Frank Svensson -- professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de Brasília. Trabalho publicado originariamente em : Tidskrift för arkitekturforskning,
Estocolmo, 1987.
No
presente texto atemo-nos, com base na teoria do reflexo e do aprofundamento do
conhecimento, -- uma das teorias basilares do materialismo dialético -- a
buscar indicações para a estética da arquitetura. A teoria do reflexo e do aprofundamento não
constitui uma parte isolada do corpo teórico da materialismo dialético. É uma
das preciosas considerações do corpo teórico deixado por Lenin.
A teoria do reflexo e do aprofundamento
A teoria
do reflexo e do aprofundamento faz parte da teoria do conhecimento desenvolvida
a partir do enfoque materialista dialético da realidade. Reflexo e
aprofundamento são vistos como aspectos indissociáveis da busca da verdade,
independentemente de qual seja a área do conhecimento. A relatividade da
verdade não é posta em dúvida, mas faz-se oposição às atitudes que desprezam
aquele conhecimento que, em busca do objetivo material, pelo sujeito, é
entendido como urna infinita aproximação do pensamento ao objeto, um processo
dinâmico de surgimento e solução de contradições. A existência da matéria é
reconhecida como independente da consciência como o produto mais desenvolvido
de uma matéria especialmente organizada: o reflexo do mundo material objetivo
externo ao pensamento.I
A teoria
do reflexo e do aprofundamento nasceu em função do desenvolvimento do pensamento
social. Evidenciou-se como indispensável considerar a vida a partir do processo
em que o mundo objetivo é refletido na consciência humana (de início, a
individual) e no qual essa consciência é submetida a controle pela prática da matérialização.
A consciência não é entendida como limitada à de um indivíduo. As formas
socialmente organizadas também são portadoras de consciência. Diferentemente da
dos indivíduos, incorpora, além daquela, as motivações que reúnem as pessoas em
atividades produtivas e sociais. A comprovação da consciência dos indivíduos,
na prática quotidiana, segue uma tendência histórica de adequação à práxis de
toda a sociedade.
Já os
primeiros defensores da teoria do reflexo e do aprofundamento reconheciam a
indissociável ligação do conhecimento a anseios, vontade e propósitos
subjetivos, em sua evolução para a forma de verdade objetiva. Emoções e
imaginação são vistas como indispensáveis a toda forma de criação humana, em
reflexão ao mundo objetivo. Sua forma própria de verdade é encontrada no típico
como expressão da ação recíproca entre o objeto e o sujeito. Isto diversamente
daquela forma de verdade que exprime o essencial, obedecendo leis e tendendo à
validade universal, enquanto que o típico exprime a verdade sobre o
acontecimento local e ocasional. Duas formas de verdade dialeticamente
relacionadas com o mesmo conhecimento da arquitetura, como fenômeno e como ramo
artístico.
Rumo a uma estética da Sociedade
Ao
intentarmos esclarecer o desenvolvimento histórico genérico da estética da
arquitetura, deparamos unia tendência principal quanto à compreensão do que
seja o seu objeto. O conhecimento que, primordialmente, levou em conta o construído
como veiculo da expressão artística, volta-se na direção do conhecimento que
reconhece a constituição total dos lugares, como portadores da expressão
arquitetônica. A matéria social é reconhecida como veiculo tanto de expressão
espacial como de expressão temporal. A ambiência obtida através da concordância
entre a visão de mundo dos participantes do lugar arquitetônico e sua
espacialidade e temporalidade objetiva apresenta-se como um categoria da
totalidade. A estética da arquitetura volta seu interesse, cada vez mais, para
o espaço e o tempo como formas de expressão da síntese objetiva do ato da vida com o seu cenário. 2
Um
desafio que essa tendência da estética da arquitetura apresenta é o fato de
termos de considerar a arquitetura como
uma firma de atividade. Espacialidade e temporalidade apresentam-se como
propriedades, em ação reciproca, do objeto da arquitetura. Como "captar"
a dinâmica do espaço ou a espacialidade do tempo, e fazê-las inanuseáveis no
exercício do projeto, constitui um dos maiores problemas para o desenvolvimento
do saber arquitetural. Implica transformar o movimento real da vida -- sua
transformação e desenvolvimento -- em produtos próprios ao pensamento. A
questão da relação entre a consciência e a atividade constitui um problema cuja
solução é da maior importância para superarmos os limites tanto do
funcionalismo vulgar na arquitetura, da teoria behaviorista sobre os
comportamentos, bem como das teorias fenomenológicas com base na introspecção
individual.
O
conhecimento sobre a consciência tem se desenvolvido, também, segundo uma
tendência de reconhecê-la como uma forma de atividade. A consciência que não se
expressa sob forma de atividade é considerada como um mito, corno algo que, de
um modo geral, não existe. A falta de clareza quanto ação recíproca entre a
atividade externa ao pensamento e a consciência como atividade, depende da falta
de uma correspondência unívoca entre ambas as formas de atividade.
Para
melhor compreender a relação entre consciência e atividade real, formulou-se,
ainda nos anos 1930, a tese da unidade entre elas mesmas. 3 Restou, no entanto,
a ilusão de se tratar de dois fenômenos independentes, fazendo com que ainda
não pudessem ser vinculados aos princípios da transformação e do
desenvolvimento. Outra dificuldade ligada a essa pesquisa residia na limitação
de seu objeto a relações entre um sujeito, sob forma de uma personalidade
integrada, e o mundo circundante. 4
Reconhecer
a consciência como atividade implicava deslocar o objeto da pesquisa, a seu
respeito, para o sistema social da atividade. Tratava-se de encontrar os
elementos que reunissem a consciência e a atividade real como duas formas de um
mesmo sistema. A ação foi entendida como o elemento no qual podemos encontrar
todos os aspectos do sujeito, presentes nas relações em que e corporificado na
realidade. No campo da arquitetura desenvolveram-se pesquisas sobre as relações
entre as pessoas e os objetos e instrumentos da vida cotidiana. Verificou-se,
por exemplo, que 250 passos diários era um ótimo índice de conforto para a
cozinha de um apartamento moderno. A capacidade de as pessoas agirem não se
limita, no entanto, a entrar em contato com diferentes objetos e agir sobre os
mesmos, mas inclui também a capacidade de desejar, usufruir, compreender e
influenciar o mundo circundante.
Reconhecendo
a consciência corno urna forma de atividade que reflete o sistema social da
atividade real -- solucionando continuamente novas tarefas, dentro de urna
totalidade de diferentes tipos de atividade --, atribuímos pesquisa arquitetônica
a tarefa de esclarecer problemas quanto expressão espacial e temporal de mais
formas de atividade do que as consideradas corno relevantes pelos defensores do
formalismo e do naturalismo, O modo de produção global da sociedade e as
transformações que se dão na constituição dos assentamentos humanos passam a
ser do maior interesse para a estética da arquitetura.
Analisando
a maneira como o sujeito, de forma ativa, recria o mundo circundante,
verificamos corno seus desejos e intenções são transferidos para o objeto de
sua atividade. Em sua forma objetiva, o sujeito perde sua subjetividade. As
habilidades e talentos das pessoas são objetivados pela ação. A forma de
atividade vê-se consubstanciada na forma do ser, e a forma do movimento, na
forma do objeto. Mas produz-se, ao mesmo tempo, um movimento no sentido
contrário, do objeto para os agentes. Para que os propósitos e os desejos das
pessoas venham a ser concretizados em produção real, os atos necessitam
corresponder natureza dos objetos, dos condicionamentos e dos instrumentos. A
atividade criativa, escala de toda • a sociedade, transforma-se em condição e
método para o conhecimento aprofundado do mundo.
Essa
ação recíproca entre o objeto e o sujeito, à escala da sociedade, mostra também
como, em certas circunstâncias movidas por poder e interesses de propriedade,
as próprias pessoas podem ser objetivadas. Pessoas que antes possuíram seus
próprios meios de produção viram-se, ao perder seu direito de propriedade,
relegadas à condição de objeto do processo social do trabalho. Não obstante, a
história oferece exemplos de correção dessa situação por parte da própria
sociedade como um todo, e até mesmo aponta isso como uma tendência genérica.
Pela eliminação das diferenças antagônicas do poder e da propriedade, a população
inteira pode reconquistar sua condição de sujeito da criação de toda a
sociedade, com reflexos na expressão espacial e temporal da arquitetura.
A imagem como categoria fundamental da teoria e
da estética da arquitetura
As
imagens ativas do pensamento valem-se de diferentes produtos próprios: imagens
sensoriais imediatas (perceptivas), imagens (constantes) da memória, imagens de
formas mentais como analogias e associações, as quais revertem numa imagem
abrangente de visão de mundo. Essa imagem maior ganha autonomia em
relação ao mundo objetivo, apresentando-se como um modelo global, ao qual
relacionamos nossas imagens especificas. Relacionar a conformação do lugar
especifico, espacialidade e temporalidade do sistema social, resulta num
reflexo, pela consciência humana, no qual a percepção específica do arquiteto é
relacionada visão de mundo e a uma conceituação de vida mais ampla. Uma
reflexão que se desenvolve em direção ação reciproca de diferentes formas do
conhecimento : a arte, a filosofia, a história, a ética, a estética e até mesmo
a política.
Visão de
mundo e conceituação de vida não são veiculadas somente por indivíduos. São
veiculadas por formas socialmente organizadas, tais como sindicatos e partidos
políticos. As ideologias refletem interesses e motivações de classes e
segmentos sociais. O conjunto cognitivo da sociedade obedece a urna tendência
em que os conceitos sobre as relações dos indivíduos entre si, e destes para
com a natureza, são corrigidos pela práxis social. Essa tendência interage com
outra de caráter ideológico, condicionada pelos interesses de classe que visam
a manter ou mudar as relações reinantes. Uma tendência que é indispensável
levar em conta, se buscamos unia melhor compreensão da temporalidade da
arquitetura.
O
pensamento burguês, por exemplo, esforça-se por reconquistar áreas perdidas
para a interpretação globalista do fenômeno da arquitetura. As estruturas
próprias são revistas em favor de um novo sortimento de expressões, que não
consegue ir além de meramente refletir alguma forma de neocapitalismo.
Revestem-se de uma postura pseudo-humanista, tentando reviver o mito da forma,
como algo em si, conscientizar-se de suas possibilidades. Distanciam-se, ao
mesmo tempo, do conhecimento do conteúdo social objetivo da arquitetura, em
suas tendências, inovações e desenvolvimento. Procura-se subjugar a arquitetura
a urna forma artística em si, isolada da realidade dinâmica da própria vida. 5
Querer
diminuir as diferenças de classe implica na proletarização da produção social,
tanto da material como da espiritual. A arquitetura que vise a satisfazer as
necessidades do crescente proletariado não chega longe sem aprofundado
conhecimento da transformação e do desenvolvimento da constituição social da
arquitetura. A ideologia que favorece as classes trabalhadoras cumpre urna
função fundamental no metabolismo social, no qual o objeto social da
arquitetura tende a tornar-se também o seu próprio sujeito. É ela que,
corrigida pela práxis põe a nu o ilusionismo ideológico das atuais classes
dominantes.
A
criação e o reflexo da realidade estão indissociavelmente ligados um ao outro.
Criando, com base no conhecimento do mundo real, o ser humano controla o
resultado de seu trabalho e, ao mesmo tempo, atinge um conhecimento mais exato
e profundo do desenvolvimento da natureza e da sociedade. O exercício das
atividades de design, de arquitetura e de planejamento urbano moderno e o
surgimento de uma "estética ecológica" evidenciam novas modalidades
de atividade estética, numa tendência de a arte se dirigir a novas formas de
produção. No sentido inverso s influencias da revolução técnico-cientifica de
nossa época, sobre o exercício da arte, apresenta-se, concomitante/alente,
outro processo: a incorporação, pelo sistema técnico-científico, da atividade
estética, dos métodos da criação artística e das formas próprias de expressão
da arte.
Tudo
isso pressupõe uma aptidão imaginativa apurada por parte dos trabalhadores da
arquitetura. Mas para que o sonho, a imaginação e a ideologia sejam de
utilidade, é necessário que se apoiem na objetividade do mundo real, no
descobrimento das leis do desenvolvimento da natureza e da sociedade. Através
de sua atividade, o ser humano cria-se a si mesmo e exprime, espacial e
temporalmente, a ação reciproca entre a vida e o cenário onde ela se
desenvolve. Assim devemos entender a tendência da arquitetura, rumo a urna
"arte da realidade", luz da teoria do reflexo e do aprofundamento.
Notas:
1 -
Sobre a teoria do reflexo e do aprofundamento, ver: Gálio Giorello, Travaux Philosophiques Marxistes en Europe
Capitafiste. Recherches Internationales, número 96, o trecho Sur la Theorie leni niste du reflet el
l'approfindissement. Les
Editions de la Nouvelle Critique. Paris, 1975.
-
Serguei L. Rubinstein O Ser e a Consciência, o trecho A teoria do reflexo pp.
231 a 254.
- Serguei
L. Rubinstein, e outros, Princípios
básicos da Psicologia Marxista, o trecho “O princípio da relação entre o
psíquico e a atividade”. FRAM Editora. Gotemburgo, 1986.
-
Aleksei Leontiev, Atividade, Consciência
e Personalidade, o trecho “Atividade e Consciência”. pp. 192 a 247. FRAM
Editora. Gotemburgo, 1986.
2 -
Sobre a tendência da arquitetura como urna arte da realidade, ver : Gyõrgy Lichtheim Lukács, Estética. O trecho Arquitectura. vol. IV pp 82 a 140. Grijalbo.
Barcelona, 1982.
3 - Já
nos anos 1930, Serguei Rubinstein formulou a tese da unidade entre a psique, a
consciência, a atividade e o comportamento : "Atividade e consciência não
são dois aspectos de direcionamentos distintos. Formam uma unidade -- não uma
identidade, mas uma unidade." Serguei Rubinstein e outros”, Princípios básicos da Psicologia Marxista.
O trecho “Atividade e Consciência”, p. 259. ERAM Editora. Gotemburgo, 1986.
4 -
Sobre consciência e personalidade, ver : . Lucien Seve, Marxisme et Théorie de la personalité. Editions Sociales. Paris, 1982.
- Aleksei
Leôntiev, Atividade, Consciência e
Personalidade. O trecho “Atividade e Personalidade”, pp. 248 a 362. FRAM
Editora. Gotemburgo, 1986.
5 - Em
1965, Píer Paolo Pasolini publicou um relatório enfocando a criação artística,
que em favor das classes dominantes busca resgatar o mito da forma e as suas
possibilidades técnicas próprias.
lnobstante o relatório se circunscreva à arte cinematográfica, o cineasta
emprega conceitos de estética geral que são perfeitamente válidos para a
arquitetura. Filen crítica, n.
156/157, pp. 275 a 285. Roma, 1965.
Prezado Frank,
ResponderExcluirLi seu artigo e fiquei muito feliz pela abordagem teórica.Sou docente da USP em Ribeirão Preto e estudo os teóricos da psicologia histórico-cultural, entre eles Rubinstein. Assim, gostaria de saber se há possibilidade de disponibilizar o texto referente à obra citada "Serguei L. Rubinstein, e outros, Princípios básicos da Psicologia Marxista, o trecho “O princípio da relação entre o psíquico e a atividade”. FRAM Editora. Gotemburgo, 1986."
Agradeço a atenção,
Elaine Sampaio Araujo
esaraujo@usp.br
Colega,
ResponderExcluirA obra referida eu a tenho em sueco. É possível que exista em línguas outras mas desconheço como sabê-lo.A União Soviética era muito ciosa de difundir trabalhos como este em várias línguas, geralmente pela Editora Progrés.
Saudações,
.