Demétrio
Ribeiro - arquiteto, ex-professor da FAU-UFRGS, pioneiro do
urbanismo no Rio Grande do Sul e ex-presidente do Instituto de Arquitetos do
Brasil (nacional) durante anos de chumbo.
A arquitetura pode ser
definida corno a organização dos espaços habitados. Além de atender
necessidades humanas básicas é uma arte, porque a percepção do espaço
organizado gera urna gratificação estética capaz de também comunicar valores
relacionados com ideologias sociais.
Antes de continuar, é
necessário afastar qualquer mal-entendido, dizendo claramente que a percepção
estética funciona como linguagem, mas a sua essência não reside nisso, reside
na gratificação primária inerente à plenitude da percepção da forma. A faculdade
de perceber formas está na base do desenvolvimento humano. O pleno exercício
dessa faculdade provoca uma satisfação especifica, irredutível a qualquer outra
cousa. Dessa fonte de prazer, sempre renovada através dos séculos, nasceram
todas as artes e ainda hão de nascer outras.
A experiência estética
e a produção artística são realidades especificas da cultura humana. Mas se é
falso pretender que se reduzam a expressões superestruturais do sistema de
produção vigente, é igualmente falso negar a influência da superestrutura
ideológica sobre o desenvolvimento da cultura estética c artística.
Arquitetura
e classes sociais
A arquitetura, segundo
Christopher Caudwell, passou a existir na fase da evolução histórica em que as
formas das construções utilitárias adquiriram também a função de comunicar
esteticamente valores sociais:
O
caçador primitivo expressa o valor de uso realisticamente. Sua habitação é uma caverna
seu recipiente é um porongo, sua arma é uma pedra lascada, a roupa é urna pele
de animal. Nesse sentido a sua arte aplicada é tão realista como os seus desenhos.
O nascimento da sociedade de classe vê o nascimento dos palácios e dos templos
onde a função "abrigar" é organizada afetivamente para expressar a
majestade e o caráter sagrado da classe dominante.
A estruturação dos
espaços da sociedade de classe obedece necessariamente aos paradigmas culturais
de organização formal próprios de cada cultura. São clássicas as comparações
feitas por Taine entre os jardins de Versalhes e os versos alexandrinos no
século de Luís XIV. Existem entre as diferentes expressões formais de uma
época. e entre elas e a cosmovisão dominante, afinidades de tal ordem que há
que reconhecer na organização formal artística urna representação descritiva -
muito mais que simbólica - da estrutura da sociedade e da concepção social do
mundo.
Um subproduto
inevitável da expressão ideológica na Arquitetura como em outras artes é a
sinalização da novidade. O conteúdo profundo dessa necessidade reside na noção
de moda.
Na obra de Bukharin,
destinada a colocar ao alcance do grande público a interpretação marxista dos
fenômenos sociais e culturais, o Manual Popular de Sociologia Marxista, a moda
é caracterizada como afirmação da possibilidade de manter-se entre os mais
ricos e mais informados. A moda é assim uma expressão cotidiana da diferença
dos níveis sociais. Não foi por acaso que a moda perdeu qualquer importância na
URSS, entre 1917 e Kruchev.
A moda na arquitetura
é, na sua essência, (nem sempre conscientemente assumida) uma expressão da
superioridade econômica de uns indivíduos sobre outros.
Um
ritmo que se acelera
Por motivos óbvios, o
ritmo dos ciclos da moda acelera-se na atualidade, até na arquitetura, apesar
da natureza relativamente durável dos produtos dessa arte. A busca febril da
expressão da moda constitui hoje um dos motores fundamentais da evolução da
arquitetura. Esse processo merece ser examinado e analisado detidamente. É um
processo dissimulado aos olhos de muitos profissionais e críticos por uma
proteção ideológica que tende a confundir a sua origem com motivos estéticos ou
culturais. Isso não significa que as teorias da arquitetura só tenham a função
de embelezar o papel da arquitetura como expressão da moda. Significa sim que
existe na realidade cultural da arquitetura uma contradição interna, que não
deve ser perdida de vista, entre os vínculos da arquitetura com as demais
expressões artísticas por um lado e a exigência quelhe é feita de expressar uma
participação na vanguarda cultural do momento.
A
dialética da inovação
O ''novo" para ser
reconhecido deve pertencer ao existente, não pode ser totalmente desconhecido,
nem totalmente conhecido. A percepção do "público" dirige em certo
modo o processo, e valores nascidos aleatoriamente e imprevisíveis,
subordinados até as manipulações mediáticas e comerciais, impõem-se como
elementos determinantes na evolução da arquitetura.
A
moda e o formalismo
Os elementos formais
destinados a sinalizar a novidade não têm necessariamente raízes utilitárias
nem estéticas. São meros símbolos do poder de inovação dos produtores da obra.
Provêm normalmente do vocabulário formal associado ao tipo de arquitetura em
voga, a partir duma visão desse vocabulário como estilo, no velho sentido do
termo. O uso repetido de detalhes formais desligados de sua origem tem como
resultado a propagação do formalismo na prática da arquitetura em detrimento da
verdadeira criatividade.
A maioria dos
arquitetos de boa formação teórica tem consciência da pressão que as
necessidades da moda podem exercer sobre a produção arquitetônica e distinguem
claramente essas pressões das possibilidades de inovações autênticas na
arquitetura. O risco de confusão existe ao nível da formação básica e ao nível
da produção cotidiana muitas vezes submetida a exigências publicitárias.
As
modas contra a renovação
A arquitetura, como
todas as artes, depende da renovação para viver. A renovação, quando acontece,
é a ruptura com o convencional. É uma ruptura necessária, por assim dizer
imposta pelo esgotamento do vocabulário convencional. Assim o esgotamento do
vocabulário eclético da arquitetura europeia do final do século XIX cedeu o
passo à redescoberta da beleza das formas geométricas simples, à descoberta da
beleza dos produtos da indústria (panos de vidro, perfis laminados, dos espaços
limpos e despojados, iluminados pelo sol. Descobriu-se então a beleza de formas
antes desconhecidas geradas pelas novas técnicas. Essa renovação profunda do
olhar humano foi a essência da arquitetura dita moderna, em suas múltiplas
manifestações.
Mas a ruptura com o
convencional transformou-se na convencionalização da ruptura. As formas novas
de objeto de contemplação renovada passaram à condição de símbolos
convencionais e mortos da novidade ostentada apenas como atributo social da
vanguarda cultural, e não mais como apreensão estética nova do mundo. A esse
novo convencional haveriam de suceder uma nova ruptura e a redescoberta de
imensos campos de expressão estética, das formas criadas pelas culturas do
passado, a beleza da ornamentação, do que só visa ao prazer da percepção sem a
chancela do verídico ou do econômico. Mas também a euforia do pós-moderno
haveria de ver surgir em seu seio uma convencionalização do anti-convencional,
utilizando um vocabulário das formas estereotipadas reabilitadas como simples
símbolo de estar na moda.
Exemplos
nossos
A arquitetura dos
últimos 50 anos no Brasil oferece exemplos de esvaziamentos do novo pela moda.
No período da oficialização da arquitetura moderna, ao lado de criações
verdadeiramente novas (Niemeyer, por exemplo), inúmeras obras não passaram de
agregados de elementos formais convencionais sinalizando apenas o caráter
"atualizado" da edificação. Rampas em vez de escadarias, estruturas
parabólicas para sustentar coberturas, dispositivos destinados a controlar a
incidência de raios solares (os brise-soleils) desempenhavam o papel de
símbolos puramente convencionais destinados a dizer que o patrocinador da obra -
pessoa, empresa ou repartição pública - tinha a capacidade de estar em dia com
a moda.
No período posterior,
que se veio a chamar pós-moderno, também se pôde observar o contraste entre as
amplas possibilidades de inovar resultante da superação de tabus das teorias da
arquitetura e a mesquinhez da visão superficial e estreita de quem só viu nisso
uma moda nova. Formas inventadas ou redescobertas pelos arquitetos libertos dos
tabus supostamente éticos da primazia da utilidade, da veracidade construtiva,
passaram a ser banalizadas, isoladas de seu contexto e transformadas em
símbolos convencionais do "estilo" pós-moderno, o "último grito
da moda".
Houve exemplos
caricaturais como o do professor pós-moder-nista dos anos oitenta, ordenando ao
aluno que desenhava a fachada dum prédio urbano: "Coloca um capitel
clássico nesta fachada! É o que se faz hoje em dia!"
Competição
e publicidade
A majestade e o caráter
sagrado das classes dominantes de que falava Caudwell são hoje a glória e a
onipotência dos grandes empreendimentos capitalistas e dos Estados a seu
serviço. A mistura da expressão estética propriamente dita com a expressão
simbólica convencional destinada a provar que a obra é in permeia hoje todas as
produções da arquitetura, até as praças públicas e os conjuntos habitacionais
populares.
A ética capitalista
subordina tudo ao lucro. Na arquitetura os valores estéticos tendem a ficar
subordinados ao êxito publicitário.
Como já foi ressaltado,
a fruição da beleza em si mesma não depende de valores éticos ou políticos, mas
os percursos culturais que conduzem a novas descobertas estéticas ou artísticas
não são independentes do contexto histórico em seu conjunto. Desconhecer o
contexto social e econômico da arquitetura é subordiná-la cegamente a esse
contexto.
Na vigência do atual
sistema e da ideologia que orienta a comunicação social e a formação da
juventude não há defesa possível da liberdade de criação na Arquitetura sem
consciência do peso ameaçador das exigências da publicidade e da moda, presente
desde a escola.
Daí a oportunidade que
podem ter agora reflexões e indagações sobre esse tema.
N
o t a s :
1. Illusion & Reality [International Publishers.
New York 1942-p. 259]. A curta e bela vida de Christopher
Caudwell merece ser lembrada aqui. -Nascido na Inglaterra em 1907, escreveu
para ganhar a vida desde os dezesseis anos de idade, como repórter, romancista
poeta e ensaísta. Um ensaio seu sobre a Física mereceu o seguinte comentário do
cientista britânico J. B. S. Haldane: "Acredito que esse livro será um
repositório de idéias para filósofos das futuras gerações."
Aderindo ao marxismo,
escreveu o ensaio aqui citado, reconhecida contribuição à crítica marxista da
arte e da literatura. Filiou-se ao Partido Comunista e ingressou na Brigada Internacional do Exercito
Republicano Espanhol, então em luta contra o franquismo. Morreu em combate em
1937, antes de completar 30 anos.
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