Arnold Ljungman – Militante escritor sueco do GRUPO CLARTÈ –
formado na França por Phillippe B. Barbusse – de pensadores suecos marxistas do
período entre guerras. Sua obra destaca A Visão de Mundo do Marxismo (1947), O
Problema Kierkegaard (1964) e A Estética de Gyorgy Lukács (1967).
Tradução
– Frank Svensson
Parte IV
A tese
marxista da dependência do desenvolvimento cultural para com a luta de classes
tem sido contestada pela afirmativa de que os que produzem cultura —
escritores, artistas, cientistas — raramente estão em relação direta com as
formações do poder político-econômico. A poesia dos cavalheiros é tampouco
criação dos próprios cavalheiros, como a pintura cortesã do século XVII não é
produção dos cortesãos, nem o romance burguês do século XIX produto dos
pioneiros da industrialização. Dos primórdios da história, a produção cultural
sempre esteve às mãos de um grupo específico da sociedade, os intelectuais,
que tiveram essa atividade por função e tarefa. Pode parecer estarmos
enganados, mas queremos explicar a cultura a partir dos pressupostos sociais
sem voltar-nos para os verdadeiros produtores, buscando lhe a origem na mentalidade de segmentos dirigentes que nada têm imediatamente a ver com a produção
cultural.
O
raciocínio é sedutor e contém um quê de verdade que resiste às tentativas de
reduzir produção cultural a um reflexo passivo e mecânico de circunstâncias e
ambiente, voltando a atenção para o meio humano de sua realização. Como no
exemplo de Goethe, é frequentemente um meio muito consistente. Para mim, uma
observação que nenhum marxista precisa tornar para si. O marxismo nega não a
existência ou a iniciativa dos intelectuais no desenvolvimento cultural.
Questiona a imagem dessa iniciativa ocorrer sob uma espécie de generatio aequivoca, produção com raízes
nas profundezas de sua consciência. Como de Man parece afirmar, constitui uma
classe social independente, com uma ideologia decorrente de sua posição na
sociedade. Na melhor hipótese formam um grupo, uma profissão, um artesanato. A profissão
não tem ideologia, visão de vida definida que a distinga da de outras
profissões. A ideologia que os intelectuais representam tem origem noutro lugar
e só pode ser entendida considerando-se os fatores gerais que definem valores
sociais e modus vivendi em sua
totalidade.
Vejamos
a cultura clássica francesa, ponto de partida
de nossa análise, que quanto à forma e ao conteúdo caracteriza-se por
extraordinária consistência e estabilidade do sistema social de que emana, sem
impedir que os pioneiros venham de contextos variados. Alguns, como La
Rochefoucauld e Madame La Fayette, vêm dos mais altos círculos aristocratas da
corte, mas a grande maioria (Boileau, Racine, Corneille, Molière, La Fontaine,
La Bruyère, Pascal, Descartes) pertencem a um meio a ser caracterizado como intelectual (mesmo com forte incidência
burguesa). Não faz sentido classificá-los como representantes de um grupo
profissional específico e seus interesses. Precisam ser reconhecidos, como
mesmo fora dos círculos marxistas, por apregoarem princípios ideológicos
(absolutismo e hierarquia feudal) que estão na base da concentração de poder da
época. Correspondentemente aos iluministas, que séculos após se opuseram aos
mesmos princípios, numa guinada mais ou menos consciente, ligada às forças
sociais que surgiram do período intermediário e que nos intelectuais
'encontraram representantes, mediadores.
Não se
está dizendo que as atividades dos intelectuais, socialmente, careçam de traços
de autonomia. Mesmo desprovidos de visão de vida própria que univocamente os
distinguisse de outros segmentos sociais, demonstram como intelectuais, sem
dúvida, uma característica profissional que deixa marcas em seu trabalho. Antes
de tudo, a alegria e o orgulho da tarefa assumida, a consciência de inserir-se
numa grande tradição, e com sua iniciativa definir o nível e o desenvolvimento
cultural. Este enfoque tanto é útil quanto ajuda o intelectual a salientar a
independência do trabalho espiritual, defendendo-se de intromissões externas.
Psicologicamente, o enfoque comporta um inevitável momento de risco ao reforçar
a tendência de isolamento e autossuficiência que a natureza da questão engloba,
ao se assumir o trabalho como tarefa ou vocação.
Isso é
claro na arte e na literatura. Numa ordem social como a do capitalismo, com
tendências de especialização e mecanização, a luta dos intelectuais em defesa
de sua integridade expressa-se na I'art
pour l’art, enfoque que considera a arte como algo em si e trata a forma
pura sem vínculos e dependência para com o pensamento e os intuitos sociais.
Não farei crítica pormenorizada deste enfoque, contestável por motivos vários,
mas a observação básica é que o resultado está na impossibilidade de seus
defensores produzirem arte, pois arte é expressão, e expressão é a comunicação de
um conteúdo, de uma mensagem. Daí a paradoxal situação de arte como substituta da religião na poesia
culminar, com Gautier, numa poesia joalheira,
indiferente do ponto de vista estético. A religião como fonte de inspiração legou-nos
obras poéticas de grandeza inestimável: d'A
Divina Comédia até Paradise Lost,
insuperáveis.
Algo
parecido acontece em relação à política. De certo modo nada é mais equivocado
que a imagem que intelectuais não tivessem influência quanto a isso. Pode-se
opostamente afirmar que a moderna política é de especial interesse dos cultos
especialistas intelectuais, sem com isso dizer-lhes influentes nos destinos da
mesma. A atribuição - o mandato, nos
meios parlamentares - não ultrapassa o limite da vontade dos mandantes. Da
história se sabe que os intelectuais jogaram os principais papéis políticos em
períodos de aguçada contradição de classes, quando mais apaixonadamente que
outros partidarizaram-se num ou noutro lado, em objetivos e princípios. A
revolução francesa e a russa eloquentemente testemunham o que uma objetiva
elite intelectual consegue fazer em sintonia com a intuição e as necessidades,
o que também origina a incabível tese de serem as mudanças obra de intelectuais.
Com
resumidos arrazoados não pretendo ter esvaziado a complexa questão da posição
dos intelectuais na luta de classes. Sem dúvida, comporta um sem-número de
momentos não abordados. Abordando a arte e as classes sociais, meu conterrâneo
Erik Blomberg disse: a par das tradições profissionais e da configuração social
do poder, cada artista necessariamente sofre influências de reminiscências
psicológicas do meio em que se desenvolveu, que sempre cruzam os anseios de
caráter mais genérico que expressa em sua obra. Até num pintor tão qualificado
como Watteau, aponta Blomberg, achamos cenas da vida de camponeses e
desprovidos que atenuadamente lembram sua origem proletária. Mutatis mutandis, vale para a
literatura. Referimo-nos ao deboche de Molière quanto ao prazer da burguesia em
copiar o modo de vida da aristocracia, relacionando-o à forte valorização do status pessoal no feudalismo. A crítica,
todavia, tem outro lado. Se atentarmos, por trás do riso molieresco ouviremos a deguisada autoconsciência burguesa, que
amargurada e desgostosa volta-se contra a falta de dignidade manifesta nos
hábitos dos nouveaux riches,
sentimento semelhante àquele que um autor socialista de comédias dedicaria ao
funcionário público aburguesado ou ao pelego sindical.
Isto
constatado, não abandonamos nem modificamos posicionamentos marxistas. Mas se
advirta tratar-se de uma aplicação esquemática e mecânica do método. Bem
salienta Marx, a compreensão materialista da história jamais pode ser tomada
como chave universal, com cuja ajuda os problemas científicos têm solução predeterminada.
Em polêmica com Rue, Blomberg exemplifica que equívocos tal enfoque pode
produzir. Quase sempre o motivo é a insuficiente análise do posicionamento e da
função dos intelectuais; logo, da influência dos fatores pessoais sobre forma e
conteúdo.
Parte V
Que se
mantenham em mente esses fatos, quando se avaliarem as iniciativas de produção
cultural proletária autônoma, após meados do século XIX parte integrante da
luta pela emancipação da classe trabalhadora. É comum querer-se menosprezar a
importância de tal anseio observando que só em muito pequena escala a produção
cultural emana dos trabalhadores eles
mesmos. A observação não faz sentido. Na história, nenhuma cultura
(dominante ou de oposição) surgiu como produto direto das atividades autônomas
dos grupos engajados na luta pelo poder social. O processo dá-se com a
intelectualidade deixando inspirar-se por valores adotados por um ou outro
grupo em luta, criando a partir de experiências e ideais. Não nos confundamos
pelo fato de a luta cultural proletária, na primeira fase, marcar-se por
tradições e maneiras de pensar da burguesia. Nesse aspecto há paralelismo ao
desenvolvimento descrito sobre o Absolutismo. Assim como os representantes
culturais da burguesia não estão em condições de encontrar formas que correspondam
a seus íntimos anseios, os intelectuais socialistas próximos dos trabalhadores
têm dificuldades de criar expressões adequadas aos anseios do proletariado.
Mesmo sendo novos conteúdos, sua confi-guração estará vinculada a regras e
modelos anteriores.
As
primeiras experiências significativas para expressar a visão de vida do proletariado
em arte e literatura aparecem com o naturalismo, fim do século XIX, tendência
sobremodo burguesa, embora eivada de radicalismo progressista.
Concomitantemente fundamentada numa doutrina estética com exigências de
abrangente reprodução da realidade externa, leva o artista além do meio
burguês, sugere-lhe motivos antes excluídos de seus interesses. Em muitos casos
procede a uma reprodução bastante superficial, e o resultado mais parece
reportagens sociais que arte. Se a vivência do artista - de seu objeto - for
autêntica, forte, será inteligível não limitar-se a isso. A fidelidade ao
material e a seu próprio encargo força-o a mais ou menos transgredir o objetivo
inicial. Vemo-lo em Greve dos Mineiros
(Zola) e Os Tecelões (Hauptman), em Canção do Linho (Thomas Hood), nas
imagens do trabalho de Courbet e Millet, nas esculturas de Meunier ou nas gravuras
de Steinlein e Kãthe Kollwitz. Nesses trabalhos há não só uma dimensão
patético-revolucionária proletária, mas também o fermento do estilo novo, que
desmorona a origem naturalista.
Esses
fermentos evidenciam surpreendente força vital. Escritores como Nexõ, Gorkij e
Upton Sinclair (A Selva) surgem em
algumas décadas, formando uma corrente autônoma que em consciente contradição com
a dissolução da literatura burguesa revela uma conseqiiente visão de vida
socialista. Corrente que se expande no romance com Arma Seghers, Silone,
Malraux e Traven, no período entre as guerras. Na Suécia, escritores
proletários: Martin Koch, Jan Fridegârd e Lo-Johansson. Na literatura dramática
se pode citar Brecht, Tollers e o teatro de Nordahl Gireg. No campo da lírica,
a poesia negra de Langston Hughes, os versos agitadores de Rudolf Nilsen e as
narrativas urbanas de Becher nos anos 20 (A Cidade Faminta). Na arte figurativa
nasce corrente semelhante, de menor intensidade: desenhos de Masereel e George
Grosz, afrescos de Rivera e quadros de Aulie, Midelfart e Amelin bem
exemplificam.
Dificilmente
se pode caracterizá-la ao naturalismo, a próxima tendência, como pseudomorfose
sentido iluminista do século XVIII. Para tanto é por demais consciente e
próprio. Tanto teórica como artisticamente é fraco mesmo se isso aparece menos
nos pioneiros do que nos seguidores, principalmente na literatura
norte-americana (Dos Passos, Farrell, Caldwell, e parcialmente também em
Steinbeck e Richard Wright). Na visão marxista pode-se afirmar dar-se exagerada
importância ao elemento materialista e ater-se menos ao dialético. Reduz-se a
participação proletária à condição de passivo das circunstâncias e do meio
ambiente, produto no qual a revolta instintiva das massas contra o estabelecido
têm papel principal e a iniciativa individual fica de lado. Contrapõe-se ao
enfoque naturalista exigindo um realismo
socialista que faça justiça às forças criativas do desenvolvimento e
formalmente se valem da herança da tradição cultural clássica.
É cedo
para tirar conclusões quanto a uma tendência em desenvolvimento. A ex-União
Soviética, na literatura como na música, tem os maiores nomes: Sjolochov,
Simonov, Fadejev, Sjostakovitj; e na escultura também aponta alguns bons nomes.
Não se pode negar, contudo, que o vínculo a modelos clássicos lega uma
tendência de ecletismo acadêmico que se evidencia principalmente na pintura, no
exagero nacionalista, monu-mental e popular. Nada mais compreensível que o povo
soviético querer expressar pela arquitetura a autoconsciência de suas
conquistas sociais e de sua duramente conquistada independência política.
Porém, quando o sentimento se externa em formas arquite-tõnicas tragicamente
referentes à Alemanha guilhermina, de emblemas heráldicos e fachadas sobrecarregadas
de colunas, percebe-se que o estágio inicial não foi ultrapassado.
Reforça-se
tendência ao ecletismo porque a crítica russa, em reação à experimentação
unilateral da arte burguesa com meios de expressão técnica, ignora as
conquistas formais. Posicionamento muito perigoso. Isola-se de importantes
impulsos para desenvolver e renovar. Pense-se o que se quiser pensar quanto à
iso-.térica e complicada configuração da lírica moderna. É certo que ninguém,
nem aqueles que - como o autor deste livro - veem na simplificação da dicção o
verdadeiro ideal, podem hoje criar uma poesia com pretensões de expressar seu
tempo, sem antes captar o resul-tado do pioneirismo da Valéry, Rilke, Blok e
Eleito. Isto sem querer afirmar que o escritor socialista tenha de pôr em sua
obra reminiscências de seus versos. É necessária uma aquisição produtiva, a
reinterpretação num plano novo e mais elevado.
Que a
cultura socialista tem ainda muitos problemas não resolvidos não espanta.
Existindo num mundo a ela hostil, sob a pressão de uma superpoderosa ideologia,
enfrenta duplo problema. A atenta crítica a desvios seus exige ser reconhecida
como progressista sem incorporar os melhores e os mais válidos componentes da
cultura que combate. De sua própria natureza faz parte manter-se equilibrada
entre forças de tração contrária o que não decorre de nenhuma formula
preestabelecida. A tarefa exige contínuas atenção e vigilância, ininterruptas
renovação e adaptação. A uma nova situação precisa fazer tornar-se possível
criticar cada novo problema.
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