Frank Svensson
A arquitetura e o interesse pelo Antigo
Desde o século XVIII que a Antiguidade ocupou o pensamento dos aficionados da arquitetura. A obra de Marcus Vitruvius Pollio, arquiteto
e engenheiro romano do século I a. C., mereceu 26 edições durante o século XVI,
e durante o século XVII foram feitas 10
outras, para no seguinte aumentar a quantidade novamente.1 Foram esses
livros que inicialmente serviram de base para todos os levantamentos, para a
documentação, e para a reconstrução dos monumentos arquitetônicos da Antiguidade.
Intelectuais,
artistas plásticos e escritores das mais variadas nacionalidades afluíram a
Roma para aprender, in-loco. Já em 1666, por iniciativa de Jean-Baptiste
Colbert (1619-1683), no reinado de Louis XIV, a França instituiu naquela cidade
uma academia própria, para a qual eram enviados os artistas e arquitetos mais
promissores daquele país. Desenvolviam
ali uma espécie de pós-graduação da época, após terem sido selecionados e julgados
aptos a merecer o Prix-de-Rome.2
Colbert, além
de ministro das Finanças, e também ministro da Marinha, dos Portos e das
Colônias, dirigia o destino das artes na França. Antes de instituir a Academia Francesa em
Roma havia fundado a Academia de Arquitetura em Paris, dando a direção da mesma
a François Blondel (1617-1686). À
Academia de Arquitetura incumbia a elaboração de uma doutrina, cujas princípios
fossem ensinados a seus alunos, e aplicados nos Edifícios do Rei, bem como
àqueles, em geral, que viessem a solicitar à mesma, opiniões sobre edifícios e
projetos. A doutrina emergente foi fortemente marcada por um enfoque
racionalista, enfrentando como problema maior a questão do belo.
Como determinar
a beleza arquitetônica? Para resolvê-lo
os arquitetos deveriam inspirar-se na Antigüidade. Para voltar aos bons princípios, seria
preciso dirigir-se aos antigos e Colbert passou a enviar arquitetos à Itália
para conhecer os edifícios romanos. Das
determinações estabelecidas por ele, para os bolsistas, constava expressamente
a obrigação de fazerem levantamentos das obras da Antigüidade, e no século
seguinte passou-se a exigir que esses levantamentos fossem rigorosos, para permitir o restauro preciso e a conservação
das mêsmas.3
Vários livros, além dos de Vitrúvio,
passaram a ser publicados, visando ensinar como era a arquitetura e os
monumentos da Antigüidade. Em 1682
Antoine Desgodetz publicou: Les édifices antiques de Rome. Entre muitos outros livros que vieram depois
encontramos também os de Grand’Jean de Montigny que, após um período como
arquiteto emissário de Napoleão na Westfália do Norte, viria ao Brasil como
integrante da chamada Missão Francêsa: Architecture
Toscane (1815), e le Recueil des plus beaux tombeaux exécutés
en Italie dans les XV et XVI siècles
.
Roma passou a
ser o ponto prioritário de visita das pessoas que se queriam cultas na
época. De diferentes países se
estabeleceram aí cidadãos para servirem de guias dos seus com-patriotas
visitantes. Pontos de atração
obrigatória eram os museus pontifícios,
os do Vaticano e do Capitólio, e as ruínas em Roma e cercanias. Em 1720 iniciaram-se as escavações dos
antigos palácios imperiais do Palatino, e alguns anos após foram iniciadas as
da mansão de Hadriano em Tivoli. Em
1738 foi reencontrada a antiga Herculaneum sob a cidade de Portici, e uma
década após iniciaram-se também as escavações em Pompéia. Em todos esses lugares podiam-se encontrar
estrangeiros habilitados, principalmente ingleses, franceses e alemães.
No ano de 1732 foi
fundada, na Inglaterra, The Society of Dilettanti. De início tratava-se de um clube de viajados
turistas, mas com o tempo passou a congregar viajantes ricos que financiavam
escavações e publicações a respeito.4
Depois da queda
de Constantinopla e da conquista da Grécia pelos turcos, em meados do século
XV, era raro se visitar este país. O conhecimento sobre a antigüidade grega era
restrito. Em 1751, dois membros da Society of Dilettanti
visitaram no entanto Atenas, no intuito de produzirem um trabalho correspondente ao de Desgodetz quanto a Roma.
James Stuart, arquiteto, e Nicholas Revet, arqueólogo, fizeram, o levantamento
dos monumentos de Atenas. Quando o
primeiro volume de The antiquities of
Athens foi publicado, já dois outros sobre o assunto haviam sido feitos: Le
Roy, Ruines
des plus beaux monuments de la Gréce (1758) e Sayer, Ruins
of Athens (1759), mas estes baseados em material antigo e só em alguns
levantamentos sumários. Os três
livros contribuíram, no entanto, para que o interesse pela arquitetura grega
aumentasse às custas da romana. Roma
deixou de ser o ponto final dos interesses “turísticos”, tornando-se uma mera
passagem para o Oriente.
Um que, no
entanto nunca chegou mais longe do que a Roma, foi Johan Joachim Winckelman (1717-1768),
estudando a arte grega na Itália mesmo. Com sua monumental História da Arte da
Antigüidade conquistou a admiração da Europa para a Grécia. É bem verdade que uma Grécia idealizada,
descrita num estilo caracterizado pelo estilo que ele mesmo atribuiu à sua
arte. Em Vila Albani e nos pontifícios museus, a estudou, em parte
sob forma de cópias romanas, formulando à partir das mesmas as suas teorias
sobre a supremacia da arte grega.5
Um fato que não
pode passar desapercebido é especialmente ilustrado pelo caso de Grand’Jean de
Montigny. Tendo nascido no bairro em
Paris onde estavam sendo edificadas as mansões da burguesia parisiense e tendo
vivenciado intensamente a Revolução em
1789, perguntava-se quanto ao surgimento desse tipo de arquitetura ainda na Itália.
Independente de outras particularidades essa sua motivação explica sobre
modo o seu interesse pelas primeiras construções, em Florença, mandadas erigir
pelos primeiros burgueses mercantis da Itália: os Médici, os Pitti, os Sforzi e
outros. 6
Todas essas
escavações e levantamentos, bem como, os livros a partir dai divulgados,
excitaram as imaginações e na arquitetura juntaram-se às doutrinas acadêmicas
determinando, uma transformação das formas e das teorias arquitetônicas que se
ligariam à revolução democrática burguesa.
O conhecimento arquitetônico passava a exigir também o conhecimento
histórico.
A aproximação à
Antiguidade se dava de forma entusiástica mas desconexa. O reconhecimento da importância do
conhecimento histórico quanto à arquitetura implicava em saber escolher, entre
uma grande variedade de elementos arquitetônicos, aqueles que resul-tassem
apropriados e “corretos”. Implicava em
abandonar os cânones da composição da arquitetura clássica, e em discutir se as
proporções e as ordens enunciadas por um teórico eram preferíveis às enunciadas
por outro.
Contrariando os
hábitos dos “velhos” arquitetos, os
“jovens” passaram a aplicar, com “liberdade”, os valores e elementos observados
na arquitetura da Antigüidade, principalmente nas mansões de banqueiros e de
outros favorecidos pelo capitalismo em ascen-dência. Na medida em que aumentava a quantidade de
novos clientes dos arquitetos, foi sendo abandonada a estandardização desses
elementos, o que constituíra a característica essencial da arquitetura hoje
conhecida como clássica.
Voltaire, historiografo.
Em que pese as
implicações dos câmbios econômicos, as mudanças de expressão arquitetônica
ligaram-se a questionamentos de ordem conceptual e a uma nova forma de conhecer:
a do conhecimento histórico.
Necessitava-se esclarecer como ordenar
e tornar práticas as informações advindas da observação das obras da
Antigüidade. François Marie de Arouet,
cognominado Voltaire, é aceito como o
pai da historiografia, como o primeiro historiador moderno. Seu livro: Luís XIV e sua época foi publicado
em 1751 e em 1754 apareceu o Ensaio de História Geral e dos Costumes. Esses trabalhos indicam um novo enfoque da
História, permitindo novos caminhos para o pensamento arquitetônico.7 Voltaire, neste último livro, apresenta o
câmbio como elemento fundamental a ser considerado pelo conhecimento
histórico. Observa, ainda, que o câmbio,
como expressão de mudança da realidade, lhe é mais característico do que a condição permanente. A história da arquitetura passou a se
preocupar com a evolução da mesma.
Foi nos meados do século XVIII que os arquitetos passaram a ver a
arquitetura como uma seqüência de formas cambiantes. A partir disso passaram, ainda, a querer
“ajudar” a história propondo formas novas revolucionárias, como, por exemplo,
as de Ledoux, Boulée e Lequeu.
Voltaire é
visto, também, como o primeiro historiador social, preocupando-se mais com o
progresso cultural do que com sucessos políticos e militares. Nos três capítulos sobre Belas Artes, em
Louis XIV e sua Época, quase não menciona a arquitetura. Mas, em seu artigo: “História”, da
Enciclopédia, afirma que a história da arte é a mais útil delas, sendo assim a
primeira pessoa a incorporar a história da arte à da civilização.8
O enfoque de
Voltaire não favorece meramente a descrição do havido. Inclui também a crítica do havido, ousando
excluir de seu interesse, por exemplo, as fábulas, as quais julgou ser a base
do fanatismo, e da credulidade. No
havido haveria, portanto, aquilo que deveria ser valorizado e aquilo que podia
ser desprezado. O conhecimento histórico exigia, em outras palavras,
formulações teóricas que definissem o que considerar com prioridade. Até então não se havia posto em dúvida a
explicação mítica de Vitrúvio, nem a explicação de Tito Lívio sobre as origens
da arquitetura de Roma.
Como comprovar
a autenticidade das origens e dos fatos históricos passou a substituir por argumentos racionais as velhas
mitologias. As formas consideradas autênticas,
da Antigüidade, foram tomadas como
protótipos históricos reais. A pesquisa
das origens históricas da arquitetura passou a ter tanto ou mais importância
que a leitura dos 10 livros de Vitrúvio.9
Os textos de
Voltaire referem-se, ainda, à idéia de progresso como uma tendência no sentido do aperfeiçoamento. O avanço no campo da ciência e da indústria
estimulou os pensadores a sustentarem o
mesmo para o campo das artes.
Voltaire
concebeu, ainda, a história como universal.
Antes dele, aquilo que se chamava: História Universal era relacionado
essencialmente com a história do cristianismo.
Do mêsmo modo, o que se escreveu sobre arquitetura o foi limitado às
formas dos elementos de uso comum.
Criticando a Bossuet por não haver mencionado a muçulmanos e hindus,
Voltaire abriu caminho a um estudo de todas as civilizações, independente de
sua relação com a cultura greco-romana.
A arquitetura de toda e qualquer cultura passou a ser de interesse para
o conhecimento arquitetônico.
Voltaire voltou
o seu interesse também para a Idade Média.
As teorias arquitetô-nicas da Renascença haviam consideravelmente
desprezado a arquitetura medieval.
Voltaire não só englobava como de interesse a cultura de todos os povos
como a de todos os tempos. É verdade que foi mais tarde, na Inglaterra e não na
França onde mais rapidamente se desenvolveu
o interesse pela arquitetura da Idade Média, levando os novos
industriais a quererem as suas mansões em estilo néo-gótico. Mas foi Voltaire o primeiro a dedicar-se a um
melhor conhecimento daquela época.
Deve-se, ainda,
a Voltaire a nova atitude com respeito ao oriental e aquilo que para nós
ocidentais foi visto como exótico. O
interesse e a idealização daquilo que nos está distante no espaço e no tempo
veio a ser um dos principais traços do romantismo arquitetônico. A busca racionalista de “instrumentos”
teóricos para a formulação do conhecimento histórico surgia mesclada com
considerações sensoriais.
O pensamento de
Voltaire faz parte dos câmbios ligados à ascensão da burguesia inicialmente
progressista. O novo conhecimento
histórico, desencadeado pelas teorias de Voltaire é de vital importância para o
entendimento da arquitetura ligada às grandes revo-luções democráticas burguesas,
e encontra-se na base, também, de toda a teorização do romantismo que tão
fortemente a caracterizou.
O conhecimento histórico da arquitetura está
fundamentalmente ligado ao conhecimento social
O esforço
iniciado por Voltaire, de
caracterizar elementos teóricos -- feitos, épocas, câmbios, evolução, tendências, e progresso, -- que permitissem
a produção de conhecimento histórico está, inicialmente, muito limitado à
observação do imediatamente manifesto.
Não é por acaso que a arquitetura vista como a configuração de prédios,
comparece marcadamente nesse processo.
O Iluminismo é
também o início de busca de clareza quanto ao conhecimento social. A constituição da materialidade social
estava mudando e despertava indagações quanto às formas que viria a ter. Na França a burguesia iria em breve assumir o
poder, constituindo-se na classe social dominante e abandonando o seu caráter
progressista inicial.
Charles L.
Montesquieu (1689-1755) é um dos exemplos representativos do pensamento burguês
durante o Iluminismo. Para ele, por traz
da diversidade de feitos históricos, esconde-se uma ordem evidenciada por leis históricas, que exercem
a sua ação de forma constante. Montesquieu salientou, ainda, a importância do
meio natural e sua influência sobre os costu-mes dos povos, suas leis e em geral
sobre a vida política dos mesmos.10
Paralelamente,
na Inglaterra, David Hume (1771-1776) afirmava que o comportamento histórico
dos homens era condicionado por um conjunto de princípios que se desdobram numa
ordem material e social. Outras contribuições à formulação do
conhecimento histórico do período iluminista encontramos em Jean Jacques
Rousseau e E. Lessing.11
Com Kant
(1724-1808) inaugura-se um novo ciclo fundamental na história da humanidade, o
da chamada “filosofia clássica alemã”.
Kant mesmo, significa mais uma regressão do desenvolvimento do
conhecimento histórico, desde que nega a possibilidade de se descobrir uma
ordem lógica e progressista na história da humanidade. É à personalidade maior da escola filosófica
alemã, Georg L. Friedrich Hegel (1770-1831) que devemos, segundo Engels, o fato
de ter sido capaz de compreender:
. . . um campo incomparavelmente maior que qualquer dos que o haviam precedido e evidenciar
dentro desse campo uma riqueza de pensamento que ainda causa assombro . . . 12
N o t a s :
1 Ver de C. Ceschi: Teoria e storia del
restauro, Roma, 1970, p. 29.
2 Ver Henry
Lapauze: Histoire de l’Académie de
France a Rome. Librairie Plon, Paris,
1924, vol. I, pp. 1-11.
3 Segundo o Regulamento da Academia Francesa em Roma, datado de 1788.
4 Os irmãos
James e George Gray participaram das escavações em Herculaneum e divulgaram o
trabalho na Inglaterra. Sir William Hamilton divulgou informações sobre as
escavações em Pompéia (Account of the discoveries at Pompeii cammunicated to
the Society of Antiquaries of London, 1777).
Lord Charlemont foi um dos primeiros membros a
visitar as ilhas gregas (1749). James
Dawkins foi um outro precoce visitante da Grécia. Robert Wood visitou as ilhas gregas, o Egito,
a Síria e a Mesopotamia durante os anos 1742-43 e publicou entre outros: The
ruins of Palmyra (1753) e The ruins of Balbec (1757). Stuart e Revett publicaram, entre 1762 e
1816 The antiquities of Athens, em 4 volumes, e Richard Payne contribuiu para
que os templos dóricos na Sicília passassem a ser vistos com novos olhos.
5 Johan Joachim Winckelmann chegou a Roma em 1755,
onde permaneceu até 1768. Descreveu suas
observações em: Sendschreiben von den herculanischen
Entdeckungen (1762) e Neue Nachrichten von den neuesten herkulanischen
Entdeckungen (1764).
Ver,
também de Otto Maria Carpeaux: Classicismo e anti-clacissismo em Literatura
Alemã. Ed. Nova Alexandria, São Paulo, 1994.
6 Ver de
Svensson, Frank: "O período europeu de Grand’Jean de Montigny", em
Boletim do Instituto de Arquitetura e Urbanismo - Universidade de Brasília. N.
48. Brasília, 1989.
7 Ver de
Louis Hautecoeur: "A volta à
Antigüidade" em História geral da arte.
vol V, pp. 33-53. Difusão Européia do Livro. São Paulo, 1964.
8 Ver
Peter Collins: Los ideales de la arquitectura moderna; su evolución
(1750-1950), G. Gigli, Barcelona, 1965, p. 25.
9 Ibidem, p. 26.
10.
Ibidem, p. 27.
11. Ver de Aleida Plasencia Moro, Oscar Zanetti
Lecuona e Alejandro García Ál-varez:
Metodología de la Investigación
Histórica. Ed. Pueblo y Educación, Havana, 1985, o capítulo Concepto de
Historia.
12. Ibidem p.27.
12. Ibidem p.27.
Para ampliar a informação sobre estes e outros
pensadores, consultar um bom compêndio de História da Filosofia.
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