Tradução – Frank Svensson
A
apresentação anterior está fortemente simplificada, mas preciso limitar-me às
principais etapas do processo de libertação da burguesia da herança do absolutismo,
na segunda metade do século XVIII. Se estudarmos essa tendência geral de desen-volvimento
e passarmos a analisar casos isolados, veremos que a luta por emancipação se dá
num esquema diferente: toma forma de soluções individuais em que impulsos
contrários unem-se em sínteses de caráter pessoal. Vide o escritor Lessing. Na
Alemanha rompeu com as formas clássicas, apresentou-se como precursor da
pseudomorfose, o que não o impedia de filosoficamente estar mais ligado ao
iluminismo antigo, à tendência que a pseudomorfose começou a superar. Com isso
não se diz tudo. No fim da vida Lessing desenvolve-se na direção de um
spinozismo modificado que não se identifica com Herder nem Goethe (nem com o
materialismo deste), mudança que parece haver atingido o iluminista Mendelssohn,
seu amigo de luta, que o levou à morte.
Mais
complicada é a posição de Diderot. Em sua crítica e em suas peças de teatro,
talvez nenhum outro mostrou tanta paixão pelas virtudes e pela ética burguesa
como expressão-mor da tendência sentimentalista. Em contrapartida, representa
nos romances libertinagem de caráter frequentemente incontrolável: as Cartas Indiscretas podem honradamente
ser equiparadas a O Otomano, de
Brébillon o jovem, a As Memórias do
Cavalheiro de Faubla, e à obra-prima O
Sobrinho de Rameau, em que faz o herói desenvolver com prazer uma visão de
vida irrefreadamente cínica, de eriçar os cabelos da burguesia que no teatro
aplaudiu seu moralizante Pai de Família. Filosoficamente, Diderot cumpriu o
mesmo percurso e atravessou as modalidades possíveis, do iluminado deísmo de Voltaire (Cartas
sobre os Pássaros) a um materialismo ateu com fortes conotações
sentimentais e panteístas. Se se considera ter sido ainda precursor de ideias
que Rousseau divulgou sobre a sociedade, as pesquisas avessas a Diderot têm
algumas razões: ele recusa encaixe em nichos pre-estabelecidos.
Mas não
é tudo. As contradições encontradas em Lessing e Diderot podem ser explicadas
como reflexo do conflito psicológico no qual a burguesia se encontrava, quando
da tensão entre o revolucionário desejo de mudança e a vontade de adaptação ao
estabelecido. Cabe lembrar que nenhum escritor pode ser reduzido a mero produto
social. Se quisermos compreender lhe a obra, teremos de considerar os elementos
e os fatores pessoais que a determinam, tarefa não fácil, porque só por
abstração se distinguem elementos pessoais de objetivos sociais. Para ilustrar
o problema, permitam-me ater-me à figura literária central que em si concentra
as principais correntes espirituais da época, ao tempo em que melhor do que
outros ilustra as dificuldades práticas que os representantes da cultura
burguesa enfrentaram durante o absolutismo: Goethe.
Talvez
possam ser consideradas conhecidas as circunstâncias principais. Nascido em
Frankfurt e pertencendo a uma velha e reconhecida família patrícia, Goethe
estudou direito nas universidades de Leipzig e Estrasburgo. Familiarizou-se com
a tendência literária Sturm und Drang,
à qual aderiu de corpo e alma, que na Alemanha marca a vitória definitiva da
oposição revolucionária burguesa. Seus dois trabalhos mais significativos, a
peça de teatro Gõtz von Berlichingen
e o romance O Sofrimento de Werther
são típicos expoentes de sturm und drang,
carregados de ideias radicais e de juvenil e tormentoso protesto. Em Gõtz von Berlinchingen o herói é um
dirigente da grande revolta camponesa alemã em 1525, aí narrada com
indiscutível simpatia. Influência maior sobre a época teve O Sofrimento de Werther, que de forma simples, natural, expressava
a emoção fundamental: a revolta emocional à libertinagem e o apreço pelo idílio
familiar burguês. Mas não só. Em Werther, Goethe inclui tendenciosa narrativa do
odioso orgulho (para a burguesia) de ser nobre. Observa-se raramente ser o
ferido sentimento de classe que leva Werther ao suicídio, e o fim do livro se
constitui numa crítica à igreja (Nenhum
padre o levou ao túmulo).
Os anos
de Sturm-und-drang (1771-75) foram de
intensa produção literária para Goethe, com Gõtz e Werther, o fragmento de Prometeu e o primeiro esboço da peça Egmont, que como Gõtz mostra um
subversivo como herói, bem como as partes centrais e mais vivas de sua maior
contribuição literária, de seu testamento espiritual: Fausto. Além disso, poemas de amor, baladas e odes, talvez as mais
encantadoras que criou. Como expressão lírica, marcaram época. Com o
indiferente desdém de um gênio, Goethe varre a poeira de um século de dicção
poética e deixa as gastas metáforas clássicas parecerem recém-lavadas, com
clareza e brilho que fa-zem o leitor prender a respiração. Sem esforço Goethe
já conseguira, pelos escritos de sua juventude, o que a revolução literária que
Wordsworth e Coleridge (25 anos mais tarde) iniciaram na Inglaterra, quando com
o alarde de uma considerável maquinação teórica quiseram fazer a jovem cantante
dominar a língua do cotidiano da classe média.
A
mudança se dá em 1775, ano em que Goethe passa a trabalhar para o duque Karl
August, em Weimar. De modo geral, com isso termina o sturm-und-drang e vem a conversão do revolucionário burguês em cortesão
aristocrata e ministro. Para a compreensão oficial de Goethe, a evolução é
extremamente orgânica e natural. De difusa e efervescente inquietação, os anos
de juventude chegam ao fim, e o escritor entra purificado na idade adulta
criando grandes e imortais obras, desenvolvendo até inatingíveis alturas lados
humanos de sua personalidade, que o mundo admirou por mais de um século.
Infelizmente,
quase não há como caracterizar essa descrição histórica como não estonteante.
Seria errado mostrar, como tem ocorrido, o emprego de Goethe pelo duque de
Weimar como traição consciente aos interesses burgueses que combatera. Ao
contrário, pode-se crer que de início moveu-o a ambição política. No jovem
duque Karl August pensou haver encontrado o instrumento que o auxiliaria a
concretizar a mudança que sonhara para a sociedade alemã. Os primeiros tempos
de Goethe como ministro experimentaram agitadas reformas em todos os setores,
mas a oposição de velhas forças foi intensa demais. Lendo suas cartas e seu
diário íntimo do período de Weimar, percebe-se como otimismo e prazer de
trabalhar são substituídos por amargas decepção e resignação, inclusive com o
próprio duque. Viu-se rapidamente entre romper com suas mais íntimas intenções
ou com os valores dominantes. Contorna o problema usando sua característica
indecisão. Após repentina viagem secreta, vista como fuga, vai à Itália e
inicia relações diplomáticas com o duque. Concorda em voltar, desde que a
liberdade de movimento lhe seja assegurada.
A
conciliação custou caro ao Goethe pessoa e ao Goethe escritor. Despreocupada
existência de intelectual assalariado só
para pensar não garante boa produção. E a relação oficial com o duque lhe
impunha milhares de obrigações e considerações que com o tem-po minariam sua
personalidade. Desligado do meio inte-lectual de origem e inimigo do contexto
aristocrata em que estava condenado a viver, sentiu-se mais isolado e estranho
às tendências de seu tempo, A insegurança quanto às novas gerações o tornam
indiferente e irritado. O Livro do
Desânimo é o significativo título de um capítulo de Divan Leste-Oeste e poderia ser de todo o trabalho, com a
provocativa atitude de defesa para com entorno: Enviam-me saudações e odeiam-me até a morte.
À
crescente solidão segue-se a crescente passividade espiritual. A força criativa
de Goethe atenua. Os primeiros anos de Weimar têm vital produtividade, surgem
os esboços de Ifigênia em Táuride, Torquato Tasso e Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister. Praticamente terminam as
grandes propostas, vindo a longa e trabalhosa elaboração dessas concepções e as
propostas do sturm-und-drang (Fausto e Egmont).
A
inspiração lírica de Goethe permanece forte para ser reprimida. Perdura em seu
pensamento poético o colorido do sentimento spinozista pró-natura (Proõmion) e em poemas esparsos como A Elegia de Marienbad e O Cântico do Vigia da Torre (Fausto - 2.a parte) pode aflorar ainda na
sua mais avançada idade. Muitas de suas últimas máximas evidenciam aguda
capacidade de observação e clara visão de vida, mas são exceções. Em geral,
após a volta da Itália, versos e prosa caracterizam-se por crescente
enrijecimento e perda de vitalidade, até na expressão linguística. O
maravilhoso frescor e o imediatismo das obras juvenis desaparecem e são
substituídos por estilo rebuscado de chancelaria, que só em tempo de
mecanização e complicação como o nosso pode ser aceito como clássico. O desenvolvimento disto nada
tem a ver com a idade, posto que escritores como Dante, Milton, Hugo e Yeats
escolheram com audácia e agudeza as palavras até avançada idade. O declínio de
Goethe aos 40 anos não foi por fatores fisiológicos.
Com a
exaustão poética deu-se outra muito mais trágica, no Goethe ser humano.
Abandonar seus sonhos juvenis de liberdade política não constituiu destemida e
historicamente necessária submissão, mas acanhado processo de repressão do
inconsciente que lhe gerou neurose e má consciência. Nas imagens de seus
últimos anos se verifica que o Goethe por muitos homenageado é um misantropo
infeliz e insatisfeito que abomina a si e à humanidade. Como poderia ser doutra
forma? O homem que aos 25 anos criou A
tragédia de Gretchen, no fim da vida, ministro, declinou da proposta do
duque agraciar uma assassina de criança condenada à morte. Goethe rompeu as
raizes de sua mais profunda emoção e praticamente lhe restou a hipocondria.
Há a
história sobre o encontro de Goethe com Beethoven, elogiada por Romain Roland,
que melhor esclarece o que se menciona. Goethe estava com 63 anos. Com 43,
Beethoven era ardoroso revolucionário, disposto, porém a humildemente curvar-se
ao escritor a quem admirava, independentemente de aversão a arrogância e
status. Encontraram-se ao ar livre, num parque com muita gente. Falou-se, o
duque e a duquesa estavam por chegar. Formaram-se alas dos lados do caminho.
Também Goethe se postou de lado, chapéu na mão e cabeça curvada. Iradamente,
Beethoven pôs seu chapéu e se foi dali.
Goethe
nunca esqueceu isto. Testemunha Mendelssohn, sistematicamente negou-se a ouvir
músicas de Beethoven, que para Goethe lhe irritavam o gosto estético. Pelo
visto mais do que os seus admiradores ressentia-se, ante um indomável desejo de liberdade que se apossava dele ao ouvir as composições de Beethoven face o preço pago pela obtenção de sua própria "harmonia"
Nenhum comentário:
Postar um comentário