Claude Méril Schnaidt (* 23. Junho 1931 em Genebra; † 22. Março 2007 em Paris). Militante
comunista franco-suiço, arquiteto e teórico da arquitetura.
Tradução:
Frank Svensson
As
definições sucintas de arquitetura têm apenas uma utilidade de conveniência. A
prazo mais ou menos curto elas tornam-se herméticas. Para explicar realmente o
que significa arquitetura, o que a liga às outras coisas e a distingue, corno é
feita, se manifesta e se desenvolve, é mister infringir a regra segundo a qual
a concisão contribuiria para a clareza da definição. A arquitetura pode ser
definida como atividade, como produto dessa atividade, como resultante de
fatores, corno um todo composto de partes e como parte de um ou mais todos.
I -- Atividade e produto.
A arquitetura é urna atividade produtora, uma
das atividades do homem em que ele se apropria da natureza e a transforma pelo
trabalho. Deste modo, ela subordina-se às condições da produção social dos bens
materiais em geral. Emprega e depende das técnicas, que evoluem com o
desenvolvimento dos meios e das relações de produção. Mediante um encadeamento
de operações, no qual o projeto é apenas urna fase, a arquitetura transforma em
realidade concreta as intenções referentes à edificação e à manutenção do
habitat tomado no sentido lato. Na qualidade de produto e como instrumento da
vida material, a arquitetura é um intermediário entre o homem e a natureza.
Reflete ao mesmo tempo as condições impostas pela matéria que é preciso
trabalhar e as exigências vitais do homem, ou seja, as propriedades do objeto
que deve servir a ele e que é necessário executar.
A
arquitetura é construída, fabricada. É feita de matéria trabalhada, disposta,
estruturada, para resistir às forças naturais da destruição. Insere-se no meio
físico: local, natureza do subsolo, topografia, acesso e clima. É realizada por
um custo e dentro de um prazo definidos. E essas imposições da arquitetura
conjugam-se à necessidade de um determinado funcionamento. A arquitetura
satisfaz necessidades, serve, tem uma destinação, funções. Torna a natureza
habitável com o objetivo de assegurar a subsistência da sociedade. É o
receptáculo da organização espacial da vida, o âmbito propicio ou desfavorável
à realização da maior parte das atividades. É condição, meio, materialização,
fôrma e reflexo das relações sociais.
O
conteúdo de classe do produto arquitetural é expresso essencialmente nas
funções que a sociedade lhe destina e no uso real que se faz delas. As funções
correspondem a necessidades específicas, que são satisfeitas pela distribuição
do espaço e pelas propriedades físicas e morfológicas dos componentes da obra.
Disso resulta que a qualidade do produto arquitetônico depende da concordância
entre a função -- seu para quem, seu para quê, sua razão de ser -- a estrutura
-- aquilo pelo qual é concretizado materialmente -- e a forma -- o como se
revela, sua maneira de ser.
II -- Objeto de percepção.
A
arquitetura manifesta-se, cria um meio, exerce uma influência sobre o homem,
dirige-se a seus sentidos e a seu espírito, participa na formação de sua
consciência. Integra-se à esfera emocional e intelectual da sociedade A
arquitetura é objeto de percepção, suporte de mensagens, portadora de
significado, meio de comunicação social, do conhecimento e do reconhecimento,
testemunho cultural. Os homens aproveitam a função comunicativa da arquitetura
para atuar sobre seus semelhantes, para canalizar ideias (as ideias dominantes
sendo as da classe dominante), para afirmar o que são e o que gostariam de ser,
para mascarar a verdadeira natureza dos objetos. Esse desvio é possível graças
à relativa autonomia da forma arquitetônica. Com efeito, a linguagem da
arquitetura tem tendência a conservar os elementos formais muito depois do
período histórico em que surgiram e se justificavam tecnicamente. Se certas
formas, associadas no passado a certos conteúdos, permanecem e estão carregadas
de um significado simbólico, isto não se dá apenas em virtude do costume, mas
também do poder que conferem aos homens.
III -- Resultante de fatores
A
arquitetura pode ser compreendida como resultante de fatores: o programa, isto
é, o enunciado das exigências a que o produto deve satisfazer; a economia do
país, sua política de construção e a situação financeira de quem encomenda a
obra; o estado do patrimônio imobiliário, as necessidades e o mercado; a
organização da indústria da construção civil e dos seus profissionais; o
instrumental, os materiais e processos disponíveis; a capacidade e a cultura
dos que atuam na construção; o terreno, o meio e o clima; a legislação e a
regulamentação; as relações de classes, os modos de vida, as aspirações, os
costumes, as crenças, as concepções de Inundo e os ideais estéticos.
IV – Parte de um todo
A praxe
de explicar a arquitetura como um todo constituído de três partes remonta a
Vitrúvio. Autor do único tratado de arquitetura de sua época que foi
preservado, para ele “três coisas devem ser encontradas em todas as
edificações, a saber : a solidez firmitas,
a comodidade utilitas e a beleza ventistas, que a arquitetura leva em
conta para o ordenamento e a disposição de todas as partes componentes da
edificação e que ela regula mediante uma justa proporção, tendo em conta a
ornamentação e a economia". À tríade firmitas-utilitas-venustas
de Vitrúvio correspondem firmitas-commoditas-voluptas
de Alberti, construção-distribuição-decoração e verdadeiro-útil-belo dos
teóricos clássicos, bem como estrutura-função-forma dos modernos.
Pode-se
duvidar da validade epistemológica destas variantes, como fez J. N. Durand pela
primeira vez no início do século XIX. Bem analisadas, elas definem menos o fato
arquitetura que as qualidades que esta deveria ter. Muitas definições de
arquitetura enveredam pela via clássica mais curta, que é a do gênero e da
diferença específica, o gênero designando o todo do qual a coisa a definir
constitui parte; e a diferença especifica distinguindo a coisa de todas as
demais do mesmo gênero.
Isto dá,
por exemplo: arquitetura igual a meio ambiente construído. Uma boa definição
devendo corresponder a tudo o que é definido, seria preciso que tudo o que e denominado
arquitetura fosse meio ambiente construído, e que todos os meios ambientes
construídos fossem chamados, sem exceção, arquitetura. Ora, tal não é o caso. A
arquitetura como atividade escapa a esta definição. Por outro lado, parece
arriscado afirmar uma igualdade lógica entre a arquitetura e uni vinhedo em
terraços, ou um avião, que apesar de tudo não deixam de ser meios ambientes
construídos.
V -- Arte de constmir
Para a
maioria das pessoas, a arquitetura e a obra de um artista-técnico que alia a
estética ao indispensável. Por suas práticas e seus escritos, os arquitetos têm
contribuído grandemente para a difusão dessa imagem. Foram eles que definiram a
arquitetura como a arte de construir, fórmula que ainda hoje é objeto de vivas
controvérsias, por causa do gênero em que se classifica a arquitetura.
A
palavra arte pode ser compreendida em sentidos muito diferentes. Ela designa:
1) a maneira judiciosa de fazer; 2) a maneira de obter algum resultado por meio
da habilidade, da destreza e do talento; 3) o conjunto das práticas,
conhecimentos e regras de atuação num domínio particular; 4) a expressão, pelas
obras, de um ideal estético; 5) as
atividades e as criações que tendem a essa expressão; 6) os domínios onde a
beleza é realizada. Nos três primeiros sentidos, a arquitetura é a tecnologia,
o saber-fazer da construção. Mas pode redundar na exclusividade, porque as
aptidões dos construtores não estão distribuídas igualmente. A arquitetura
torna-se então o ato de construir bem, a boa construção.
Pelas
outras três acepções da palavra arte, a arquitetura é a construção
esteticamente válida, que satisfaz a sensibilidade estética, conforme a ideia
do belo. É a construção bela. Estas interpretações da definição são ainda mais
seletivas que as anteriores. Em última análise, a arquitetura resulta na arte
construída, na beleza realizada, ou seja, no mundo independente das ideias,
anterior à realidade material e à consciência humana. Se a arquitetura é a
tecnologia que permite construir, então arquitetura e construção constituem uma
só e mesma coisa. Se ela é a boa construção -- qualidade relativamente fácil de
aquilatar -- é automaticamente bela porque boa, ou então se torna bela em
certas condições, por uma intervenção e além de um limiar que ainda não foi
definido. Essas incertezas e suas múltiplas reincidências na prática fazem
ressurgir constantemente a interrogação: a arquitetura é ou não urna arte?
Colocada em termos intemporais e absolutos, esta pergunta requer também urna
resposta absoluta. Ela implica uma opção impossível de fazer racionalmente
entre um sim e um não que podem ser defendidos, tanto um como o outro, com
excelentes argumentos. Só a história do desenvolvimento interativo dos fatos e
do conceito de arquitetura permite sair do dilema.
VI – Tecnologia
Primitivamente,
o utilizador do abrigo é o seu próprio construtor. Ele ainda não o projeta numa
fase preliminar distinta da execução. Posteriormente, construir se torna uma
profissão. Construtores edificam para usuários que, por sua vez,
especializaram-se em outras atividades. Nas
grandes obras que exigem conhecimentos especiais, as tarefas de concepção e de
administração separam-se das tarefas de execução. De qualquer maneira os
mestres-de-obras dos santuários e fortalezas continuam sendo operários, provavelmente
mais versados que seus colegas, mas, como eles, imersos num concreto impregnado
do imaginário. Nas suas mentes, obra de pedra e Jerusalém celeste são a mesma
coisa. Sua arte, uma das artes mecânicas, é tecnologia. Compõe-se de habilidade
manual, conhecimentos intuitivos, empíricos, subordinados aos valores da
religião e do corporativismo. Não é objeto de teoria, mas apenas, quando muito,
de receitas. Não se aplica, ou se aplica muito pouco, à criação original.
VII -- Maneira de construir bem
Com o
surgimento na Renascença de necessidades e clientes novos, a arte de construir
muda de conteúdo. É preciso renovar as cidades, que tomam novo impulso, criar o
ambiente dos grandes senhores, dos altos dignitários eclesiásticos e dos
mercadores bem-sucedidos, racionalizar o trabalho em um número crescente de
grandes obras, para onde aflui uma mão-de-obra camponesa pouco qualificada,
exibir o ideal prometeico da elite, a força do Estado e a universalidade da
Igreja Católica. Os novos clientes, ávidos de distinção, não se interessam
absolutamente pelos pedreiros e carpinteiros que, mesmo sendo mais habilidosos
que os outros, repetem modelos impregnados de tradições populares. Esses
clientes precisam de interlocutores que compreendam as suas exigências e sejam capazes
de satisfazê-las. Como estes últimos, eles carecem de regras escritas que
possam ser difundidas e discutidas.
Assim se
constitui unia teoria da arte de construir que permite ao mesmo tempo oferecer
a prova da cientificidade da arquitetura, retirá-la das artes mecânicas, desvalorizadas pela degradação da condição
operária, e elevá-la à condição de atividade nobre, e impelir os arquitetos
para as altas esferas do espirito e da sociedade. A arte de construir (arte
ainda é mais ou menos sinônimo de ciência e de técnica) vem a ser então a
maneira de construir bem que consiste em imitar os antigos -- os gregos e os
romanos, que supostamente elevaram à perfeição os dispositivos naturais
primitivos de construção -- e transformar a edificação num todo homogêneo e
completo. Em oposição à maneira má, que é a do poviléu e dos pedreiros que se
contentam em justapor os elementos numa ordem que se assemelha a uma desordem,
a maneira boa segue uma ideia ordenadora única e baseia-se no princípio da
unidade.
Deste
modo, a boa maneira de construir confere categoria à arquitetura e, consequentemente,
às pessoas a quem se destina. É certo que as peças arquitetônicas devem ser
sólidas e cômodas, mas antes de tudo devem representar e servir à
representação, dentro do respeito estrito das usanças. Com a maneira de
construir bem, os grandes deste mundo têm
um belo meio de exibir suas vidas e de deixar empos de si marcas de sua
grandeza e de seu espírito e, da mesma forma, os arquitetos podem
notabilizar-se pela beleza e excelência de suas obras" (Paládio, vol.
111-5).2
VIII -- Bela construção
É
suficiente construir bem para que a arquitetura seja bela? Não, se por
construir se entende solidez e comodidade. E sim, se construir bem for a
aplicação da totalidade das regras. No discurso dos arquitetos da Renascença e
dos três séculos seguintes, a beleza aparece como recompensa da fidelidade aos princípios
de imitação, unidade, proporção, simetria, hierarquia, de conveniência etc. Não
é abordada frontalmente porque é dificil discutir uma ideia apresentada como
uma reminiscência do esplendor de Deus.
A beleza
está na Criação, na natureza, na herança dos antigos, que convém imitar. Está
em tudo o que é conforme as regras que o homem soube inferir da ordem
pretendida pelo Criador. A menor infração aos princípios de subordinação das
partes umas às outras, por exemplo, é uma fealdade.
Por
isso, a obra de pedreiro, as casas da
plebe, e as construções góticas, com suas ensambladuras e excrescências
proteiformes, são abominações. Sentença que é um meio de legitimação, porque os
arquitetos, pouco numerosos e responsáveis por unia parte ínfima mas vantajosa
da construção, defrontam com uma multidão de mestres pedreiros que podem muito
bem se arranjar sem eles. Vemos aqui a origem da dúvida possível entre a
arquitetura como um conjunto de obras raras
dos grandes arquitetos e arquitetura como meio ambiente construído sem
distinção de objetos e de criadores. Por conseguinte, a partir do Renascimento
e durante muito tempo, a arte de construir identifica-se com a bela construção.
A arte dos arquitetos, que não trabalham mais com as mãos na obra, consiste em pôr tanta beleza na alvenaria
que mais não se possa desejar (Alberti, vol. VII).3
Alguns
podem perguntar-se se, na criação dessa beleza, os arquitetos não procuram
também fugir a na verdade particularmente amarga: o preço de sua autonomia
profissional é sua submissão à fortuna e à benquerença dos nobres.
IX -- Construção útil
No
século XVIII, quando se requer uma arquitetura mais cômoda, mais íntima e mais
econômica, ninguém duvida de que o fim do sistema arquitetura] originado no
Renascimento esteja começando.
A
arquitetura torna-se o teatro de urna série de conflitos: a variedade e a
variabilidade crescentes das necessidades contra o peso dos modelos imutáveis;
o preço do trabalho e a inversão de capital produtivo contra o gosto e o custo
do ornamento; o princípio da igualdade dos homens e dos cidadãos contra a
arquitetura corno privilégio de classe; a concepção edificante e libertadora da
arte contra a arquitetura estabilizadora e justificativa da ordem estabelecida;
a inteligência crítica e a confirmação da perfectibilidade das sociedades
contra a tradição e a autoridade dos antigos.
Pouco
depois da Revolução Francesa aventou-se a concepção de que a conveniência e a
economia eram os únicos princípios que podiam orientar o estudo e o exercício
da arquitetura; de que, quando é tratada consoante esses princípios, é
impossível que a arquitetura não agrade; de que desde que uma edificação contenha tudo o que é preciso e nada além do
que deve conter, e desde que tudo o que é necessário se encontre disposto de
maneira mais econômica, isto é, da maneira mais simples, essa edificação tem o
gênero e o grau de beleza que lhe convém (Durand, vol. II 6). 4
Dito de
outro modo, a arte de edificar é a construção útil, forçosamente bela porque
útil. Não é que a arquitetura antiga tenha sido inútil, mas útil por significar
uma transposição do ideal para o material nas funções preponderantes. A beleza
imanente nos princípios eternos, reproduzida por sua aplicação, torna-se
resultante de fatores particularizados, atualizados.
Essa
posição se depreendepreende do novo escopo atribuído à arquitetura : a utilidade pública e particular, a
felicidade e a conservação dos indivíduos e da sociedade (Durand, 1817,
118). Porque, com efeito, como poderia a
arquitetura escapar à abolição dos privilégios ? Ela deve a partir de agora conhecer todas as
necessidades, ser concebida e executada no interesse da sociedade toda.
Necessidades às quais a burguesia, sedenta de lucros e ciosa do poder que
conquistou, é incapaz de responder.
X -- Embelezamento da rentabilidade
O meio
ambiente é construído em função da rentabilidade do capital, e quando a classe
dominante, temendo insurreições, se decide a fazer alguma coisa em beneficio
dos trabalhadores, é para jungi-los ainda mais firmemente ao seu sistema:
"Quem é que não percebe como a esperança de se tornar proprietário faz o
homem mais trabalhador, mais econômico e mais metódico, e com que intensidade a
sua vida se torna mais ativa e mais interessante? . . . Queremos ao mesmo tempo
fazer os indivíduos felizes e transformá-los em verdadeiros conservadores?
queremos combater simultaneamente a miséria e os erros socialistas? queremos
reforçar as garantias de ordem, de moralidade, de moderação política e social?
Criemos cidades operárias!" (Jules Siegfried, deputado-prefeito do Havre,
1880).
O
urbanismo nascente muito rapidamente se divide em práticas antagônicas. O
social é assunto dos altos funcionários, dos juristas e dos políticos eleitos;
das administrações municipais. O concreto está nas mãos dos especuladores,
empresários e engenheiros. Aos arquitetos resta o embelezamento. Urna regulamentação cada vez mais meticulosa tenta
evitar o pior. Simultaneamente, a Revolução Industrial aniquila as tradições
locais e milionárias da construção. O ferro, o concreto armado, a água, a
eletricidade e as máquinas irrompem na casa. Subitamente o ferramenta', a
experiência e o saber dos antigos do oficio não estão mais à altura dos
problemas inteiramente novos, de uma amplitude até então desconhecida, que
devem ser resolvidos em prazos muito curtos.
XI -- Poesia da construção
Assustados
com o desastre de seu universo, com a ruína de suas prerrogativas e com a
competência dos engenheiros, os arquitetos reagem, adotando uma atitude de
refugio na tradição e nos setores da demanda em que ela se pode perpetuar. Não
obstante, dentro dos limites do liberalismo e face à necessidade de uma
flexibilidade do repertório formal para adaptar-se à variedade dos programas,
sua relação com o passado torna-se eclética. Agora a Antiguidade greco-romana é
apenas uma referência entre outras. Por outro lado, a luta pela obtenção dos
contratos e o romantismo e o individualismo burguês precipitam os arquitetos na
busca da originalidade, na expressão de uma visão pessoal ou de uma mensagem
particular.
A ideia,
da qual a edificação é o reflexo, aparece como surperdeterminante. Opõe-se à
realidade material e às exigências da prática,
que tendem a pervertê-la. A arquitetura é comparada a um ato de pura
criatividade, próprio do indivíduo e independente das injunções sociais,
econômicas e técnicas. Seu objetivo é agradar, emocionar, encantar, despertar o
sentimento quase religioso do belo.
Suas leis não têm outra medida além do gosto. A própria fórmula arte de construir é questionada porque
faz a construção excessivamente bela. Seria preferível Arte (com a maiúsculo) aplicada a construir ou Poesia da construção Se construir bem é atividade de gente honesta,
é para além dessa honestidade que se estende o domínio da arte, ou seja, da
arquitetura.
A boa
construção pode tornar-se uma arte a partir do momento em que,
independentemente de qualquer consideração, demonstre um desejo desinteressado
de enobrecer o quadro da vida. O arquiteto deve estar disposto a sacrificar a
isso seu esforço e seu tempo, e até mesmo, às vezes, uma parte da utilidade da
obra. É no sacrifício que a arquitetura começa. Acusar-se-á o arquiteto de não
se mostrar muito racional? Em arte, não é essencial sê-lo. O talento pouco consegue sem uma pitada de insensatez, e o gênio sem um
grão de loucura. A beleza, que é feminina, exige de seus adoradores ser amada rigorosamente por si mesma, e suas
razões, como as do coração, são razões que a própria Razão desconhece
(Gromort, 1946, 21). São muito raros os arquitetos do século XIX e inicio do
século XX que não endossam estas concepções.
XII -- Germe do futuro
A
situação muda tão logo termina a I Guerra Mundial. Sobre as ruínas das últimas
grandes monarquias e sob o influxo das revoluções, particularmente a russa e a
alemã, surge uma esperança imensa em um mundo novo, em uma vida nova, o que se
concretiza na Nova Arquitetura. Os
arquitetos dessa corrente minoritária, mas influente, prestam ouvidos aos
clamores dos milhões de mal alojados. Tomam como ponto de partida as
necessidades das camadas populares, para as quais nunca havia existido outra
arquitetura senão a imaginada e admitida pela burguesia. Formulam os problemas
em termos de economia, de sociologia e de tecnologia avançada; analisam dados
quantitativos, raciocinam com base em fatos; questionam, sistematicamente, a
sua herança; buscam processos e materiais que se prestem à produção popular a
baixo custo.
Para
eles, o objetivo da arquitetura é proporcionar ao homem, considerado sob seu
aspecto concreto, os instrumentos de sua inserção no meio físico e social,
considerado igualmente na sua realidade concreta. A sua arquitetura não é
apenas uma resposta às necessidades momentâneas, mas urna componente de um
projeto global de sociedade. Ela direciona-se a introduzir no presente os
germes do futuro, procura contribuir para a modificação do sistema de vida e
das práticas sociais, para a libertação da escravidão doméstica e das
convenções burguesas, e para o estabelecimento de comportamentos mais livres e
mais responsáveis, e de relações mais abertas e mais fraternas.
XIII -- Função e economia
Nos
arquitetos progressistas mais radicais, essa opção está associada a uma
revogação da arte: Todas as coisas deste
mundo são resultantes da formula: função x economia. Tais coisas não são obras de arte: toda arte é composição e, consequentemente,
antifuncional. Toda vida é função e, por conseguinte, não artística. A ideia da
composição de um porto? Ridícula. Porém corno se concebe um projeto urbanístico?
ou a planta de urna vivenda ? Composição ou função ? Arte ou vida ? Construir é
um processo biológico. Construir é um processo estético. (Meyer, 1928, 47)
Essa
negação da arte, da estética e mesmo da arquitetura (em alemão, o substantivo
Bau, em palavras compostas, pode ser traduzido, ora corno construção, ora corno
arquitetura), é mais matizada do que corno geralmente se apresenta. É ruptura
com a estética do primado e da intemporalidade da forma, rejeição do simulacro
e do vazio dos sucedâneos artísticos na prática arquitetônica capitalista ; é
negação de urna arte que não ousa tirar o véu da sua destinação e foge das
realidades acusadoras do presente.
Porém se a arte sentimental da imitação está
batendo em retirada", se a arte como produção de extravagâncias, como
objeto de coleção e privilégio de um indivíduo deve morrer, se "a
arquitetura como prosseguimento da tradição e como criação subjetiva deixa
de existir, urna nova arte, uma nova arte de construir, já se manifesta. Ela é
criação coletiva, invenção é realidade
manejadas. A arte torna-se realidade. (Meyer, 1926, 32)
XIV -- Arte ou não, ou sim e não
Daí por
diante o debate sobre a relação arte/arquitetura se complica e se envenena. No
mundo capitalista, a ofensiva iniciada através do fascismo contra o movimento
de emancipação das massas, que alimentava a Nova
Arquitetura, é continuada sob outras formas após a II Guerra Mundial. Os
monopólios, ante a expansão do socialismo pelo planeta e o desmoronamento dos
impérios coloniais, mudam de estratégia para integrar duradouramente as várias
camadas sociais ao sistema socioeconômico vigente.
Induzem
ao consumo individual, apresentado como a via para o bem-estar de todos. Em consequência,
a organização da vida já não aparece corno um objetivo da ação coletiva das
massas. O arquiteto vê desaparecer de seu horizonte as possibilidades de
aliança com os destinatários do seu trabalho, no próprio momento em que uma gigantesca
reestruturação da construção civil restringe ainda mais sua margem de manobra
na produção. Com efeito, os procedimentos decorrentes da industrialização, do
domínio do capital financeiro sobre o imobiliário e do estreitamento do
controle do Estado, relegam o arquiteto a papéis amiúde subalternos, quando não
o excluem de todo.
O
arquiteto -- bitolado entre sua responsabilidade para com os usuários e suas
obrigações para com os detentores e administradores do capital, vacilando entre
exercer a arquitetura como profissional liberal ou como assalariado,
afanando-se entre os trâmites, as reuniões, a correspondência, os processos, a
prancheta de desenho e o canteiro de obras, sobrecarregado por uma congérie de
informações contraditórias incessantemente ultrapassadas e renovadas, oscilando
entre a revolta e a submissão, cindido entre a expressão do seu eu e a
necessidade de levar em conta os outros, e devendo, apesar de tudo, buscar um
porto seguro --, conforme o caso, responde que sim, que não, ou que sim e não à
pergunta: a arquitetura é uma arte ?
XV -- Signos e símbolos
Atualmente
a ideologia dominante não admite mais a menor dúvida: a arquitetura é uma arte.
Uma arte que tem grande dificuldade em ocultar que se dedica à salvação da
sociedade capitalista em crise. No grande jogo político de transferência dos
capitais para as especulações financeiras, de compressão do poder de compra e
consumo dos trabalhadores, de confisco das conquistas sociais, especialmente na
habitação, a arquitetura de pronto surgiu como um peão não desprezível. Ela é
importante para concluir a comercialização da cidade, para o apaziguamento das
lutas urbanas e das ansiedades geradas pela revolução
conservadora, para o estabelecimento de um compromisso entre a classe
dirigente e as camadas sociais médias em ascensão. Fato novo: a arquitetura e suas ideologias
conformes às linhas diretrizes fazem parte do acordo mediador.
Dos
arquitetos à espreita de licitações, raríssimos são os incumbidos de contentar
as pessoas que, atemorizadas pelo desemprego e a ferocidade da competição, pela
desestabilização de suas vidas e pelas ebulições do mundo, voltam-se para si
mesmas e retornam os valores do passado. Aos vencedores do neoliberalismo, eles devem fornecer um meio que os
engrandeça. Ao meio ambiente da sociedade, tornado insensato como ela, devem
devolver uma alma. Nunca mais se havia procurado modificar a cidade para
modificar a vida. Essa reinvindicação, aventada na agitação do final dos anos
sessenta, foi desviada para um consenso sobre a prescrição : mudemos a imagem
da cidade para que a ideia que os homens têm de suas vidas mude. Isto se traduz
concretamente num trabalho sobre o signo, sobre o símbolo. A arquitetura é
apreendida como unta linguagem alimentada pela memória histórica. Seu principio
é dizer às pessoas as coisas que se acha que elas compreendem e desejam
entender. Na realidade, trata-se de dar à arquitetura um significado diferente
daquilo que é, de tornar ainda mais obscuras as relações sociais que a modelam,
de impor silêncio a respeito delas.
XVI -- Arte da ilusão de óptica
Dentro
desta perspectiva, a arquitetura não pode mais ser definida decentemente como a
construção honesta e desinteressada. Ela é a arte do embuste, da mentira
cínica. Mas como a confissão da burla anularia a sua eficácia e minaria
perigosamente a dignidade da arquitetura, os teóricos burgueses atuais esvaziam
ainda mais radicalmente que seus predecessores o conteúdo social, o econômico,
o político e o técnico e procuram fundamentar um conhecimento da arquitetura a
partir dela mesma, ou de um pensamento sobre o espaço, ou de análises abstratas
dos códigos simbólicos.
Abolidos
o homem, a matéria, o trabalho e a vida, as únicas coisas que lhes restam como
categorias são o vazio, a aparência, a imagem, a inconsciência, o supremo e o sagrado.
O manifesto Arquitetura absoluta, de
Hans Hollein, foi considerado em 1963 como uma farsa de um provocador isolado.
Na realidade esse manifesto era unta premonição da tendência hoje predominante
nos países capitalistas avançados: Construir
. . . não é pôr um teto para proteger-se; é erigir figuras sagradas, marcar os
recintos das atividades humanas . . . A arquitetura não serve para satisfazer
as necessidades dos medíocres, não é o âmbito dos destinos obscuros das massas.
A arquitetura é feita para aqueles que
se encontram no ápice da cultura e da civilização, na vanguarda do
desenvolvimento da sua época. A arquitetura é assunto das elites.
Ela domina o espaço pela massa e pelo vazio,
reina sobre o espaço pelo espaço . . A forma de uma edificação não deve denotar
seu uso, não é a expressão de uma estnitura e de uma construção, não é um
envoltório ou um abrigo. Urna edificação é ela mesma. A arquitetura é gratuita.
O que nós construímos encontrará sempre uma utilização. (Hollein, 1962 ; Conrads, 1964, 174-175)
N o t a s:
1)
Marcus Vitmvius Pollio, engenheiro e arquiteto romano do século I a.C., autor
da Basílica de Fanum. Vitrúvio escreveu o tratado De Arehitectura, dedicado ao imperador Augusto e em que procurou
codificar os prineipios da arquitetura helenística. Essa obra, que constituiu a
única abordagem teórica da arquitetura antiga existente, foi largamente
utilizada e interpretada pelos arquitetos da Renascença.
2)
Andrea di Pietro, vulgarmente Palladio, arquiteto italiano (Pádua, 1508 -
Vicenza, 1580). Construiu basílicas, um teatro olímpico e mansões. Publicou Quatro Livros de Arquitectura, adotando
os princípios de Vitruvio adaptados a concepções mais modernas.
3)
Leon-Battista Alberti, humanista e arquiteto italiano (Gênova, 1404 - Roma,
1472). Escreveu o tratado De Re
AEdificatoria. Obras de modernização urbana e palácio em Florença, igrejas.
4) Jean
Nicolas Louis Durand, arquiteto, arqueólogo e teórico francês. (Paris, 1760 -
Thiais, 1834). Escreveu Précis des leçons
données l'École l'olyteehnique, em que preconiza a adaptação dos elementos arquitetônicos
sua função, uma arquitetura prática, sólida, de formas simples e simétricas, e
a sobriedade na decoração.
F o n t e s
VTTRÚVIO.
De Architectura libri decem (Dez
livros sobre Arquitetura). Berlim, 1964.
PALLADIO. A., Os quatro livros da Arquitetura. Veneza, 1570.
ALBERT1.
L. B., Da arte arquitetônica.
Florença, 1485.
DURAND.
J. N. L., Compêndio das lições de Arquitetura
ministradas na Escola Politécnica Real. Paris, 1817.
GROMORT.
G., Ensaio sobre a teoria da Arquitetura.
Paris, 1946.
MEYER.
H., 1929, Construir/1926, o novo mundo,
In: L.
Meyer-I3ergier (organizador). "Hannes
Meyer -- Construção e Sociedade Dresden, 1980.
HOLLEIN.
H., Arquitetura absoluta, In: U.
Conrads (org.), Programas e manifestos da
Arquitetura do século XX. Berlim-Frankfurt am Main-Viena, 1962
Frank,
ResponderExcluirÉ um grande prazer revê-lo!
Espero que estas linhas o encontrem com saúde, e que possamos nos ver em breve.
Preciso me orientar com você sobre política partidária, e como inserir o PCB aqui em Paraty!
A coisa está feia...
Um grande abraço!
Leonardo Xavier (Léo)
ecoleo@bol.com.br