Robert Misik *
Tradução:
Frank Svensson
A
sociedade produtora de mercadorias se
distingue de todas as outras sociedades conhecidas até agora por seus detalhes
essenciais. Os indivíduos que aí existem são livres. As sociedades onde os
servos produziam para seus senhores não alcançaram o estagio do princípio
generalizado da mercadoria, mesmo se conheceram a troca e o dinheiro. O
camponês, por exemplo, devia fornecer ao senhor uma parte fixa de sua produção.
Mas esses produtos que passavam do servo para seu senhor não eram de nenhum
modo mercadorias e a relação de dependência e de exploração era clara. Contudo,
a simples circulação das mercadorias, que era igualmente possível nessas
sociedades, resultava uma forma ainda grosseira e elementar de capital. A
acumulação de riquezas pelo comércio, segundo a fórmula D-M-D' (de qualquer
modo a fórmula primitiva do capital): dinheiro - mercadoria - dinheiro -- eu
compro uma mercadoria e eu a revendo mais cara.
A circulação das mercadorias é o ponto de origem do capital. (C.1,1, p.
151). Percebemos aqui o que faz a especificidade do Capital, mesmo sob uma
forma ainda inacabada: é sempre um processo. O Capital não é um simples
relato, mas um processo nos diferentes momentos do qual ele não cessa de ser do
capital escreve Marx, acres-centando como
capital, a moeda perde sua rigidez e de coisa palpável que era torna-se um
processo (G.I, 1pp. 198 e 204).
O
capitalista possuidor de dinheiro diferencia-se do entesourador pelo fato que il en est de lui como do concorrente que cada conquista nova não leva senão a uma nova
fronteira (C.I, 1, p. 139). Só uma sociedade capitalista avançada não
poderá se contentar de acumular capitais pela velhacaria e peto calote ou
outras formas de lucro comercial. Se para ser bem sucedido, bastasse aos
comerciantes vender as mercadorias mais caro do que as compraram, não chegariam
longe. Marx descobre então que existe uma mercadoria própria criadora de valor que ela mesma não possui: a força
de trabalho humano.
Nesse
drama econômico, são dois homens livres que se enfrentam: o trabalhador e o
capitalista. Nenhum oprime nem engana o outro. Eles estabelecem um contrato
como se pratica entre pessoas livres. Um vende ao outro sua força de trabalho
por um período determinado. O outro tem o direito de se servir disso. A força
de trabalho tem seu valor, seu preço: o
valor dos meios de subsistência necessários (C.I, 1, p. 174) á conservação
de seu proprietário.
Haveria
aqui toda uma serie de objeções a fazer, entre elas duas essenciais: primeiro,
mesmo na época de Marx, os trabalhadores não recebiam sempre só do que pagar
pão, um pedaço de embutido (linguiça), uma sopa e um teto debaixo do qual se
abrigar. Segundo, os trabalhadores não ganham todos a mesma coisa, pois a
quantidade de bens dos quais necessitam é relativamente igual. Marx se apressa
em acrescentar que as ne-cessidades naturais diferem conforme o clima e outras
particularidades físicas de um país e dependem do grau de civilização atingido.
Assim a noção de miséria é sempre muito relativa e a forca de trabalho inclui
então, do ponto de vista do valor, um elemento moral e histórico (C. 1, I, p.
174). O fato de que os trabalhadores mais qualificados recebam um maior salário
que os menos qualificados não impressiona mais: pois uma força de trabalho na qual intervenham custos de formação superiores
cuja produção custa bem mais tempo de trabalho e que tem por consequência um
valor superior à simples forca de trabalho (MEW 23, p. 212).
Marx
continua, a seguir, a desenvolver sua célebre lei do valor: os operários que
percebem um salário trabalham nas fábricas. Eles transformam bens --
matérias-primas e produtos de base -- tendo um certo valor (ou seja, que
contenham trabalho humano por assim dizer cristalizado),
com a ajuda de máquinas das quais uma parte do valor (contendo, portanto
trabalho humano cristalizado) é
transmitido ao produto final. O
valor do produto de base e dos meios de trabalho, mais o tempo de trabalho que
o operário investiu neles, dá o valor do novo produto obtido. O acréscimo do
valor é mais elevado que o contra-valor recebido pelo operário para suprir a
sua subsistência, ou seja, o salário, a remuneração.
A diferença ou mais valia é embolsada pelo proprietário do capital. Sem lhe extorquir; o capitalista ganha mais do que pagou ao operário. Marx reitera sua demonstração com a ajuda de inúmeros exemplos e descreve em detalhes o que se passa quando poucos trabalhadores trabalham em setores exigindo muito capital, como um tempo de trabalho médio social torna-se uma quantidade de valor, como, intensificando o trabalho, a proporção de trabalho necessário para produzir o equivalente do salário pode ser modificado em sobre-trabalho em beneficio do empreendedor etc., etc. Nós não demoraremos sobre esses fatos concretos, pois o princípio segundo o qual o trabalho humano é o único criador de valor e que o preço de um produto se mede, finalmente, pelo trabalho investido, é ele mesmo contestado.
Depois
de 130 anos, esta tese central de O
Capital tem servido de pretexto aos adversários de Marx para por em questão
a totalidade do edifício intelectual da obra. Que papel desempenha o setor de
serviços nesta obra? Que papel desempenha o setor de serviços neste conceito?
Que lugar ocupam os intelectuais modernos, os cientistas, cujos talentos, a eloquência
ou a aptidão a se vender, determinam sensivelmente o preço de sua força de
trabalho? Estas questões e outras
não cessam de inquietar os discípulos de Marx, que por seu lado se dão todo
trabalho para conciliar o menor detalhe, por mais estranho, com a teoria. Recentemente,
ainda, o economista britânico e biógrafo de Keynes, Robert Skidelsky, condenou
Marx proclamando que a tese principal de sua economia, a teoria do valor
trabalho, fora demolida e não reabilitada.
É certo
que a teoria do valor trabalho é um tanto grosseira. (lembremos que Marx não a
elaborou ele mesmo, mas a emprestou com algumas modificações do grande
economista britânico David Ricardo). Marx com sua verve intelectual tenta
ressaltar o princípio como um químico isolando um elemento que ele se propõe a
pesquisar. Em sua biografia, Francis Wheen escreve: ele admirava a metodologia objetiva, não sentimental de Ricardo e de
Adam Smith. Na verdade, os aspectos de O Capital que são mais frequentemente
motivo de zombaria hoje, como a teoria do valor-trabalho é derivada desses
economistas clássicos que formaram a ortodoxia dominante da época (p. 297).
Para
Joseph Shumpeter, um outro grande economista do 20.° século, esta teoria não
era falsa, mas não era mais que uma vaga aproximação das tendências históricas
dos valores relativos. O debate em torno da teoria do valor-trabalho foi quente
e fortemente tingido de ideologia, pois -- que a ideologia seja cientificamente
sustentávet ou não -- põe-se a
questão: será que a classe obreira é única a prover à riqueza social ou não
será que a burguesia também tem uma parte desse mérito? A verdade certamente se
situa nalgum lugar entre os dois casos. Portanto a validade relativa da teoria
que quer que o trabalho cristalizado
determine essencialmente o preço de um produto não cessa de ser provada pelos
proprietários de capital, quando, obedecendo às leis de mundialização quando
eles deslocalizam ateliês de montagem de país a salário elevado para regiões de
custo baixo dos salários -- observando que é a única forma de continuar
competitivo no mercado mundial. De fato, os preços só são flexíveis até um
certo limite e quando caem abaixo do custo de produção -- que finalmente não
baixam além dos custos do trabalho hu-mano – e a empresa que assim fizer
certamente não terá um belo futuro.
Uma tese
deve abstrair dos casos particulares e dos detalhes secundários para ter
validade universal. É isso que lhe dá força e fraqueza. É certo que o
capitalismo de O Capital é uma espécie de capitalismo de laboratório com um
mercado livre corno não existe na realidade. Em certas partes de sua obra, Marx
reconhece que para simplificar a análise,
é necessário .., primeiro: deixar de lado todos esses fenômenos que dissimulam
o funcionamento intimo de seu mecanismo e que os processos que ele estuda sejam naturalmente modificados por
circunstâncias particulares (C. 1, 3, p.8): o Estado, as lutas pelo poder,
a tradição, a ignorância, a estreiteza de espirito, a etiqueta, as invenções,
as histerias coletivas e a legislação social, são efetivamente externas ao
sistema político-econômico - se bem que fundamentais na história da sociedade
capitalista moderna. Em sua análise Marx foi obrigado a supor um mercado puro, uma livre concorrência pura, mesmo sabendo perfeitamente, como
afirma Gramsci, que a realidade jamais
existe em estado puro.
Entretanto,
todas as simplificações jamais impediram Marx de ver mais claro que a maioria
dos bravos empiristas de sua época, bem como da nossa. Na segunda parte de O
Capital, Marx retrata artisticamente a maneira como os processos acionados
pelo capitalismo e as relações das relações que ele engendra mostram uma
espécie de mundo automático, uma grande máquina universal que reúne todo o
mundo a ela e transforma os sujeitos, do maior ao menor, em engrenagens da
valorização do capital. Lá onde ele é fundado no salariado, a produção
mercantil se impõe à sociedade inteira C. 1, 3, p. 27). O capitalista cria um mecanismo social do qual ele só é uma
engrenagem... e a con-corrência impõe
as leis imanentes da produção capitalista como leis coercitivas externas a cada
capitalista individual (C. I., 3, p. 32). Da mesma forma que o proletário
não passa de uma maquina a produzir a mais-valia, o capitalista não passa de
uma máquina a capitalizar a mais-valia (C. l, 3, p.36). Mas, da mesma forma que
o mundo capitalista é um monstro, é um mecanismo morto que aciona seus
princípios independentemente dos atores e pelas costas dos mesmos integrando-os
como anexos vivos; na usina capitalista é
a automação mesma que é o sujeito e os trabalhadores são simplesmente
auxiliares como órgãos conscientes a seus órgãos inconscientes (C. l, 2.
p.102). De diferentes máquinas das primeiras manufaturas modernas nasce um monstro mecânico que de seu gigantesco
conjunto de membros, enche de construções inteiras; sua forca demoníaca,
dissimulada pelo movimento cadenciado e quase solene de seus enormes membros,
explode na dança febril e vertiginosa de seus enormes membros operacionais
(CL, 2, p. 105).
Várias
vezes sublinhamos o talento de escritor de Marx, Abandonemos agora por um
instante nossas reflexões sobre a adequação ou inadequação desta descrição a
nosso capitalismo contemporâneo, para perguntar se nosso conto de Frankenstein,
este monstro criado pelo homem que se volta contra seu autor, não teria sido
mudado numa clássica história de vampiros, de monstros que sugam a substância
dos homens? Podemos certamente discutir em que medida a descrição feita por
Marx do capitalismo corresponde à atualidade ou ao passado; o averiguado é que
a conquista exterior dos países pela sociedade produtora de mercadorias e
acompanhada de uma colonização interior; que as necessidades humanas foram
manipuladas, disciplinadas, adaptadas ao funcionamento industrial e que os
homens foram literalmente adestrados. Esse processo é confirmado pela abolição
das regulamentações exteriores no capitalismo flexível da época atual. De fato,
ele supõe um indivíduo produtor e empresário ades-trado interiormente -
formatado, diríamos nós hoje - sem o que o processo não poderia funcionar. Os
sujeitos não têm mais necessidade de serem divididos em partes, os fios
invisíveis da dependência objetiva são suficientes, pois faz finalmente
duzentos anos que a produção não produz
somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto
(G.l,p. 27).
A tese
da economia como sistema -- ou seja, da auto-geracão e da autoperpetuação dos
mecanismos econômicos capitalistas -- não foi antecipada, globalmente pela
breve anunciação de Marx: No mercado
mundial, a conexão do indivíduo singular com todos, mas ao mesmo tempo também a
independência dessa conexão em relação aos indivíduos singulares eles mesmos
atingiram seu pleno desenvolvimento?
Naturalmente,
Marx não descreve o capitalismo em suas sutilezas, somente como violento
opinador. Que o capital contém contradições, nós somos o último a negar. Nosso
objetivo é ao contrário de lhes desenvolver completamente (G.l, p. 291). O capitalismo
introduziu um grão de loucura como elemento da economia, determinado pela vida
prática dos povos. É assim que encontramos em O Capital o paradoxo que conhecemos perfeitamente sob a denominação
de crise do trabalho: a produção
baseada no salariado tem tendência a tornar o trabalho supérfluo por causa do
desenvolvimento técnico e cientifico donde resulta esse absurdo: o imenso
potencial liberado pela redução do tempo de trabalho e pela liberação da rotina
graças à automação e à revolução informacional fazem pesar sobre os homens um
terror pior ainda que o do salariado, haja vista a crescente reviravolta pelos
restantes empregos nos ateliês de fabricação, totalmente automatizados: O meio
mais poderoso de encurtar o tempo de trabalho resulta de uma estranha mudança,
o meio mais infalível de transformar a vida inteira do trabalhador e de sua
família em tempo disponível para a valorização do capital (C.l, 2, p.91).
É
difícil de se fazer uma ideia do conjunto de argumentações parcialmente lógicos
e contraditórios que atravessam não somente a sociedade mas também os sujeitos.
Tudo como os metalúrgicos que investem, nos nossos dias, sua poupança nos
fundos de pensão, errando agindo corretamente, o capitalista explica Marx,
observa a massa total dos trabalhadores à
exceção de seus próprios operários... não como trabalhadores mas como
consumidores. Assim cada capitalista exige efetivamente de seus operários que
eles poupem, mas unicamente dos seus, porque não tem a haver senão com eles
como operários; principalmente não o resto do mundo de operários, pois a estes
os vê como consumidores. Consequentemente, busca todos os meios suscetíveis
de lhes incitar ao consumo, de conferir novos atrativos a suas mercadorias, de
lhes sugerir novas necessidades etc. (G.l, p. 229).
O fato
que os valores não devem somente ser produzidos, mas também realizados explica
como nasce o grande paradoxo da crise devida a urna superprodução de
mercadorias para as quais não há compradores. Uma sociedade na qual a miséria
repousa sobre a penúria, mas sobre a superprodução deve suportar a contradição
de continuar produzindo pobreza num meio de extrema prosperidade assim como os
buracos negros no universo cintilante do comércio. No terceiro livro de O Capital, Marx explica que a produção
de bens tem por limite a força produtiva
da sociedade enquanto que a realização de seus valores tem por limite a capacidade de consumo da sociedade.
Sustentado pelos proprietários do capital eles mesmos que procuram manter tão
baixo quanto possível a capacidade de consumo de seus operários, ao mesmo tempo
em que se interessam elevar ao mais alto ponto a capacidade de consumo máxima
de todos os trabalhadores, essa contradição constitui para Marx, a causa última
das crises e recessões decorrentes, as
violentas erupções que restabelecem por um instante o equilíbrio rompido.
Para escapar à crise é necessário alargar
sem cessar o mercado, cada limite nada mais é que uma barreira a ser
ultrapassada, mas a verdadeira barreira
da produção capitalista é o próprio capital. Todo novo relance econômico
traz em si a próxima crise: A produção
capitalista tende sem cessar a ultrapassar os limites que lhe são imanentes,
mas ela não surge a não ser que se empreguem os meios os quais, de novo, e a
uma escala mais imponente, criem diante dela as mesmas barreiras. (C. 1,
pp. 262-263).
O mundo
capitalista no qual vivemos é um mundo estranho -- ao mesmo tempo uma grande
ordem e uma grande desordem. Obedecemos todos a uma razão que não podemos
influenciar; não é o caso, aqui, de gestão capitalista ou socialista, egoísta
ou humanista, mas de boa ou má gestão. O pensamento único neoliberal que estima
impossível imaginar outras formas de desenvolvimento que os homens estejam
prontos a adotar se impõe de há muito tempo. A intercâmbiabilidade dos
programas dos partidos políticos, por exemplo, essa tendência imperiosa para o centro é um sintoma dentre outros. Todas
as intervenções ambiciosas na vida econômica que possam ousar os governos frequentemente
têm efeito contrário desejado por seus autores e levam sua vida própria, se bem
que as soluções de hoje são frequentemente os problemas de amanhã.
Os limites
impostos pelas condições de existência tornaram-se desde há muito uma segunda
natureza para os membros das sociedades ocidentais modernas. É o mundo ao
avesso! -- pois nossa época é precisamente aquela que tem por modelo o
indivíduo autônomo como se os sujeitos conscientes deles mesmos fossem donos de
sua vida. O que quer que façamos, temos um comportamento ao mesmo tempo justo e
falso. O que fizermos de falso é justo e o que fizermos de justo é falso.
Servindo aos nossos interesses, nós nos prestamos um mau serviço. Quando um
empresário aumenta os ganhos de seus empregados, ele não age somente por
filantropia, sua ação é igualmente benéfica para o capitalismo em geral...
senão corre o risco de incorrer rapidamente em bancarrota. Como para Shen Te de
Brecht: as boas resoluções conduzem os homens à beira do precipício, as boas
ações nele os precipitam. A razão econômica se impõe -- se-gundo Engels numa
carta para Joseph Bloch -- como uma necessidade através da loucura infinita dos
azares, como resultado de numerosas vontades individuais; resulta alguma coisa
que ninguém quis. Visto assim, as forças econômicas são, desde o inicio, uma
força de ninguém. A mais possante como a menos poderosa, nada mais são que dois
comparsas de um teatro do mundo absurdo, prisioneiros de papéis dos quais não
são autores. Esse teatro é, retomando a bela expressão de Althusser, em
"Para ler o Capital" (Paris, PUF, 1946, p. 411), em sua essência um
teatro sem autor. Vejam a história de um mundo automático, de uma máquina
mundial que segue sua própria cabeça, de um piloto automático que ninguém
consegue dirigir, história que Marx narrou naquilo que foi a obra de sua vida -
esse mesmo Karl Marx que hoje certas pessoas qualificam, não sem razão, como um
grande satírico.
* Robert Misik, jornalista austríaco, comunista
militante é um dos fundadores de l’Offensive Démocrate e foi em 2.000 o
principal organizador das grandes manifestações contra a participação do
partido popular de direita FPO, no governo da Áustria.