
antinomias de Gramsci, escrito em 1976, Perry Anderson (1986) tece uma
crítica sistemática ao acervo central das categorias políticas de Gramsci. Para
decifrar o conceito de hegemonia, Anderson percorre o sistema prévio de
categorias gramscianas, em cujo centro se encontram as definições e as relações
entre Estado e sociedade civil no âmbito das sociedades do Leste e do Ocidente.
A Rússia e a Europa Ocidental constituem as referências tomadas por Gramsci
para representar os tipos de sociedade nas quais as relações citadas se
estabelecem de modo próprio. Vasculhando os Cadernos do cárcere, Anderson
consegue identificar três modelos com
os quais Gramsci Tenta configurar as relações entre Estado e sociedade civil.
Em cada modelo há um conceito para cada par de categorias e de relações entre
elas.
No
primeiro modelo, o mais familiar aos leitores e também o mais citado pelos
seguidores e comentaristas de Gramsci, a distinção está posta nos seguintes
termos: enquanto nas sociedades atrasadas do Leste o Estado é tudo e a
sociedade civil é primitiva e gelatinosa, nas sociedades do Ocidente o Estado
não passa de trincheira exterior de uma sociedade civil sólida e estruturada
capaz, portanto, de sobreviver aos piores tremores do Estado. De acordo com a
concepção política de Gramsci, no Leste o Estado, situado acima de uma
sociedade civil frágil, seria o momento da coerção e o meio essencial da
dominação da burguesia sobre as classes subalternas. Já no Ocidente, à
supremacia da sociedade civil sobre o Estado (momento da coerção)
corresponderia à ação mais eficaz e decisiva do consentimento, exercida como
hegemonia pela burguesia sobre as classes subalternas.
No
segundo modelo das relações entre Estado e sociedade civil — de cujas relações
se ergue e se impõe a hegemonia da burguesia sobre as classes subalternas —,
nem o Estado se coloca abaixo da sociedade civil, nem, por conseguinte, a
hegemonia é faculdade exclusiva da sociedade civil. Aqui, a contraposição
estabelecida no modelo anterior entre sociedade civil, corno momento do
consentimento, e Estado, como momento da coerção, cede lugar a uma
diferenciação na qual os dois momentos se combinam e completam, praticando conjuntamente
coerção e consentimento.
No
terceiro modelo, o Estado aparece como momento único das estruturas e dos
papéis antes distribuídos entre a sociedade política e a sociedade civil - as
duas instâncias antes diferenciadas fundem-se numa só, o Estado, agora
existência única, livre, portanto, da parceria com a sociedade civil, a qual,
como tal, desaparece, assume as funções de coerção e de consentimento.
Não é
propósito nosso, num estudo sobre a gnosiologia marxista, tecer críticas, por
mais pertinentes que possam ser, a cada modelo construído por Gramsci. Essas
críticas -- sempre acompanhadas dos desdobramentos das formulações de Gramsci
entre vários autores marxistas que nele se inspiraram em medida variável --, a
nosso juízo formuladas com exemplar solidez, encontram-se em todo o escrito de
Anderson. Pelo momento, basta fazer uma referência geral ao por que dessas
discrepâncias entre modelos que se chocam entre si na vastidão dos Cadernos do
cárcere. Na verdade, essas mudanças conceituais de axiomas da concepção
política geral de Gramsci devem-se à insuficiência teórica em cada modelo; a
caracterizações que vão da unilateralidade ao equivoco em cada categoria básica
e no acervo em que elas se encontram e se contradizem e que resultam, ao fim e
ao cabo, do ponto de partida - portanto, do método -- adotado por Gramsci. A
questão reside, a nosso ver, no enquadramento ontológico e gnosiológico com o
qual Gramsci lê o ser social -- enquadramento que se contrapõe, portanto, ao
desenvolvido por Lukács, o qual, ao contrário de Gramsci, parte, a nosso juízo,
rigorosamente de Marc É esse equívoco de método que pretendemos demonstrar no
presente capítulo deste nosso escrito.
Mas isso
nos reconduz ao mesmo ponto de partida adotado por Anderson: as célebres
passagens dos Cadernos.., nas quais
Antonio Gramsci, lançando mão de uma analogia, define seus tipos fundantes,
Estado e sociedade civil, pressupostos axiomáticos para as demais definições:
hegemonia, bloco histórico e, consequentemente, revolução.1 A passagem mais importante -- longa,
decerto -- que nos serve é esta:
[...] a
guerra de posição não é constituída apenas pelas trincheiras propriamente
ditas, mas por todo o sistema organizativo e industrial que está por trás do
exército alinhado, sendo imposta sobretudo pelo tiro rápido dos canhões, das
metralhadoras, dos mosquetões, pela concentração das armas num determinado
ponto, bem como pela abundância do abastecimento, que permite a rápida
substituição do material perdido depois de uma penetração e de um recuo [...I
Os próprios técnicos militares, que agora
se fixaram na guerra de posição como antes se haviam fixado na guerra de manobra,
certamente não sustentam que o tipo precedente deva ser considerado como
cancelado pela ciência; mas, nas guerras entre os Estados mais avançados do
ponto de vista civil e industrial, a guerra manobrada deve ser considerada como
reduzida mais a funções táticas do que estratégicas, deve ser considerada na
mesma posição em que antes estava a guerra de assédio em relação à guerra
manobrada. A mesma transformação deve ocorrer na arte e na ciência política,
pelo menos no que se refere aos Estados mais avançados, onde a "sociedade
civil" tornou-se uma estrutura muito complexa e resistente às
"irrupções" catastróficas do elemento econômico imediato (crises,
depressões, etc.); as superestruturas da sociedade civil são como o sistema das
trincheiras na guerra moderna. Assim como nesta última ocorria que um
implacável ataque de\artilharia parecia ter destruído todo o sistema defensivo
do adversário (mas, na realidade, só o havia destruído na superfície externa,
e, no momento de ataque e do avanço, os assaltantes defrontavam-se como uma
linha defensiva ainda eficiente), algo similar ocorre na política durante as
grandes crises econômicas: nem as tropas atacantes, por efeito da crise,
organizam-se de modo fulminante no tempo e no espaço, nem muito menos adquirem um
espírito agressivo; do outro lado, os atacados tampouco se desmoralizam, nem
abandonam suas defesas, mesmo entre as ruínas, nem perdem a confiança na
própria força e no próprio futuro. É claro que as coisas não permanecem tais
como eram; mas também é certo que falta o elemento da rapidez, do tempo
acelerado, da marcha progressiva, tal como esperariam que ocorresse os
estrategistas do cadomismo político. O último fato desse gênero na história da
política foram os acontecimentos de 1917. Eles assinalaram uma reviravolta
decisiva na história da arte e da ciência da política. (GRAMSC1, 2000, p.
72-73)
Esta
formulação deve ser completada com uma outra dos mesmos Cadernos...:
No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade
civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a
sociedade civil uma justa relação e, ao oscilar o Estado, podia-se
imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era
apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia
de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro,
mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento de caráter nacional. (GRAMSCI, 2000, p. 262)
Nas duas
passagens acima transcritas, Gramsci fundamenta o primeiro modelo entre os três
assinalados por Perry Anderson, e é esse o que permeia a maior parte de toda a
sua obra política que consta dos Cadernos do cárcere. Quais são, pois, os
pontos mais vulneráveis dessa formulação do ponto de vista que aqui nos
interessa?
Os
equívocos imediatamente arrolados situam-se no âmbito ontológico. Comecemos
pelos aspectos menos complexos das definições de Gramsci. Em primeiro lugar,
não é correta a afirmação de que, mesmo nos Estados mais avançados, a sociedade
civil, tal como a entende Gramsci, tenha-se torado sempre resistente às
'irrupções' catastróficas do elemento econômico imediato, as crises e
depressões. Existiram crises e crises; em algumas delas a burguesia logrou,
quando muito, resistir minimizando
seus efeitos, como ocorreu desde o segundo pós-guerra até os anos 1970,2 mas em nenhum dos casos a classe burguesa conseguiu continuar
resistindo às suas causas. Aliás, nos casos em que a burguesia conseguiu
amenizar os efeitos das crises, esse relativo controle foi logrado não pela
intervenção da sociedade civil, mas, ao contrário, muito mais decisivamente
pela intervenção direta do Estado. Este, lançando mão tanto de expedientes
coercitivos como de consentimento e, mais do que isso, da manipulação ideológica
adrede, assumiu e combinou elementos de intervenção como o Plano Marshall, o keynesianismo
e a socialdemocracia, a inclusão da forma sindicato e a cooptação de lideranças
sindicais, entre outros, para postergar os efeitos das crises menores como as
de 1949, 1953, 1958 e 1961. Mas, depois disso, ou seja, a partir da crise de
1973-75, a burguesia não conseguiu mais, nem com o Estado, muito menos com a
sociedade civil, resistir às premissas e aos efeitos de uma longa crise
estrutural que já dura mais de 30 anos, que golpeia e sucateia vastas áreas da
sociedade, inclusive da própria sociedade civil, e que não sugere qualquer
perspectiva de retomada de outro ciclo de crescimento de longa duração.
Ademais,
o elemento econômico, de onde
irrompem as crises e depressões, não se limita a uma dimensão imediata do
sistema capitalista; ao contrário, as crises e depressões provêm das
profundezas ontológicas mais centrais de onde a ordem do capital se reproduz -
profundezas que, diga-se de passagem, não recebem, em toda a obra do pensador das superestruturas, um
tratamento digno de um marxista.
Mais
ainda, as irrupções catastróficas do
elemento econômico mediato estão na base das situações revolucionárias -
pressuposto das revoluções modernas - tão levadas a sério por Marx, Engels e
Lenin. Em toda a sua obra, Gramsci não dá provas de ter-se dado conta de que,
conforme Marx sempre asseverou, o sistema econômico capita-lista vive tendendo
ao desequilíbrio. Tal propensão é compreensível pela tendência sistemática e
estrutural de queda da taxa de lucro, em função da constante elevação da
composição orgânica do capital, etc., e que só não se precipita de vez e sempre
por conta das contra-tendências que, ao fim e ao cabo, também se esgotam,
trazendo as crises de volta. Sem incorporar essas dimensões estruturais do ser
social, o marxismo de Gramsci abre, também aqui, outras portas para um
entendimento idealista da ordem do capital e, consequentemente, para uma
estratégia reformista de luta da classe operária que, diga-se de passagem, foi
e tem sido reiterada pela maioria de seus seguidores, como é lembrado pelo
mesmo Perry Anderson.
Passemos,
agora, às questões mais complexas do corpo básico da tipologia gramsciana.
Diz-se com muita frequência, entre os admiradores e seguidores de Gramsci, que
ele teria sido o pensador marxista que teria logrado estabelecer o mais
perfeito equilíbrio na interpretação das relações entre a base e as
superestruturas da formação social burguesa. Essa é, contudo, uma assertiva
muito apressada e que talvez não possa resistir a um teste cuidadoso. Segundo Anderson
(1986, p. 49), não passava de parologismo ou, pior do que isso, de engodo, a
redução, por parte de Gramsci, de toda a oposição (ontológica) entre a Rússia e
a Europa Ocidental - ou, mais ainda, entre o Oriente e o Ocidente - ao redor da diferença da relação entre o
Estado e a sociedade civil nas duas zonas, partindo da premissa não estudada
de que o Estado é o mesmo tipo de entidade entre ambas" (ANDERSON, 1986, p. 49-50). De fato, ao estabelecer entre
Estados não-estudados e, portanto, não-compreendidos - como o Estado russo, uma
variante especificamente 'oriental' de um
Estado feudal (ANDERSON, 1986, p. 49) - e o Estado na Europa Ocidental -
forma de democracia parlamentar burguesa moderna - uma única semelhança, a de
ser um órgão de coerção, e uma única diferença, a de ter, num caso, uma
sociedade civil frágil (gelatinosa)
e, no outro, uma sociedade civil densa e estruturada, Gramsci não avança em
absolutamente nada na compreensão das duas ordens de sociedades. É necessário
frisar que, se a única diferença não era colocada diretamente nos dois Estados
-- o oriental e o ocidental --, isso não quer dizer que Gramsci não a
estabelecesse em um outro e único lugar, a sociedade civil, nos dois casos.
Ademais,
para compreender de que substância é feito o marxismo de Gramsci, torna-se
imperativo levar em conta que as duas situações, Estado/sociedade civil
gelatinosa no Oriente e Estado/sociedade civil desenvolvida no Ocidente, também
não passam de dois tipos com os quais Gramsci opera no estilo de algumas vertentes
das sociologias contemporâneas. De fato, a sociologia gramsciana está assente
em alguns tipos: o Estado, a sociedade política, a sociedade civil e as duas
situações afirmadas - o Estado/sociedade civil no Oriente e o Estado/ sociedade
civil no Ocidente. A tipologia passa a ser a pedra de toque da explicação e de
todas as (simplificadas) diferenciações e, mais grave, dispensa a investigação
de cada caso. É preciso convir que, com tal arsenal de categorias, ou melhor,
de tipos, nunca se desce às conexões entre tais tipos com seus binários e a
estrutura da acumulação de capitais, em cada caso. Estamos, portanto, diante de
uma sociologia que, ao invés de procurar identificar seu objeto de análise por
uma investigação direta para identificar essência e singularidades de cada
caso, opera com tipos por meio dos quais se encerra a questão no momento em que
deveria ter início. Essa é uma teoria idealista que absolutamente nada tem a
ver com o método de Marx. Essas são algumas das evidentes limitações do pensador
Gramsci no terreno da ontologia. Passemos agora ao plano das limitações no
campo da gnosiologia, que é o que mais nos interessa no presente escrito, até
porque são elas que estão na base dos equívocos ontológicos e, acima de tudo,
políticos de Gramsci.
Os
equívocos no modo de conceber a sociedade - no caso em análise, o modo como
Gramsci coloca as relações entre a base sobre a qual os homens organizam a
produção e a reprodução de sua existência social e as superestruturas - derivam
do modo como ele organiza e desenvolve a produção do conhecimento dessas
relações. Em outras palavras, seus equívocos, na esfera da ontologia do ser
social -- no caso a ordem do capital --, derivam de equívocos cometidos na
esfera da gnosiologia, equívocos de método.
De fato, as duas passagens transcritas dos Cadernos do cárcere, as quais,
conforme salienta Perry Anderson (1986, p. 9.), representam a síntese mais convincente dos termos essenciais do
universo teórico de Gramsci [...], dispersos e espalhados ao longo dos Cadernos,
mostram-nos a amplitude -- que não é pequena -- dos erros teóricos e políticos
cometidos por Gramsci. Ora, é evidente que os erros cometidos nos domínios da
ontologia do ser social, que resultam de um método defeituoso de abordar tais
questões, são erros cumulativos que vão atingir todos os demais domínios da
teoria marxista; erros que se vão alojar nas esferas do programa, da tática, da organização, das análises de conjuntura,
e assim por diante. Não é por mero acaso, portanto, que uma multidão de pensadores
e dirigentes políticos que reclamam a herança de Gramsci enredaram-se, e seguem
se enredando, em propostas prenhes do mais puro reformismo.
Qual é,
pois, o erro de método cometido por Gramsci? Qual é o seu pecado gnosiológico? O erro central de Gramsci reside em que ele
emprega um método que está mais de acordo com a sociologia do que com o
marxismo. Se o leitor voltar a vista para o texto de Gramsci não vai encontrar,
na definição de sociedade civil nomeadamente, o procedimento utilizado por Marx de levar a
efeito um movimento que vai do concreto ao abstrato e do abstrato ao concreto,
que é o método dialético por excelência, objeto de nosso estudo. No lugar
disso, vai encontrar um procedimento muito usual nas sociologias, isto é, uma
metodologia que pretende produzir o conhecimento por meio de analogias. É por
meio de uma analogia que Gramsci chega à definição de dois tipos centrais de
sua obra política: a sociedade civil e o Estado; é a partir daí que ele vai
construir os demais (e derivados) conceitos, como hegemonia, bloco histórico,
intelectual orgânico, ideologia e, por fim, revolução; é a partir daí que sua
análise espalha equívocos nos mais diversos domínios alcançados por sua teoria.
De onde
provém, em Marx e Engels, o conceito de Estado? É, para eles, um conceito
tomado de empréstimo de alguma fonte abordada por meio de analogias? Sem que
seja necessário percorrer aqui o complexo processo de ruptura com as concepções
de Hegel -- por intermédio do qual esse
conceito também é revisto --, o Estado, para Marx e Engels, é compreendido numa
ampla e coerente abordagem à totalidade da formação social burguesa. Como visto
em capítulos anteriores, o método empregado em tal abordagem é anunciado nos Grundrisse (O método da economia
política), empregado em outras passagens em diversas obras dos dois fundadores
do marxismo e, logo mais, corroborado e desenvolvido por outros autores: o
Lenin dos Cadernos filosóficos, o
Korsch de Marxismo e Filosofia, o
Lukács da maturidade, entre outros, e se dá pelo movimento do concreto ao
abstrato e do abstrato ao concreto, como tentamos reproduzir no presente
estudo. Toda a compreensão do modo de produção e, de modo mais amplo ainda, da
formação social capitalista, é alcançada por meio desse método; com ele se
elucida a base da ordem do capital, nela compreendidas as relações de produção
e as classes sociais e, a partir daí, a superestrutura da sociedade, no centro
da qual se encontram o Estado e as ideologias. Os conceitos vão-se conectando
segundo um sistema hierarquizado de categorias, numa vasta totalidade na qual
cada instância é articulada a outras de modo coeso e coerente, sempre tendo a
realidade social como referência. O Estado, que emerge dessa ordem categorial,
sempre referida à realidade histórica e social, também é vasculhado em seu
significado, de modo que aparece como resultado de determinações da totalidade
modo de produção/formação social, combinada com determinações especificas dele
enquanto tal. A compreensão do Estado realiza-se numa relação dialética, na
qual são analisadas e compreendidas as instâncias a ele externas (as
determinações da totalidade social) e sua estrutura interna.
Em suma,
isso quer dizer que, para Marx e Engels, a análise do Estado não se reduz às
determinações externas a ele, mas por uma análise que não dispensa a abordagem
da sua estrutura, de seu caráter e de seu papel internos; numa palavra, de como
ele se objetiva como parte que forma uma totalidade e que também é formada pela
mesma totalidade. Para compreender o caráter do Estado, ou de qualquer outro
momento da superestrutura, não se recorre a nenhuma analogia; ao contrário,
mergulha-se no interior dela -- que é, como se demonstra aqui, o que deveria
ter feito Gramsci, em acordo com o método de Marx, ao tentar compreender e
explicar aquilo que ele chama de sociedade civil.
Mas
Gramsci não deixa dúvida a esse respeito: para ele, a sociedade civil emerge de
uma analogia feita a partir dos termos de uma tática militar. A sociedade civil
recebe seu estatuto ontológico e seus créditos teóricos diretamente da
retaguarda das guerras de posição, pois, da mesma maneira que o sistema
industrial garante eficazmente o suprimento das trincheiras com a reposição de
homens, material bélico e meios de subsistência para o front, a sociedade civil garante, na sociabilidade capitalista, a
fortaleza da classe hegemônica. Mais do que isso, essa sociedade civil que
recebe, durante o trajeto conceituai que passa das casamatas à superestrutura,
o certificado da mais plena fortaleza, é capaz até de resistir às crises catastróficas que emergem da base
material da sociedade. E Gramsci está tão seguro dessa constatação que nem se sente obrigado a fazer um teste de validação
teórica da própria sociedade civil. A análise de Gramsci debruça-se, de fato,
na equação militar. Nessa equação, Gramsci tece - e aqui não cabe pôr em
questão o mérito de suas ideias acerca das táticas militares - uma efetiva,
ainda que sucinta, análise das supostas vantagens de uma guerra de posição
sobre uma guerra de movimento; conhecimento, se é isto o que assim é produzido,
passa a existir acerca da tática militar, nomeadamente de sua retaguarda
industrial, etc., mas não da sociedade civil, pois dali ele passa, com esse
produto conceituai, sem examinar o que é, em si, a sociedade civil, a alocar na
dita sociedade civil atributos que ela recebe de um fato que em nada lhe diz
respeito. E aí a sociedade civil recebe uma carga de atributos e responsabilidades
sem que se saiba se ela está à altura de tais atributos ou de responder por
eles. E mais: da importância capital da sociedade civil assim arranjada ele
parte para um conceito de Estado que terá de se contentar com uma posição
secundária e, o que é mais grave, de um Estado que recua do papel de emissor de
ideologias para uma situação de mero instrumento de forças coercitivas. É como
se o Estado abrisse mão de seus vastos meios como emissor de ideologias (por
meio dos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, dos ministérios, etc.)
para se tornar apenas algo como um monumental ministério da guerra (interna). O
equivoco de método acarreta um outro equívoco ao definir a sociedade civil, daí levando migrações de erros ao contraponto
imediato, o Estado, que os repassa para os domínios da estratégia: se o Estado tem
menos força de determinação do que a sociedade civil, o alvo central dos golpes
a serem desferidos pela luta política estará forçosamente deslocado do Estado.
Sempre que a analogia é tomada, como neste caso, como metodologia de produção
do conhecimento, nega visibilidade ao que é próprio do ser que recebe atributos
transpostos de outro ser tomado como matriz de referência, porque o termo
conhecido é o referente, enquanto o termo referido - que não é examinado em sua
estrutura e em seu significado imanente - consta apenas como receptáculo passivo
de um conhecimento (de conteúdos) que provém de um referente que lhe é
estranho. Em nossa maneira de ver, a analogia presta-se mais a ilustrar
proposições teóricas do que para a produção de verdades teóricas. Quando alguém
afirma que Beethoven é o Michelangelo da
música, não está pressuposto que Michelangelo é músico, que Beethoven é
escultor ou pintor, ou que se desconheçam as diferentes características da
produção artística de cada um em seu domínio específico. A comparação pela
analogia não implica a dispensa do conhecimento acerca do que cada um desses monstros sagrados da arte produziu; no
caso, a analogia não transporta características de um artista ao outro; ao
contrário, é porque se conhecem essas diferenças que a analogia pode ter lugar
num sentido preciso e limitado, por exemplo, o de exprimir a ideia de que os
dois artistas estão num mesmo nível de importância nas suas distintas esferas
de atividade. Nesse sentido, os termos comparados por analogias são previamente
conhecidos e só certa e limitada semelhança de situações entre os dois pode ser
inferida. Mas quando Gramsci deduz, por analogia, que a sociedade civil (o
conjunto de organismos comumente chamados de privados nos quais o consentimento
garante a hegemonia de uma classe sobre a outra) está para a sociedade assim
como a retaguarda industrial está
para a guerra de posição, ele se sente desobrigado da inarredável necessidade
de um exame categorial da estrutura interna da sociedade civil para verificar
se essa instância de fato faz jus ao destaque que lhe é dado. A partir dai,
Gramsci lança-se a atribuir qualificações nunca demonstradas, mas sempre
problemáticas, tais como a de que o Estado limita-se à coerção, a de que a
sociedade civil é mais decisiva do que o Estado, e assim por diante. Portanto,
nada mais estranho ao método de Marx do que o emprego das analogias na acepção
que Gramsci lhe dá.
N o t a s ;
1. Para
os propósitos que animaram Perry Anderson numa análise crítica à obra política
de Gramsci muito mais ampla do que a nossa, o autor inglês valeu-se de duas
passagens dos Cadernos do cárcere, que, a seu juízo, 1...1 representam a
síntese mais convincente dos termos mais essenciais do universo teórico de
Gramsci, que estão dispersos e espalhados ao longo dos Cadernos. [... São
trechos] que reúnem todos os elementos necessários para a [...] emergência [do
problema da hegemonia] em uma posição chave em seu discurso." (ANDERSON,
1986, P. 9, grifos nossos) Para os propósitos que nos animam, basta tomar como
objeto de análise a primeira e longa passagem.
2. Ver, a respeito, os dois importantes livros de
Ernest Mandei, O capitalismo tardio, de 1972, e A crise do capital, de 1985,
nos quais o autor tenta explicar e, o que é mais importante, atualizar do ponto
de vista marxista, tanto a teoria da crise como as crises - de curta e de longa
duração - corno fatos no século XX, com destaque para o ciclo de crescimento de
longa duração do segundo pós-guerra aos anos 1960 e para a crise
"sistêmica" iniciada na década de 1970.
Este comentário foi removido pelo autor.
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