Escrito por Frank
Svensson*-16 Janeiro 2010
Hoje dorme nos arquivos
do IBGE um projeto do governo Vargas prevendo a construção de 150 novas cidades
em favor da interiorização do desenvolvimento nacional. Encarregada da
elaboração de tais planos foi uma instituição por nome URBS dirigida pelo sanitarista
Saturnino Brito. Os respectivos projetos existem reunidos sob forma de suas
obras completas na biblioteca do Congresso Nacional.
Várias das cidades
concretizadas encontram-se ao longo do que então era a Rodovia Trans-brasiliana,
hoje incorporada à denominada Belém-Brasília. Seriam cidades do trabalho, da
produção agropecuária. Goiânia e Anápolis por sua vez deveriam constituir um
eixo de industrialização do ferramental necessário a tais atividades e de
beneficiamento da produção dessas novas cidades. Encarregado da elaboração do
plano diretor de tal eixo pelo governo Mauro Borges foi o eminente professor
Luis Saia, de São Paulo.
Esses projetos, assim
como o de Atílio Correia Lima para Goiânia, consideravam em muito as teorias
das cidades-jardins inglesas. Consideravam a contradição cidade/campo à luz da
contradição habitação/trabalho tendo como forma de viabilização o
cooperativismo.
Considerando fundamentalmente a centralidade
do fator trabalho quando do planejamento urbano e territorial e questionando a
propriedade do solo e dos imóveis, foram as garden-cities
inglesas as principais referências para as realizações dos regimes trabalhistas
no mundo. Primeiro para a antiga União Soviética, depois para países marcados
pela reconstrução após a Segunda grande Guerra e também para países do chamado
Terceiro Mundo. Floresceram nessas novas cidades as teorias da unidade de
vizinhança e da cidade para o trabalho.
Despontava assim um
novo enfoque da relação entre povoamento e territorialidade no Brasil. Enfoque
que iria se ampliar com a política de regionalização e de planejamento nacional
defendida por Celso Furtado. Dentro desse contexto maior, Brasília seria
simplesmente uma Washington brasileira, uma cidade administrativa, capital do
país e não uma urbs qualquer. Um
enfoque que preparava terreno para um real Pacto Federativo da República.
Ouvi certa feita de
Paul Baran que o planejamento é a tábua de salvação do reformismo. Referia-se à
positivista ordenação de situações, já em si positiva quanto à anarquia gerada
por casuísticos interesses das chamadas leis de mercado. Ao positivismo falta,
no entanto, o interesse pelo conhecimento da mudança, da transformação. Esse o
erro maior em relação à Brasília. Trucidaram no nascedouro os instrumentos de
ampla participação na aferição das implicações da aplicação de seu projeto.
Sindicatos e partidos políticos progressistas foram manietados pelo braço
armado das elites. Por imposição de interesses externos o Brasil viu-se forçado
a desmontar seu aparelho de planejamento e adotar o desenvolvimento do tipo
gota de óleo que vertido sobre São Paulo se acreditava espraiar suas benesses
sobre o resto do país. Órgãos de planejamento e coordenação regional, como a
SUDENE, foram vitimados por iniciativas casuísticas e privatizantes. Passou a
valer a ótica neoliberal. Por fim, face ao adiantado estado de infestação
desses organismos, no dizer de Tânia Bacelar, ao invés de se extirpar os bernes
preferiu-se matar a vaca.
Afastados das
atividades de planejamento a centralidade do fator trabalho e o questionamento
da propriedade privada do solo, dos imóveis e dos meios de transporte,
escancarou-se a porta para a especulação imobiliária. Corretores, empreiteiros
e transportadores ascenderam à condição de elite financeira e política.
Tornaram-se deputados, senadores e governadores. Apoderaram-se do Estado. Os
partidos e agremiações trabalhistas reduziram sua luta a questões salariais
contentando-se em aceitar o planejamento filantrópico da chamada habitação
popular. O Ministério do Planejamento reduziu-se a um grande escritório de
contabilidade orçamentária.
Planejamento passou a
ser coisa de grandes escritórios privados, de consultorias vendendo papel
pintado para o governo. O conceito de meio-ambiente viu-se reduzido à
consideração de somente metade do ambiente. A universidade foi privada da sua
responsabilidade em produzir conhecimento para a solução dos problemas
candentes do país. Foi invadida por enfoques fundamentalistas e pela ideologia
da não-ideologia, como se essa não o fosse. Não há porque negar que estamos
vivenciando uma crise sistêmica.
Face tal quadro,
ressalta a questão de como influir na formação de uma consciência coletiva a
respeito. É incontestável sermos nós mesmos os instrumentos primeiros de
apreensão da realidade externa ao pensamento. Através de nossos sentidos,
ativados pela observação e contemplação, é que a realidade vem a nós. Acontece
que pensar observando e/ou observar pensando são formas de trabalho imbricadas
com outras formas de trabalho; de ação recíproca com o meio ambiente e com os
nossos semelhantes. Somos na essência ativos seres sociais. Contentar-se com os
enfoques vitalistas para agir, transformando-nos através da transformação do
real, é limitar-se a somente uma das categorias da consciência.
Limitar o chamado
planejamento físico a uma questão de ordenamento dos lugares da vida é
insuficiente para a melhor interação entre a mesma e seu cenário. Sem a
centralidade do fator trabalho e o questionamento da propriedade privada dos
lugares da vida, estaremos simplesmente favorecendo a mercantilização dos
mesmos em detrimento de seu valor de uso.
É brilhante o
esclarecimento de Marx caracterizando os lugares da vida como o lócus standi (o
lugar em que se atua); como meios indiretos de produção. Abre assim as portas
do conhecimento para a mais plena interação entre a vida e seu meio ambiente.
Torna assim toda a forma de planejamento de interesse das classes
trabalhadoras. E não é por acaso que as experiências de planejamento abençoadas
pela História são aquelas que se deram por força de reivindicações e
participação trabalhistas.
Abaixo a especulação
imobiliária! A cidade e o campo são os lugares da História, da luta de classes
também em termos de planejamento. Ele se torna diferente do planejamento
positivista na medida em que seu objeto social assume a condição de sujeito do
mesmo.
* Frank Svensson é
professor titular aposentado da FAU/UnB e membro do CC do PCB.
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