Tradução:
Frank Svensson
XVII -- Nos marcos da sociedade sem ciasses
Se pode
haver semelhança, e mesmo identidade, entre as técnicas e as formas das
arquiteturas do mundo capitalista e do mundo socialista, os objetivos de uma e
de outra são diametralmente opostos. Esse antagonismo aparece sobretudo nas
definições. Os autores dos países socialistas que procuram explicar a
arquitetura através de suas relações mútuas com a sociedade consideram essas
relações como não-reversíveis. Realmente, o efeito da sociedade sobre a
arquitetura não é do mesmo sinal do efeito da arquitetura sobre a sociedade. À
maneira de todos os produtos humanos, a arquitetura é meio para um fim social.
Está a serviço da sociedade. Destarte, a pergunta o que é a arquitetura ? decompõe-se em duas indagações : em que a
arquitetura é determinada socialmente? e que efeito ela exerce e pode exercer
nos homens e na sociedade? Colocadas numa situação concreta estas duas
interrogações conduzem a uma terceira: que
funções e que características tem e deve ter a arquitetura no socialismo ?
Construir
o âmbito da sociedade sem classes, agir de modo que esse âmbito seja propício á
transformação socialista da vida em sua integralidade -- tal é uma das maiores
tarefas da URSS e das democracias populares. Para consegui-lo, esses países
contam com trunfos decisivos : a propriedade coletiva do solo e dos principais
meios de produção e monetários, o exercício do poder político pelos
trabalhadores e a planificação a longo prazo da economia em beneficio de todo o
povo. A infraestrutura do território, a proteção do meio ambiente, a exploração
das terras, a ampliação e a renovação das cidades, o desenvolvimento da
indústria da construção civil, a edificação das habitações e dos equipamentos
urbanos, as rendas e os subsídios são, em principio, objeto de uma única e
mesma política aplicada em vários níveis e que tem por meta elevar
continuamente o grau de satisfação das necessidades da população, eliminando os
desequilíbrios regionais, as desigualdades entre a cidade e o campo e a
segregação social das aglomerações. Quaisquer que sejam suas particularidades,
as sociedades socialistas subtraíram o solo, os imóveis e a cidade à lógica do
lucro. Elas resolveram a contradição entre a responsabilidade social da
arquitetura e sua dependência da iniciativa privada.
XVIII --
Serviço público. Criação coletiva.
Dentro
deste contexto, a arquitetura muda fundamentalmente de conteúdo. Torna-se
serviço público, criação coletiva. Quando a sociedade alcança a condição de
dono da obra, quando ela destina a si mesma seus próprios produtos, a criação
arquitetural já não pode ser uma série de obras esporádicas executadas por
profissionais independentes. A
socialização da arquitetura, a magnitude, a urgência, e a complexidade dos
problemas a resolver requerem a formação de equipes, de órgãos que congreguem
competências científicas e técnicas muito diferentes, trabalhando continuamente
em domínios especializados. O coletivo dos cérebros múltiplos tende a
substituir o arquiteto-homem de síntese. A criação, que designava a atuação do
arquiteto apenas, compreende o conjunto do processo.
Esta
evolução questiona mais uma vez a especificidade da função do arquiteto e o
compele a superar uma contradição nova e urna antiga. Realizada a revolução, o
arquiteto que exerceu seu mister no. regime capitalista demora algum tempo para
adaptar-se. Não é sem dificuldades que ele vivencia essa transição de urna
sociedade para a outra. Mais tensa e mais incômoda é a contradição entre a
tradição bem antiga de individualismo universalista, de espontaneidade
artística da profissão, e a necessidade objetiva de concentração, de
especialização e de racionalização do trabalho no seio de grandes
estabelecimentos onde predomina o anonimato. Essas contradições e a rápida
transformação das circunstâncias históricas nas quais elas se manifestam
explicam a diversidade e a instabilidade das definições de arquitetura oriundas
do mundo socialista.
XIX -- Ferramenta da revolução
Em
primeiro lugar, a arquitetura é uma arte, mas uma arte cuja natureza é asperamente
controversa. Para os arquitetos tradicionalistas soviéticos formados na Rússia
tzarista, a arquitetura é a arte eterna. Para os militantes da Frente
Esquerdista da Arte (LEF), para os arquitetos construtivistas, a arte é um bem
de que o proletariado está em vias de apropriar-se, de socializar da mesma
forma que os meios de produção, de tratar com nem mais nem menos consideração
que os outros ramos de atividade. Ela torna-se assim um instrumento da
revolução, da transformação da sociedade, dos homens e de suas relações, um
utensílio da "reconstrução do modo de vida". A arte já não organiza
apenas a consciência e o psiquismo, mas a própria vida, que ela libera e amplia
às dimensões do homem total. Vinculada à realidade revolucionária, enriquecendo-se
nas fontes da ciência, cuidando da adequação da forma à função, ela não obedece
a nenhum dogma. Reinserida no material, a arte contribui para devolver os
objetos àqueles que os produzem.
XX -- Herança cultural
No
decorrer dos anos 30, os "realistas" triunfam em todos os campos.
Politicamente, a mudança de vida, cujo nível a despeito de tudo se elevou, é
deixada para mais tarde. Ideologicamente, presume-se que os valores antigos
constituíram uma necessidade crescente das massas, que não compreenderiam nem acompanhariam
mais as vanguardas. A assimilação da herança cultural é transformada em
prioridade das prioridades. A arquitetura torna-se a arte dos mestres nesta
matéria. Permanece como a arte de construir e de adaptar "cada edificação
aos imperativos técnicos, culturais ou utilitários que lhe são próprios".
Mas o que importa é a união íntima da
expressão ideológica com a verdade da 'expressão artística. Esta proposição
não é tão vazia quanto parece. Significa que os arquitetos devem, nestas
condições, tornar expressivo um projeto social que foi decretado sem a sua
participação.
XXI -- Meio material
Nos anos
50, quando o socialismo não é mais construido em um país somente e a
industrialização da construção civil está deslanchando, a arquitetura continua sendo
a arte de edificar. Contudo, se bem que ela não se identifique com a
construção, não pode ser considerada exclusivamente como uma das disciplinas da
arte. Suas obras são ao mesmo tempo do domínio da arte e da cultura material.
Dez anos depois a arte de construir desaparece das definições: A arquitetura é o meio material criado pelo
trabalho humano no qual acontecem a vida e a atividade do homem . . . A
arquitetura é uma forma da cultura material e, destarte, está estreitamente
ligada à atividade produtiva da sociedade; ao mesmo tempo, é também uma
categoria da arte. (Elementos de
estética marxista-leninista, 1962, pp. 540-541). O aparecimento do conceito
de meio indica urna mudança de escala do objeto da arquitetura, a domesticação
de espaços interiores cada vez mais compactos.
A
reviravolta expressa por esta definição desemboca num debate que prossegue até
hoje. Alguns pensam que a arquitetura, como o desenho industrial, é urna arte
aplicada. Outros, contrários a esta tese, acrescentam inclusive que, se a
arquitetura é meio material, não pode ser também arte, o que não exclui a
influência da arte na arquitetura. Para Bruno Flierl, que está envolvido na
polêmica desde que nela se empenhou, a arquitetura é o meio ambiente do homem, seu espaço construído, determinado pela
história e a sociedade, modelado esteticamente e modelável pela arte, no qual o
homem realiza sua vida e suas atividades. Ela é executada tecnicamente na
qualidade de produto material, necessário e utilizado, do trabalho criativo.
Serve de meio sociocultural orientado para a comunicação social e manifesta-se
como objeto concretamente formado da percepção sensorial (Bruno Flierl,
1967, Academia Alemã de Arquitetura, 1967, pp. 44-45)
.
XXII -- Idioma vindo de alhures
O
empenho ds homens em fazer com que a arquitetura fale não nos ajuda a aclarar
seus discursos a este respeito. O que se passa na realidade? A arquitetura é um
dos constituintes do ferramental criado pelo homem para apropriar-se da
natureza. Esses utensílios que o cercam e o servem só existem por e para ele.
Produtos do pensamento e das mãos homem, continuam sendo, contudo, objetos da
natureza, fragmentos de matéria, cujas leis são inalteráveis. Uma vez criado, e
embora devendo sua existência e seu poder à atividade criadora, o utensílio
inicia urna vida autônoma, num sentido fictício e num sentido real.
A
atividade consistiu em separar o objeto utilizável da massa indefinida do
universo, em dar-lhe urna realidade prática distinta da dos outros objetos.
Tudo o que restabeleça as relações do objeto com seu contexto material o
reintegra na indiferenciação do todo, aniquila-o corno produto humano eficaz.
Por exemplo, a oxidação e a inadequação do dimensionamento da viga metálica
acarretarão sua ruína. Isolado da natureza, tendo recebido urna forma própria e
um nome, entrando em relação com seus congêneres, o objeto põe-se a falar ao
homem como professor num idioma que parece vindo de outro lugar
.
Assim, a
atividade humana produtora de objetos torna-se criadora de ilusões. Sua relação
com os objetos desenvolve-se contraditoriamente. A atividade concretiza-se em e
para os objetos e perde-se simultaneamente. Os objetos supõem-na, encarnam-na,
contêm-na, mas dissimulam-na. O que o homem faz :a arranca também de si mesmo.
Fetichismo e alienação acompanham a realização das coisas humanas. Não admitir
isso é como tomar gato por lebre e querer que os outros também o tomem.
XXIII --
Comédia dos senhores
Como os
foguetes, a alienação funciona pela queima de vários estágios propulsores. Com
a divisão do trabalho material e intelectual, o espírito pode libertar-se da
realidade e construir abstrações, desenvolver teorias. As representações
elaboradas substituem o conhecimento imediato, usado e abusado. Esse progresso
não impede a consciência de imaginar-se que é outra coisa distinta da
consciência da prática existente. Ao contrário, impele ao crime, possibilita as
grandes fantasias ideológicas que partem de uma realidade, refletida em seguida
por meio das representações existentes, selecionadas e admitidas pelos grupos
sociais dominantes, mas, que, apesar disso, se arvoram em totalidade.
Esses
produtos espirituais não têm em si mesmos nenhum poder. Eles vêm a ser
mutilantes na medida em que se introduzem na linguagem, produzem desvios de
pensamento e se traduzem em formas, principalmente arquitetônicas. Quando são
captados e intencionalmente utilizados pelo poder econômico e político,
tornam-se francamente opressivos. Os senhores são obrigados a manter os
subordinados em subordinação. Precisam vigiá-los, intimidá-los, incitá-los a
trabalhar, ao mesmo tempo em que reforçam o seu prestigio de senhores.
Violências e comedias são necessárias para a manutenção da ordem.
Daí a
profusão de imagens e palavras destinadas à auto-exaltação da classe dirigente,
à sua glorificação pelas classes dominadas, à desconsideração e à autodepreciarão
dos oprimidos. A arquitetura e suas teorias mostram gritantemente a que grau de
refinamento podem ser levadas as práticas mistificadoras. Agir como se elas não
existissem e perorar imperturbavelmente sobre a carga semântica e o código
simbólico dos monumentos, das casinholas dos subúrbios e dos traçados urbanos e
considerar as pessoas atrasadas e perpetuar seu costume ao fetichismo.
É
precisamente à relação do homem com os fetiches que os marxistas chamam de
alienação. Ela manifesta-se como arrancamento de si e perda de si mesmo; a
potência do homem e substituída por uma potência estranha que o subjuga e que
ele não pode dominar. Drama que só terá fim com a reconquista pelos homens da
sua própria potência, com a supressão dos superfetiches, sejam eles a
mercadoria, o dinheiro, o capital ou o Estado.
XXIV -- Materialização da potência criadora do
homem
A
emergência e a expressão do poder criador do homem muitas vezes são expostos
pelos marxistas como elementos de compreensão do fenômeno estético e da arte em
geral. Multiplicando os meios de satisfazer suas necessidades, o homem cria
necessidades novas. Por exemplo, a questão não é mais aquecer-se e cozer os
alimentos, mas não sofrer o inconveniente da fumaça que invade o ambiente. A
urgência imediata não sendo mais uma obsessão de todos os instantes,
estabelece-se um distanciamento em relação à necessidade. O homem pode então
elaborar projetos, contemplar a obra acabada, regozijar-se não apenas com a sua
utilidade, mas também com o testemunho que ela comunica do ato criador. Aqui
nasceria o sentimento estético e a possibilidade de obras cuja função
primordial seria refletir para o homem a imagem da sua potência criadora. Esta
hipótese suscita numerosas indagações muito embaraçosas que tendem a mostrar
que ela, sozinha, não é suficiente para urna abordagem da totalidade da
realidade. Em todo caso, a arquitetura, que nunca é objeto de puro consumo
cultural, escapa-lhe em boa medida.
O
pensamento de William Morris e dos construtivistas russos, sem dúvida porque
estava firmemente embasado na prática, não deparava com este limite. Dentro da
perspectiva aberta por esses criadores comprometidos com a luta revolucionária,
a arte e a arquitetura desfetichizam-se a tal ponto que o problema do seu
relacionamento não aparece mais. O prazer da potência humana efetiva-se no
trabalho e no uso concreto dos produtos do trabalho. Estende-se à totalidade da
produção com o desaparecimento da exploração do homem pelo homem, quer dizer,
da maldição que pesa sobre o trabalho, o intercâmbio comercial e o consumo.
Assim sendo, tudo aquilo que é fabricado pelo homem volta a ser obra de arte,
expressão do prazer fruído do trabalho livre, materialização da força criadora
humana apropriada. E a arte estando no todo, seu nome desaparece da linguagem.
XXV -- Arma dos sem-teto e dos mal-alojados
Raciocinar
sobre o conceito de arquitetura pode parecer despropositado quando, neste final
de século XX, existem na Terra cem milhões
de homens e mulheres totalmente sem abrigo e mais de um bilhão que dormem em
tugúrios feitos de papelão, de latas amassadas e de taipa, sem falar do número
incalculável de famílias que, a peso de ouro, ocupam casas superpovoadas, as
multidões que diariamente suportam cidades de pesadelo. Essas massas lutam de
várias maneiras para reapropriár-se do mundo que lhes foi confiscado pelos
abastados pugnam por obter os meios de satisfazer suas necessidades, entre elas
a sua necessidade de arquitetura. Entre esses meios, o conhecimento do que é a
arquitetura não é desprezível. Já é tempo de vulgarizar realmente esse
conhecimento. Porém isto não basta. É preciso expungir a arquitetura de todos
os seus falsos mistérios, desembaraçá-la de sua tendência para a mitomania. Tal
é a condição para que ela possa servir de instrumento aos que mais necessidade
têm dela
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