Marxismo
e planejamento urbano
Entre teóricos e
historiadores não marxistas é frequente encontrarmos a opinião de que o
marxismo seja omisso em relação à questão da configuração dos assentamentos
urbanos. Em seu livro A origem do
urbanismo moderno, Leonardo Benévolo faz uma afirmativa desse tipo.
Refere-se aos textos de Engels, nos quais este polemiza com Proudhon e Sax
sobre as teorias dos mesmos quanto às cités
ouvrières francesas e as building
societies inglesas. O engano de Engels consistiria, segundo Benévolo, em
não haver proposto programas alternativos para o planejamento urbano e, assim,
haver limitado a questão da cidade a uma questão da revolução econômica.
Engels preferiu ver a organização futura das cidades corno uma mera decorrência da revolução econômica que a classe trabalhadora persegue. Ele preferiu, portanto, incluir a questão da habitação na problemática social. Desse modo, é verdade que a critica marxista apresenta algumas teses fundamentais para o planejamento habitacional em andamento. Mas deixa a questão da aplicação dos princípios à área do planejamento em aberto e por muito tempo para frente se distancia do desenvolvimento no setor do planejamento urbano.1
Engels preferiu ver a organização futura das cidades corno uma mera decorrência da revolução econômica que a classe trabalhadora persegue. Ele preferiu, portanto, incluir a questão da habitação na problemática social. Desse modo, é verdade que a critica marxista apresenta algumas teses fundamentais para o planejamento habitacional em andamento. Mas deixa a questão da aplicação dos princípios à área do planejamento em aberto e por muito tempo para frente se distancia do desenvolvimento no setor do planejamento urbano.1
Benévolo é vitima do
enfoque idealista que afasta o planejamento urbano do movimento operário c da
participação popular. A revolução econômica e social é vista como uma solução
futura que não deve ser negada mas que não estaria ligada à atual ação
reciproca entre o objeto e o sujeito da configuração urbana. O
conteúdo social da cida-de é visto em seu estado de objeto da planificação urbana sem considerar a sua real
transformação para a condição também de sujeito
da planificação. Não reconhecendo essa tendência histórica da ação
reciproca entre o objeto e o sujeito da configuração urbana, é
natural que despreze, também, o conhecimento relativo aos instrumentos indispensáveis
ao desenvolvimento da totalidade urbana. Torna-se difícil ver as organizações e
os procedimentos das classes trabalhadoras como os novos meios do
desenvolvimento e da configuração dos assentamentos humanos. Uma análise mais
atenta de toda a obra teórica de Engels teria dado a Benévolo uma maior clareza
da questão.
O conceito de espaço,
implícito na observação de Benévolo, é o mesmo que Hegel defende quando analisa
a arquitetura como ramo artístico. A sociedade é entendida como algo na massa
construída da cidade e não como componente da mesma. A sociedade é vista em
suas propriedades econômicas como algo em si, enquanto a cidade é reduzida à
condição de continente material da mesma. As pessoas e as formas social-mente
organizadas das mesmas não são reconhecidas como portadoras de expressão espacial e temporal.
A
cidade é limitada ao conjunto de edificações e vazios, ao qual a população deve
adaptar-se. Daí a sensação de vazio na visão marxista da configuração e do
desenvolvimento urbano.
Espaço e tempo foram esclarecidos, por Marx e Engels, como expressão dos homens, das coisas c de todos os seres, incluindo as propriedades e as relações objetivas dos mesmos Não aceitando o conteúdo social da cidade como matéria com expressão espacial e temporal, não podemos ver o conhecimento a respeito como ciência e técnica da configuração urbana. Permanecemos na ilusão do humanismo idealista, tendo um objeto social abstrato e de realidade desconhecida como referencia para a configuração dos assentamentos humanos.
Espaço e tempo foram esclarecidos, por Marx e Engels, como expressão dos homens, das coisas c de todos os seres, incluindo as propriedades e as relações objetivas dos mesmos Não aceitando o conteúdo social da cidade como matéria com expressão espacial e temporal, não podemos ver o conhecimento a respeito como ciência e técnica da configuração urbana. Permanecemos na ilusão do humanismo idealista, tendo um objeto social abstrato e de realidade desconhecida como referencia para a configuração dos assentamentos humanos.
A
ação recíproca da produção material e da produção espiritual como essência da
conformação urbana
Para obter clareza
quanto às leis internas, que explicam a ação recíproca entre o conteúdo social,
o corpo construído da cidade, o caráter técnico e o artístico da sua
totalidade, e necessário considera-los como formas específicas de trabalho,
tanto de trabalho concreto como de trabalho abstrato, de produção material e de
produção espiritual. As características principais da anatomia da sociedade
foram esclarecidas por Marx em sua teoria sobre a infraestrutura e a superestrutura
da mesma. A partir do resumo dessa teoria, no prefácio da Contribuição à
critica da economia política, podemos formular algumas questões básicas sobre a
configuração urbana: Quais são os lugares onde a produção material se
desenvolve na cidade? Como é que esses lugares estruturam a espacialidade da
cidade? Quais e como são os lugares onde se processa a reprodução da produção
material? O que caracteriza os lugares pelos quais circulam os produtos e os
produtores? Como se expressam, espacial e temporalmente, os lugares dos
aparelhos jurídicos. políticos, religiosos e culturais da superestrutura da
Sociedade? Como se relacionam os lugares entre si, refletindo em seu uso
princípios de justiça e de desenvolvimento social? Em sua análise da anatomia
da sociedade.
Marx aborda, também, a
objetividade do tempo social. Menciona os momentos de câmbio, entre urna
formação socioeconômica e a seguinte, como indicadores qualitativos do
desenvolvimento da sociedade. Cada formação socioeconômica vem dotada de suas
leis históricas próprias, as quais orientam o surgimento e o desenvolvimento da
mesma. As formações específicas submetem-se a leis mundiais que se unem no
processo da História Geral. Manifestações espaciais e temporais das formações
socioeconômicas sobrevivem umas nas outras. Da mesma forma encontramos
expressões de distintas formações em cidades, regiões e países os mais
diferentes.
A relação entre a
configuração urbana c a generalização teórica das formações socioeconômicas não
é automática e imediata mas existe e é fundamental para o conhecimento da
temporalidade dos assentamentos humanos. Como é que poderíamos melhor entender a
temporalidade da configuração urbana no Brasil, por exemplo, sem considerar as
igrejas, os prédios de administração e os palácios senhoriais surgidos, com
urna nova linguagem arquitetônica, em Florença e Roma, durante o séculos XV, na
passagem da formação feudal para a capitalista? Como é que conseguiríamos
entender, de outra forma, a dissolução da homogênea
imagem da cidade feudal, justamente por esses novos tipos de prédios e seus
espaços externos?
Foram modelos trazidos
por arquitetos como Terzi e Nasoni, da Itália para Portugal, que depois se
espalharam por todo o mundo colonial português. Isso ligado ao fato de Portugal
ter surgido como uma nova formação socioeconômica de mercadores e nave-gadores,
em ruptura com a sociedade feudal e agrária da Espanha. É nisso que
encontramos, também, as raízes históricas da cidade colonial portuguesa com uma
configuração tão diferente da cidade colonial espanhola. Como poderíamos
entender melhor a configuração da cidade colonial holandesa, trazida para o
Recife, a não ser em relação ao período de florescimento do capitalismo
mercantil dos e nos Países Baixos? Corno poderíamos entender melhor os modelos
de edifícios desenvolvidos no ambiente romântico e otimista Revolução Francesa,
sob forma de parlamentos, academias de Be-las Artes, bibliotecas, bolsas de
valores, teatros, mercados, mansões burguesas e conjuntos de habitação
operária? Da Paris de Napoleão Bonaparte esses tipos de edifícios foram
espalhados por todo o mundo, inclusive para países tão diferentes como a Rússia
e o Brasil, por meio de arquitetos como Montferrand e Montigny.
Como poderíamos melhor
entender a configuração de edifícios portuários e de estradas de ferro,
gasômetros e armazéns, prédios de administração pré-fabricados em ferro,
hospitais, escolas e capelas, os quais, à partir das grandes exposições
internacionais em países de avançada industrialização, cobriram o mundo
colonial? Corno poderíamos entender de outra forma a presença de Barry Parker.
em São Paulo, tentando aí aplicar o modelo da cidade-jardim inglesa? Ou a
introdução dos princípios da arquitetura e do urbanismo do capitalismo
monopolista de Estado, por meio de Warchavchic e Le Corbusier? Ou, ainda, da
configuração inerente ao imperialismo transnacional, sob forma de bancos,
hotéis de alto luxo, casas-garage e supermercados?
Como poderíamos
entender melhor, ainda, o fato de os modelos da configuração urbana das
repúblicas populares do mundo pouco industrializado terem sido buscados nos
países em busca do socialismo e não nas intumescidas megalópoles do sistema
capita-lista em decadência socioeconômica?
Para melhor entendermos
as relações entre a configuração urbana e o desenvolvimento da produção
material que a solicita e a produz, é necessário, também, considerar a produção
espiritual da sociedade. A produção espiritual, dedicada à produção de ideias,
não constitui uma forma isolada e independente de produção, dentre as relações
com a produção material, como duas formas da mesma produção. Assim fica mais
fácil compreender a configuração dos assentamentos humanos, como produzida para
e por meio do processo de produção da sociedade e do modo de vida dos homens.
A produção espiritual
ocorre por meio de atividades tais como a religiosa, a moral, a política, a
filosófica, a científica e a artística. Diferentes das da produção material,
essas formas ganham a função específica de desenvolver a consciência, ou
melhor, uma determinada forma de consciência social. Por produção espiritual
não designamos tudo aquilo que é desenvolvido sob a forma de consciência, mas
somente aquilo que é criado por grupos específicos de pessoas, dentro de um
sistema social de instituições, com a finalidade de desenvolver o espiritual. A
consciência intencionalmente produzida se distingue daquela que surge em
ligação à produção material. Comum a ambas as formas de produção é a criação de
relações sociais. Na produção material as relações são, predominantemente,
ligadas a coisas, enquanto que na produção espiritual são mais ligadas a ideias.
As ideias se apresentam como a correspondência mental das relações reais entre
os homens e as coisas.
Por que é que se dá uma
divisão entre as formas específicas da produção material e da produção
espiritual. Numa determinada fase do desenvolvimento histórico, o homem começa
a produzir mais para os outros do que para si mesmo, o que dá origem à
mer-cadoria e ao valor de troca, bem como múltiplas relações sociais. O
trabalho, que se limitara à condição de produção para uso próprio, ganha
caráter social. Ao mesmo tempo em que se dá uru aumento das relações entre os
produtores, dá-se, também, um distanciamento dos indivíduos entre si. O indivíduo
é alienado do conjunto de relações e perde a possibilidade do domínio
consciente das mesmas. Em face de tal situação apresenta-se a necessidade da
reprodução mental dessas relações, de modo a poderem participar da consciência,
agora impedida de basear-se, simplesmente, nas informações da prática imediata
da vida.
A intelectualidade
surge como um segmento social específico, em função da distinção entre produção
material e produção espiritual. Aqueles produtos do pensamento — lendas, mitos,
crenças, etc. — fixados nos sistemas de símbolos e comportamentos que eram
comunicados pelas aptidões do indivíduo — lembrar, falar, ouvir e organizar
visualmente — passam a ser objeto de profissões específicas. Ao mesmo tempo, as
relações sociais tornam-se independentes, sob formas que influenciam e são
influencia-das pelo distanciamento dos indivíduos entre si.
A alienação dos
indivíduos, em relação às múltiplas relações do crescente processo de produção
pode dar a impressão de unia maior liberdade individual. É essa impressão que
está na base das diferentes conceituações do liberalismo. Uma análise mais
profunda mostra, no entanto, que a alienação do indivíduo para com o processo
de produção, na realidade, é expressão de crescente dependência das pessoas
entre si, exigindo novas formas de consciência quanto à totalidade. Essa
consciência, bem como as relações por ela refletida, tornam-se cada vez mais
estranhas às experiências vivas das pessoas. O pensamento abstrato liga-se à
passagem para relações abstratas, entre as quais as que se dão no comércio e
nas transações financeiras constituem um bom exemplo. As novas formas de
relações substituem os contatos pessoais c mesmo uma boa parte de nossas
relações com os objetos mais imediatos. Por intermédio das diferentes formas de
consciência social, a sociedade procura compensar a falta de convivência e
comunhão dos indivíduos. A consciência social torna-se, no capitalismo, um
privilégio e resulta numa atividade exercida por tipos específicos de
profissão.
Independente de pertencerem
à classe superior ou de trabalhar a serviço da mesma, tais pessoas pensam pelas
outras no que diz respeito a diferentes áreas do trabalho e do conhecimento. As
classes superiores controlam, por intermédio de seus representantes
ideológicos, a vida espiritual da sociedade no sentido de manter o sistema
reinante. O papel da atividade espiritual não se limita, entretanto, a servir a
uma determinada classe social. A consciência social, que resulta em trabalho
espiritual, constitui a correspon-dência mental das necessidades que todos os
indivíduos têm, uns para com os outros. Dessa forma, o trabalho espiritual
preenche uma função social fundamental quanto à alienação dos indivíduos.
Os urbanistas do
capitalismo agem como representantes dos demais indivíduos, em face das
relações de que se viram privados no campo da arquitetura. Eles procuram
satisfazer as necessidades espirituais e sociais dos indivíduos nesse setor
específico. Se o seu trabalho é dirigido por interesses de uma certa classe
social é, por outro lado, aplicado às necessidades de todas as classes. A
produção do urbanista ganha, assim, um significado universal, expresso, em
relação a interesses específicos, com traços universais no trabalho particular.
A
qualidade da configuração urbana não existe fora de sua determinação
quantitativa
Tudo aquilo que faz do
ser e do fenômeno aquilo que eles são, o que os distingue de todos os demais
seres e fenômenos, constitui a qualidade dos mesmos. A qualidade se expressa em
propriedades. Uma propriedade caracteriza o objeto ou o fenômeno somente sob um
aspecto, enquanto que a qualidade traduz a sua totalidade. Durante o modo de
produção capitalista, os produtos que foram imaginados em função de seu valor
de uso são transformados em mercadorias carregadas de valor de troca. A busca
da qualidade, ou seja, de satisfazer todas as propriedades da totalidade, entra
em contradição com a necessidade de repetição, de uniformidade, de rapidez de
produção.
Querer ver a produção
material em contradição com a espiritual explica a vontade de pôr a qualidade
da arquitetura em contradição com somente algumas de suas propriedades. Somente
alguns lugares são aprovados como arquitetura. Os demais são caracterizados
como sem interesse arquitetônico. Analisando melhor a produção dos lugares,
notamos, no entanto, que a relação existente entre as mudanças quantitativas e
as qualitativas tende a resultados diferentes, dependendo do direcionamento:
capitalista ou socialista.
O capitalismo estimula
uma crescente diferenciação entre trabalho corporal e trabalho mental, entre
produção material e produção espiritual, entre quantidade e qualidade. O
desenvolvimento dessa contradição está submetido à tendência do capitalismo de
também forçar a produção espiritual a, principalmente, produzir mercadorias com
predominante valor de troca. Aquela atividade que persiste em se dedicar a
produzir valor de uso fica cada vez menor numa produção espiritual em
contradição qualitativa com a produção material. O trabalho intelectual é posto
em contradição com o trabalho corporal. O trabalho espiritual tem a sua
natureza adulterada e o seu caráter concreto é transformado em abstrato.
Quando um intelectual
quer produzir qualidade, encara com desinteresse as necessidades e as
exigências dos trabalhadores da produção material. Quando os trabalhadores da
produção material decidem-se por trabalhar sob suas próprias condições,
entendem o desejo de qualidade dos intelectuais como urna forma secundária de
trabalho. O projeto do urbanista torna-se estranho ao lugar e à espacialidade
que se destina. Desenhos, normas e especificações tornam-se algo em si mesmo,
passível de aplicação em regiões e países os mais variados.
Quando o capital
permite ao intelectual um trabalho com motivação social, dando sua contribuição
efetiva ao desenvolvimento histórico, isso se dá às custas da qualidade do seu
trabalho, ou seja, justamente daquilo que proporciona ao mesmo a sua condição
de trabalho intelectual. Dá-se às custas de propriedades tais como
individualidade, autonomia, realização pessoal e significação histórica.
Nos países
capitalistas, muitos intelectuais procuram resolver a contradição entre a
produção material e a produção espiritual por meio de um posicionamento de
vanguarda. Como planejadores progressistas, querem estimular o desenvolvimento
histórico limitados à própria área de atividade e de conhecimento profissional.
Enquanto a sociedade capitalista não passa à condição de sociedade socialista,
tal desenvol-vimento não pode, no entanto, ser outro que não o desenvolvimento
da sociedade capitalista. Engajar-se na transformação da Sociedade exige mais
do que um engajamento meramente profissional. A vanguarda dos intelectuais, dos
artistas e dos trabalhadores culturais é forçada a aproximar-se da vanguarda
revolucionária. A vontade, então, de fazer do trabalho intelectual uma parte da
revolução dos operários, como transformadores reais da produção material,
passa, facilmente, a ser o posicionamento dos intelectuais, tendo corno
resultado que a eliminação do capitalismo deixa de ser o objetivo principal.4
O autor tem-se
perguntado quais as razões porque tantos colegas de profissão, nos países
capitalistas em que viveu, limitam a sua ação progressista a uma dialética do projeto. Primeiro, o autor
pensou encontrar a resposta, ligada à chamada autonomia ar-tística e àquela
realização pessoal que a materialização de um projeto de arquitetura
proporciona. A experiência em países socialistas fez ver, no entanto, que os
motivos são bem mais profundos. Os intelectuais progressistas dos países
capitalistas caracterizam-se por não duvidarem da conveniência de se
organizarem profissionalmente, tendo como objetivo o desenvolvimento social.
Mas raramente reconhecem o contraditório, em atribuir ao trabalho intelectual
um papel precípuo, segundo regras e leis que os distanciam de urna práxis
social e concreta. Pretendem combater o capital — o que implica combater as
formas históricas do trabalho concreto através das quais se manifesta — e ao
mesmo tempo aprovar a divisão do trabalho material e espiritual, em sua forma
mais refinada: limitar-se ao agrupamento em escritórios, escolas superiores e
associações profissionais especificas.
Uma outra tendência dos
urbanistas progressistas dos países capitalistas é a de se contentarem em
configurar artisticamente soluções alternativas para a habitação e os
assentamentos humanos, com pretensão a transformações de caráter social. Lutar
por urna melhor arquitetura implica, no entanto, também lutar por um socialismo
com capacidade de passar de propostas artísticas individuais para uma
arquitetura de ampla praxis social. A experiência específica pessoal da arquitetura
é transformada, então, em critério social reinante que reconquista a unidade da
configuração dos assentamentos pré-capitalistas, mas num plano mais elevado c
desenvolvido: o do socialismo.
Para muitos dos
arquitetos progressistas da sociedade capitalista, a solução dos problemas da
humanidade apresenta-se como a mais sutil e desenvolvida expressão de seu
próprio problema: o mundo do porvir é imaginado permitir a liberdade espiritual
que constitui a riqueza mas também a miséria dos intelectuais da sociedade
capitalista. Creem ver, na revolução proletária, aquela força material capaz de
concretizar seus próprios sonhos e valores. A luta do intelectual progressista
contra o sistema capitalista transforma-se, facilmente, numa luta contra aquilo
que parece contrariar as suas moti-vações artísticas e intelectuais pessoais.
Enquanto não conscientizar-se de que essa sua oposição a tudo aquilo que pode
por em risco sua posição como trabalhador espiritual exclusivo, o seu
posicionamento progressista ganha assim uma dimensão conservadora.5
Após a substituição da
democracia burguesa pela democracia popular, na transição para o socialismo,
sobrevivem muitos velhos conceitos sob forma de idealismos, interpretações
religiosas e ideologias de classe média. Esses resquícios conceituais
misturam-se às espontâneas conclusões do dia a dia, antes que elas sejam melhor
relatadas. Para que o saber do intelectual e o conceito extraído do dia a dia
do operário ganhem validade cientifica a favor da classe operária, faz-se
necessário o esforço conjunto de ambos, no sentido de eliminar aquilo que
separa a produção espiritual da produção material. Um primeiro aspecto
essencial desse trabalho comum é reconhecer corno
direção ontológica preferencial aquela que vai da produção material para a
espiritual, em semelhança à que vai do objeto para o sujeito. Reconhecer
isso implica reconhecer, também, que a
mudança radical realizada pelo proletariado, das condições de propriedade do
processo de produção, constitui o aspecto central da transformação espacial e
temporal da cidade.
Tendo em vista
poluição, tráfego intenso c barulho, fábricas e oficinas são frequentemente
vistas corno uma presença incômoda nos assentamentos humanos. Mas todos nos
reconhecemos que a indústria pertence à cidade e constitui uni fator
indispensável para o seu desenvolvimento. Engels fez ver que em cada fábrica pode-se encontrar o gérmen
de uma cidade.6 É a forma privada de propriedade
capitalista que acentua
os aspectos negativos das fontes de produção. É a forma privada de propriedade
que explica por que as cidades são rodeadas de assentamentos marginais
qualitativa-mente inferiores aos assentamentos da população proprietária. A
propriedade social dos meios de produção e as formas de planejamento econômico
próprias às democracias populares fazem da configuração da cidade uma parte do
desenvolvimento nacional. Um fato que não elimina a necessidade de análises
profundas de outros condicio-namentos tais como: fontes de energia, rede
viária, disponibilidade de mão-de-obra e equilíbrio ecológico. A configuração
da cidade coincide com condicionamentos que resultam da eliminação da
propriedade privada dos meios de produção.
Nos países governados
por regimes trabalhistas tem-se considerado, por exemplo, que o prazo gasto no
percurso entre a moradia e o local de trabalho não deve exceder ao de uma hora
de relógio. Imaginem a consequência disso na configuração de uma cidade quanto
a vias e formas de transporte coletivo.
As ideias do
reformismo, quanto à configuração dos assentamentos humanos, afastam da
atualidade socioeconômica a verdade sobre a luta de classes. Contrapropõem a teoria da colaboração de classes, que
submete o proletariado à burguesia, aludindo a uma futura integração do
capitalismo ao socialismo. Aos instrumentos próprios das classes obreiras e
permitido o direito de existência, mas desestimulado, na prática, o de
participação nas decisões sobre a configuração urbana. A ação de tais
instrumentos — partidos e associações obreiras — é desviada para aspectos colaterais
da luta de classes, cujo objetivo principal é a substituição do capitalismo
pelo socialismo. A questão da propriedade, que é também uma questão relativa ao
poder na sociedade, não pode ser reduzida a um principio de justiça social para
uma revolução econômica futura e distante, que segundo Benévolo e os que pensam
como ele parece poder ocorrer sem a luta atual das classes obreiras pelo
direito de participação nas decisões sobre a configuração de seus locus standi.
A
cidade como o lugar da História
No livro O Manifesto do
Partido Comunista, Engels e Marx mostram ser o proletariado a única classe
revolucionária. O proletariado torna-se a força material social capaz de
transformar as condições de propriedade dos meios de produção como condição da
transformação e do desenvolvimento da sociedade como um todo. Outras classes
sociais também se opõem à burguesia. Os segmentos intermédios, o pequeno
fabricante, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês, também combatem a
burguesia, mas fazem-no somente para garantir sua existência como classe média,
pois são conservadores. No Manifesto do Partido Comunista são caracterizados,
até, como reacionários, em seu esforço por fazer a História girar ao contrário.
Tornam-se revolucionários quando reconhecem sua transição inevitável para a
ação proletária assumindo uma posição favorável à classe operária.7
Isolando o planejamento
da configuração urbana do conhecimento da transformação objetiva do mundo, e
limitando-o aos domínios da produção espiritual, aliena-se o mesmo do
desenvolvimento objetivo da História. A contribuição de Engels e Marx ao
planejamento urbano consiste em terem demonstrado o caráter objetivo da
espacialidade e a condição objetiva da temporalidade no período industrial: o
caráter revolucionário do proletariado. Se o planejamento urbano não considera
esse fator de transformação, não levará mais longe que a uma proposta idealizada de unia momentânea situação da cidade.
Limitado à conformação dos edifícios e seus interstícios, o planejamento urbano
transfere o conteúdo humano e social da cidade para um plano abstrato e mal
definido. Por mais criativos e organizativos que tais planos sejam não
con-seguirão evitar o conflito entre os lugares construídos e a dinâmica
inerente à materialidade social da cidade.
Além dos textos de
Engels sobre .4 questão da habitação
e O Manifesto do Partido Comunista, a
sua crítica às teorias de Feuerbach, na qual analisa, com Marx, A Ideologia Alemã, são de fundamental
importância para um melhor compreensão de como viu a problemática da cidade.8 Nesse texto, Engels e Marx
mostram que o interesse do indivíduo em relacionar o seu trabalho específico
com a produção maior da sociedade, não decorre da vontade pessoal do urbanista.
A transição para o trabalho socializado na cidade obedece a leis objetivas,
independentes da vontade individual de profissionais específicos do
planejamento urbano. Marx e Engels
constataram ser a cidade o lugar da História, sendo nela também que a
burguesia se desenvolve e, durante seu período como classe progressista,
desempenha um papel revolucionário. Viram, do mesmo modo, que é na cidade que
surge o proletariado e aí desempenha o seu papel histórico de criar as
condições para o surgimento e a consolidação do socialismo. Constataram ainda a
tendência histórica de serem eliminadas as contradições entre o trabalho
material e o espiritual, bem como entre a cidade e o campo.
Quando Marx e Engels
reconhecem o que é próprio à cidade, não a veem como vitima de uma inevitável
dissolução que só poderá ser compensada por uma revolução econômica futura. A
partir do enfoque materialista dialético e histórico, compreendem a cidade
corno expressão de urna ordem que foi criativa e organizadora, mas na qual
muito tem de ser destruído para ser superado, em direção a conflitos cada vez
menores entre o corpo construído da mesma e a materialidade da sociedade. Marx
e Engels não propõem urna nova ordem abstrata em substituição. A cidade é vista
em seu processo de desenvolvimento como parte de um problema maior: a passagem
da sociedade para a condição de sociedade sem classes antagônicas. Quanto maior
for a participação dos instrumentos próprios às classes obreiras no processo de
decisão da configuração urbana menores serão os conflitos entre o continente
construído e a materialidade social da cidade.
A
grande contribuição do marxismo ao conhecimento sobre os assentamentos humanos
é a constatação de que a configuração dos mesmos, à partir de modelos de
situações idealizadas, tem de evoluir para um configuração baseada no conhecimento
da trans-formação da cidade. O conhecimento da transformação
urbana implica evoluir da posição de relacionar a cidade a planos definitivos —
mas na realidade ocasionais quanto ao conteúdo social — para uma crescente ação
coletiva na qual o conteúdo social é considerado em sua mudança para a condição
de sujeito do planejamento urbano.
A
contradição entre o social-realismo e o vanguardismo idealista, quanto à
configuração urbana
Um terceiro aspecto
fundamental quanto à necessidade de trabalho conjunto de intelectuais e
operários é o fato de a divisão da
produção, em produção material e produção espiritual, também separar a
consciência e os processos de conscientização, dos atos externos ao pensamento
que constituem a sua base e motivo. Essa divisão entre produção material e
produção espiritual, entre a consciência e sua base material reflete-se na
configuração da cidade. Expressa a tensão entre aquela tendência que quer
limitar a cidade a certos aspectos julgados como de interesse e a tendência que
quer a cidade inteira corno obra de arte. Todas essas formas de dissociação
sofrem modificações dentro do mesmo processo que busca eliminar as formas
burguesas de propriedade e que faz com que a produção passe a pertencer a toda
a sociedade.
Na medida em que o
poder sobre a produção é transferido para os produtores, torna-se possível a
integração daquilo que antes se apresentava dissociado. As razões objetivas e
as intenções subjetivas tendem a unir-se, na medida em que o trabalho
desempenhado pelo indivíduo passa a ser para ele e reflete, em sua consciência,
a sua ancoragem social. Essa reconciliação entre trabalho concreto e trabalho
abstrato não é obtida se limitada ao trabalho individual. É necessário que o interesse do indivíduo por seu próprio traba-lho
seja parte de seu interesse pela produção global da sociedade. A
reconciliação entre a produção material e a produção espiritual implica
libertar-se da alienação e de dissociações, o que só é possível se toda a
sociedade evoluir da condição de objeto do planejamento para a condição,
também, de sujeito do mesmo.
Na luta pela
substituição da democracia burguesa pela democracia popular, o diálogo do
intelectual com o visionário tende a interromper-se. O diálogo passa, cada vez
mais, a tratar do existente e do atual, dentro de uma crescente participação
coletiva, entre proletários da produção espiritual e da produção material.
Juntos em formas socialmente organizadas, lutam pela eliminação daquilo que diferencia
a produção espiritual da material. O trabalho em comum nas organizações
próprias ao proletariado passa a consi-derar um desenvolvimento concreto real,
o qual constitui a verdadeira mudança daquilo que fora um mito e uma esperança.
O futuro vai sendo transformado objetivamente em transição para o socialismo real, em conquistas reais, sob
participação real e, com difi-culdades reais.
Durante um certo tempo
sobrevive a luta entre posicionamentos de vanguardismo e de realismo por parte
dos profissionais específicos da configuração urbana. A previsão de um futuro
idealizado continua a existir em muitos céticos à participação real num
desenvolvimento da sociedade como um todo. Persiste a oposição ao fato da
atividade dos profissionais da configuração dos assentamentos humanos
sistematizar-se socialmente, dentro de limites a que não estavam habituados.
Mas os meios dos quais a classe trabalhadora passa a dispor superam tal
oposição graças ao caráter autocorretivo da luta objetiva pelo socialismo.
Arquitetos e urbanistas tornam-se, também eles, trabalhadores que se
conscientizam da necessidade de meios cognitivos e abrangentes, tais como o
partido, os sindicatos, os planos nacionais de desenvolvimento, as diferentes
formas de planejamento e orçamento participativo, a análise sistemática dos
fenômenos em seus processos históricos, as experiências mais avançadas de
outros países que mais longe já chegaram no caminho da conquista e da
consolidação do socialismo, e o exercício da profissão sob formas de interesse
público.
As complexas tarefas da edificação social — principalmente as de caráter
econômico — tornam, segundo Engels, necessária a utilização do aparelho de
Estado. Os partidos e as associações especificas da classe operária necessitam
exercer o seu poder sobre o Estado burguês para quebrar a hegemonia das classes
dominantes e iniciar as mudanças econômicas capazes de assegurar a passagem
para uma democracia popular. Fortalecer o aparelho de Estado, também no campo
do planejamento urbano, segundo o interesse da classe obreira, constitui unia
medida indispensável de combate à burguesia transnacional.
Engels salientou,
também, a importância da produção sob formas cooperativas tendo como objetivo a
socialização total da produção. Fez ver a necessidade, no entanto, de que o
significado dos interesses de associação e de cooperativismo não fosse maior do
que o interesse pelos problemas da sociedade como um todo. A análise da
aplicação dessas diferentes modalidades de atuação, em favor dos interesses da
classe operária, no que diz respeito à configuração urbana, não encontra, no
entanto, maior interesse por parte dos teóricos e dos historiadores da
arquitetura e do urbanismo, no mundo capitalista. Como Benévolo, eles
transferem a mudança revolucionária proletária para um futuro indefinido e
ignoram o desenvolvimento processual que leva à mesma.
Substituindo o processo
de transformação da materialidade social por um planejamento limitado ao
conteúdo edificado da cidade, não é possível um conhecimento maior sobre a
razão fundamental tanto da mudança espacial como da mudança temporal da cidade.
Não é a crítica marxista, e sim o planejamento idealista, que, em seu enfoque
limitado do que seja espaço e do que seja tempo, e atendo-se ao trabalho da
produção espiritual, apresenta um vazio quanto à critica da constituição e da
configuração urbana.
Notas
bibliográficas:
1
- Ver de Friedrich Engels, Wohnungsfrage,
(A questão da habitação), 1872.
2
- Ver de Leonardo Benévolo, Le origini
dell 'urbanística moderna (A origem do urbanismo moderno), Editori Laterza,
Bati, 1976, pp. 142-192.
3
- Ver de S. T. Meliujin, Las leyes
dialéticas dei desarrollo de la materia, La matéria en su unidad, infinitud
y su desarrollo, pp. 275-304.
4
- Ver de Alberto Asor Rosa, Lavoro
intellettuale e utopia dell avanguardia nel paese dei socialismo realizzato,
Socialismo, cittá e arquitetura URSS 1917-1937. Officina Edizioni, Roma,
1971,pp. 215-250.
5
- Ibidern.
6
- Ver de Friedrich Engels A situação da
Classe Operária na Inglaterra, o capitulo: "As grandes cidades."
Edições Afrontamento, Porto, 1975.
7
- Ver de Friedrich Engels e Karl Marx, O
Manifesto do Partido Comunista.
8
- Ver de Friedrich Engels e Karl Marx, A
Ideologia Alemã, o trecho sobre Feuerbach.