Gunnar
Gunnarsson - (1889 – 1975). Pensador marxista sueco. Entre
suas principais obras encontram-se Os
grandes utopistas; A Comuna de Paris;
Gyõrgy Lukács; De Machiavelli a Mao; O
ideário da socialdemocracia; Estética
marxista. e História do fascismo.
Tradução: Frank
Svensson
A burguesia reconheceu que todas as
armas que havia forjado contra o feudalismo voltaram-se contra ela, que todos
os meios de formação que havia criado revoltaram-se contra a sua própria
civilização, que todos os deuses criados a abandonaram.
Karl Marx
Verum index sui et falsi (a verdade
é a pedra de tropeço sua e da mentira).
Baruch Spinoza
A
decadência do Ocidente?
Antes da Primeira
Guerra Mundial falou-se, principalmente em relação a Untergang des Abendlandes (O Declínio do Ocidente), de Oswald Spengler,
muito sobre a decadência da cultura ocidental.
As teorias de Spengler têm sido duramente criticadas. A própria divisão do
mundo em Ocidente e Oriente é dúbia e serve mais para
confundir a colocação dos verdadeiros problemas.1
Também em teorias dúbias
pode haver um quê de verdade. Sem dúvida podemos perceber, ao longo do
desenvolvimento da cultura humana, que as épocas progressistas obedecem a uma
sequência de surgimento, desenvolvimento, apogeu e decadência.
As tentativas de
explicar tal fenômeno -- em analogia aos da biologia -- expressam uma
consciência cultural que já ultrapassou as fases de nascimento, crescimento e
culminância, encontrando-se agora em declínio. O fenômeno considerado só pode
ser entendido através de uma análise histórico-social. A história das sociedades até hoje havidas é uma história de luta de
classes, afirmam Marx e Engels no Manifesto
Comunista.2
É na dialética da
sociedade de classes que podemos buscar a explicação do desenvolvimento
cultural. A cultura burguesa já teve o seu período heróico. Foi quando a
burguesia, orgulhosamente consciente da amplitude de sua missão histórica,
lutou contra as classes feudais e desenvolveu uma cultura predominantemente
progressista. O humanismo e o
classicismo burguês foram, durante o Renascimento e o brilhante século dezoito
francês, as alavancas usadas para demolir as Bastilhas da sociedade de
privilégios.
No instante da vitória,
a nova classe dominante ganhou um novo inimigo engendrado no ventre do seu
próprio sistema de produção: o proletariado. O desenvolvimento da cultura
burguesa em sentido regressivo é motivado pela pressão que vem das profundezas
da sociedade. Já nos meados do século XIX, iniciou-se, nos países de maior
desenvolvimento capitalista, a dissolução ideológica que caracteriza a
decadência da sociedade capitalista. Marx indica os anos 1830 e 1848 como os da
guinada. Nos países menos desenvolvidos, o capitalismo, em circunstâncias
concretas, não podia mais desempenhar um papel progressista.
Marx e Engels deduziram
essa decadência ideológica da posição da luta de classes entre burguesia e
proletariado, na ocasião da conquista do poder pela burguesia. Esse avanço do front da luta de classes manifestou-se
primeiro quando da solvência do .caráter científico da economia burguesa:
Agora não se trata mais,
-- observa Marx na introdução ao “Capital”
de verificar se uma ou outra teoria é
verdadeira, mas se para o capital é útil, cômoda ou não, proibida ou não. Em
vez de pesquisadores desinteressados, surgem combatentes pagos; em vez de
pesquisa científica sem preconceitos, surge a má consciência da apologética e
as segundas intenções.3
Apologética é uma das
palavras chave para a compreensão da decadência ideológica.
Ciência
e apologética na sociedade de classes
É falsa a interpretação
de que a crítica de Marx e Engels à apologética só se referisse à decadência da
teoria econômica. Marx e Engels não reconheceram a existência de uma ciência
econômica autônoma -- um enfoque que
se deduz inclusive da terminologia empregada por eles, falando sempre de economia política, só fazendo uso de
definições concretas, objetiva e historicamente determinadas. A especialização
das ciências em compartimentos estanques
não era outra coisa senão uma particularização do fenômeno de degenerescência
decorrente da distribuição capitalista do trabalho e da especialização de um
modo geral.
O marxismo começou como
crítica à religião. Nos seus primeiros escritos, Marx estudou criticamente o
problema da alienação, não só quanto à produção e suas ferramentas, mas também
quanto aos homens, à sociedade e às instituições. Criticou a visão hegeliana,
da filosofia do direito e as formas de convivência social, percebendo também na
arte a deformação decorrente da degenerescência do sistema capitalista.
Em seus escritos, Marx
e Engels posicionaram-se ante as principais tendências da ideologia burguesa.
Podemos citar a abrangente crítica aos economistas vulgares no Capital e em suas outras obras econômicas,
o acerto de contas com os seguidores de Hegel em A Sagrada Família e A
Ideologia Alemã, a denúncia da descaracterização da democracia e do
republicanismo burguês em Louis Bonaparte
e o Brumário XVIII.
Essa crítica assumiu
plenamente o caráter de um acerto de contas geral com a ideologia burguesa
pós-revolucionária. Já aqui se delineiam as tendências básicas do desenvolvimento
ideológico vindouro. De interesse essencial é o fato de Marx, acertadamente,
ter caracterizado a alienação que -- apesar de tendências em contrário,
oriundas do passado ideológico progressista da burguesia -- começava a se
evidenciar, em contraste com o período heróico
da burguesia. Evitava-se reconhecer as contradições na sociedade, preferia-se
escamoteá-las por trás de uma imagem de harmonia, em correspondência à
constituição social conveniente à burguesia.
Típico desse
desenvolvimento é, como Marx observa, o historiador e político Guizot. Antes de
1848, Guizot fazia parte do grupo de historiadores da Restauração francesa que
claramente reconheciam o papel da luta de classes no surgimento da sociedade
burguesa -- grupo ao qual pertenciam também Thierry e Michelet. Depois de 1848,
Guizot transformou-se, sob a pressão da crise revolucionária, num apologista
reacionário. Apavorado ante uma classe obreira que em fevereiro impunha
reivindicações que iam além das concessões da burguesia liberal, procurou
demonstrar que essa revolução implicava em distanciar-se do racional na
História. Via esse racional encarnado na monarquia de julho!
A banalização em seu
enfoque histórico vem logo à luz no texto em que compara a revolução inglesa
com a francesa, e as realidades históricas, os fatores econômico-sociais, são
ignorados por puro misticismo: o espírito
divino intervém sem nenhum acanhamento na sequência dos acontecimentos,
impedindo Cromwell de se proclamar rei! 4
A alienação
apresenta-se indubitavelmente a serviço da tendência apologética. Mesmo a
alienação nem sempre assumindo traços de misticismo, não é difícil perceber que
Guizot inicia uma tendência geral na pesquisa histórica burguesa. Ao longo dos
anos 1800 e 1900, a interpretação apologética impregna - às vezes como
estonteante metafísica histórica, às vezes com empírica pseudobjetividade --
como um traço constante a historiografia burguesa.
Enquanto um historiador
como Gãns, ainda após a revolução de julho -- segundo o inolvidável amigo de
Marx, Karl Friedrich Kõppen --, baseado numa visão histórica
democrático-revolucionária, conseguia reunir de 500 a 600 ouvintes oriundos de
todas as classes sociais, de comerciantes e militares a artesãos e operários,
para suas conferências na Universidade de Berlim, Raumer, oriundo da escola
romântica, ocupado principalmente em louvar a Idade Média e de preferência os
Hohenstaufers, tinha de se contentar com um círculo menor de burocratas,
funcionários e estudantes, cuja ambição maior era a de se tornarem também
burocratas e funcionários.
Em Raumer a apologética
histórico científica não tinha o mesmo fulgor que em seus seguidores. A
minuciosa pesquisa de Leopold von Ranke e sua admiração pelo papel dos
documentos escritos, o que em si significou um avanço, emprestou à sua visão
apologética da história um traço de cientificidade, que a escola romântica não
conseguiu alcançar. Mas a especialização rankeana
quanto à análise das fontes implicou, por sua parcialidade, num passo atrás em
relação aos historiadores franceses da Restauração, plenamente conscientes do
verdadeiro papel das lutas de classe.
A azeda observação
feita por Köppen de que Ranke conseguiu o feito artístico de escrever um livro
sobre Fürsten und Võlker (Príncipes e
Plebeus), em que é verdade que se fala muito de janízaros e financistas,
diplomatas e príncipes, comendadores e inquisidores, mas onde o povo anunciado
no título do livro brilha por sua ausência, acerta em cheio o cerne dessa forma
de escrever história: a apologética. 5
From
sounds to things, reza um acertado ditado. O
desenvolvimento da ciência moderna no sentido contrário leva, como observou
Marx, à predileção pelo radicalismo verbal e pela retórica, o que ele critica
especialmente com referência aos radicais
da revolução de fevereiro. O ano de 1789 foi quando as classes revolucionárias
procuraram arremedar a Antiguidade -- na vida política, em arte e literatura,
na vida social e até mesmo na moda -- como fator progressista do
desenvolvimento. 6
Quando os lamentáveis
herdeiros da montanha, em 1848, se
manifestaram usando palavras e loas do tempo da grande revolução, tratava-se
simplesmente de um baile de máscaras.
Quando, durante as grandes crises revolucionárias evocaram-se os espíritos dos
mortos, foi para glorificar as novas
lutas, não para parodiar as velhas, para imaginariamente aumentar as tarefas
dadas, não para esquivar-se delas, para reencontrar o espírito da revolução,
não para repeti-lo.7 No
tocante à burguesia, em 1848 era apenas a alma da velha revolução que
assombrava. As palavras estavam em contradição com os atos.
8
Economia
e harmonia
Com James Mil! -- o pai
de John Stuart Mill -- inicia-se a decadência da moderna economia burguesa. Sua
matéria-prima não é mais a realidade, mas a forma teórica sublimada de Ricardo.
Para Mill é a produção burguesa que
constitui a forma absoluta de produção. Assim, as verdadeiras contradições só
podem ser aparentes. Uma solução objetiva torna-se impossível. Aliás, de resto
em Mill fica somente um discurso
desculpativo das dificuldades - ou seja, pura escolástica.
9
Dessa forma a teoria de
Ricardo degenera-se em apologia direta do capitalismo, em defesa do desenvolvimento burguês. Tal apologética
aparece já no método de Mill: onde a situação econômica -- e, portanto, também
as categorias que a expressam -- incluem uma contradição, ele faz notar a
unidade dos contrários, negando as contradições em si, ou seja, substituindo a
dialética real por uma concepção metafísica. Faz da unidade dos contrários a identidade dessas contradições.10
Foi esse método que
abriu o caminho para a economia vulgar. N.
W. Sênior substituiu o conceito de capital
pelo de sacrifício, fazendo com que o
lucro capitalista fosse aceito como uma justa remuneração pelo sacrifício dos capitalistas!
Jean-Baptiste Say e Frédéric Bastiat tentaram suavizar o conceito de lucro
estendendo-o a todos os insumos: o salário seria o lucro dos trabalhadores, oriundo da produtividade da força de trabalho.11
É bem verdade que hoje
a maioria dos macro-economistas burgueses renegam tal disparate. Por outro lado
defendem que a doutrina do - valor-limite
deu início a uma renovação da moderna macroeconomia. Essa subjetiva teoria do valor é criação de um autodidata alemão, H. H.
Gossen.12
Possivelmente tudo
haveria caído em esquecimento, se a conjuntura histórica não fosse propícia. A
macroeconomia via-se diante de uma crise. A teoria harmônica dos clássicos
defensores havia ruído, e a presença da classe obreira -- principalmente
durante a Comuna de Paris, em 1871 -- crescera ao ponto de tornar-se uma ameaça
à existência da burguesia como classe. Necessitava-se de uma sólida ideologia
antimarxista, e para isso reinventou-se, nos anos 1870, a teoria do valor
limite, do genial idiota Gossen.
A teoria do valor
limite tem sido minuciosamente vistoriada (Dobb, Vogt e outros). 13
Transforma subjetivas valorizações particulares na
área que daria à ciência econômica a sua autonomia, declinando de pesquisar as
relações sociais que estão na base de tais valores. Desses subjetivos valores
seriam oriundas as leis econômicas,
declaradas em concordância com a natureza
das coisas (Menger). 14
Dessa forma,
transformam as leis relativas e historicamente condicionadas, do capi-talismo,
em leis naturais absolutas, que devem ser aceitas como inevitavelmente
necessárias. Nisso reside uma tendência apologética, que mesmo
metodologicamente desemboca na substituição do conceito de lucro pelos
conceitos de juro de capital e lucro do empresário, em pesquisadores
como Bohm-Bawerk. 15
O juro do capital -- ou
seja, o lucro capitalista -- passa a ser um resultado da própria duração, e
supõe-se ter base na própria natureza! Cassel
adapta essa teoria à demagogia capitalista cotidiana.16
Toda produção
exige tempo. Esperar é um atributo necessário da produção. E o juro do capital é simplesmente o preço a
pagar pela espera! 17
Assim, ressurge a velha
economia harmônica em refinada forma.
A ciência econômica degenerou-se numa reprodução
apologética de fenómenos superficiais -- traduz tão somente as representações ordinárias em linguagem
doutrinária. 18
Anti-capitalismo
romântico
A defesa do capitalismo
não passa somente pelo caminho da
apologética liberal direta. A crítica romântica do capitalismo, que
descobre dissonâncias onde os liberais enxergam pura harmonia, desemboca numa apologética indireta, tanto mais
perigosa e mais atual, da qual descende diretamente a demagogia social da barbárie
fascista. O primeiro defensor mais significativo desse anti-capitalismo
romântico foi Thomas Robert Malthus.
O alvo do pensamento
econômico de Malthus era, em princípio, o mesmo dos últimos grandes clássicos,
Ricardo e Sismondi: a produção capitalista devia desenvolver-se com a maior
liberdade possível. Mas os pressupostos eram, como observou Marx, distintos.
Ricardo queria a produção pela produção, via o desenvolvimento da riqueza do homem segundo a sua natureza como alvo
bastante.19
Consequentemente,
combatia todas as classes - se necessário, a própria burguesia que se
dispusessem a dificultar tal desenvolvimento. Comparando o proletariado com
maquinaria, com animais de carga, com mercadoria, fazia-o de direito, pois
assim é -- em que pesem todas as belas frases em contrário -- na sociedade
capitalista. O cinismo reside na situação real, e não nas formulações de
Ricardo.20
A apologética
malthusiana do capitalismo vai em sentido contrário. Ele também almeja o mais
livre desenvolvimento possível da produção capitalista,
... na medida em que só pressupõe
miséria para as classes, trabalhadoras, mas deve também adequar-se às
necessidades de consumo da aristocracia e de seus prepostos no estado e na
igreja, da mesma forma como deve servir de apoio material das antiquadas
exigências dos representantes daqueles interesses herdados do feudalismo e da
monarquia absoluta. 21
processo burguês de
produção deve, portanto, segundo essa teoria, criar uma base material para a velha e boa sociedade. Malthus mostra as
dissonâncias do capitalismo e nisso
encontra-se com Sismondi. Mas Sismondi salienta os direitos das pessoas particulares, cinicamente esmagadas pelo
desenvolvimento capitalista. Descobriu que a produção capitalista é
contraditória. A sua fraqueza reside em bem constatar as contradições, mas sem
compreendê-las. Não pode, assim, alcançar as tendências históricas que levam à
diluição das mesmas.22
Diferentemente de
Sismondi, que sublinha as dissonâncias do capitalismo e pelo menos tem vontade
de superá-las, Malthus as mostra, mas não para suprimi-las, e sim para, por um
lado, demonstrar que a miséria da classe
trabalhadora é necessária, e, por outro lado, para demonstrar aos capitalistas a necessidade de uma considerável
burocracia estatal e eclesiástica. 23
De
Carlyle a Nietzsche
Um dos representantes
mais originais e influentes do anti-capitalismo romântico é Thomas Carlyle.
Combateu com sucesso os adeptos da trivial ideologia
do progresso, que acreditava ou dizia acreditar que o desenvolvimento
incontido do capitalismo beneficiaria os interesses das classes trabalhadoras.
Em sua obra sobre o carlismo e em Past
and present descreveu a miséria da classe trabalhadora inglesa, ironizando
os hinos de louvor da economia vulgar à livre concorrência e a teoria
populacional de Malthus. Já em 1850,
Marx, numa resenha de Latter-Day
Pamphlets, acertadamente se pronunciava a seu respeito: O gênio foi para o inferno, mas seu culto
permaneceu! 24
Na revolução de
fevereiro Carlyle não conseguiu ver outra coisa senão caos e catástrofe, a
derrocada final da democracia. Sentia necessidade de ordem. O domínio dos nobres numa sociedade hierárquica passou
a lhe parecer uma eterna lei natural.
Tais nobres eram para ele - os
cavaleiros industriais! O herói de
Carlyle transformou-se e adotou ares de moderno produtor de lucro, o seu
romântico anti-capitalismo converteu-se em advocacia do capitalismo. 25
Um interessante caso
paralelo ao de Carlyle é o alemão Friedrich Nietzsche. Assim como Carlyle,
Nietzsche começou como romântico anticapitalista, e como aquele, terminou
adepto do capitalismo, como defensor e propagador do imperialismo alemão
anterior à guerra. Junto a elementos reacionários, a filosofia de Nietzsche
encerra também elementos liberais que lhe trouxeram agressões por parte do
nazismo, principalmente na obra de Arthur Rosenberg Mythos des zwanzigsten Jahrhunderts
(O mito do século vinte):
Em seu nome (de Nietzsche) deu-se a
contaminação racial com sírios e negros, mesmo se Nietzsche propugnava por
elevada disciplina eugênica. Nietzsche deixou se levar por sonhos de gigolôs
políticos, o que resultou pior do que cair em mãos de ladrões. O povo alemão
ouviu falar do afrouxamento de todos os laços, de subjetivismo, de
per-sonalidade, mas nada de disciplina e edificação interior.
26
Rosenberg via claro,
portanto, que Nietzsche, durante um certo
período de seu desenvolvimento, foi o odiado filósofo do liberalismo -- um
liberalismo que, em nome do livre desenvolvimento da personalidade, podia até
mesmo agredir a sua própria base econômica, o capitalismo. Alguns dos escritos
de Nietzsche contêm duras críticas ao sistema capitalista. Tais críticas
voltam-se principalmente contra as expressões de degradação cultural e de
depravação pessoal geradas pela divisão capitalista do trabalho. Nesse ponto
Nietzsche liga-se à tradição do anticapitalismo romântico. Liga-se também, ao
exaltar períodos pré-capitalistas tais corno a Renascença e o Império Romano.
Junto a essa crítica
romântica do capitalismo, existe em Nietzsche um extremo oposto. Ele cria uma utopia ultra capitalista na qual hábeis
e cultos dirigentes “romanos” de trabalho devem decidir sobre um bem
disciplinado e dócil exército de trabalhadores:
Soldados e dirigentes estão sempre
numa melhor relação uns para com os outros do que trabalhadores e patrões. Pelo
menos até agora, toda cultura de base militar está bem acima da assim chamada
cultura industrial. Em sua forma atual, aquela é o mais sociável modelo de
convivência que já houve . . . Aos donos de fábrica e aos grandes empresários
do comércio, faz falta essa forma que evidencia uma raça superior.
27
Alhures afirma:
Os trabalhadores devem sentir-se
como soldados. Devem receber honorários, soldos, mas não pagamento!
28
Aí está a contradição
fundamental da filosofia de Nietzsche: é decepcionado com a civilização
capitalista, em parte por ser demasiadamente capitalista, em parte por não ser
suficientemente capitalista! Nietzsche coincidiu viver a época em que o
capitalismo alemão entrava em sua fase imperialista. Criticou a civilização
capitalista tanto em relação a seu passado como a seu futuro baseando-se em
parte num pré-capitalismo romantizado, e em parte numa utopia relativa ao
imperialismo vindouro. De que maneira isso efetivamente se daria, tivemos
ocasião de verificar não muito tempo depois. Os campos de batalha, os campos de
extermínio, os fornos a gás, os crematórios, as valas comuns, testificam o
domínio da raça superior.
N
o t a s :
1 Comparar com E. Niekisch: Oswald Spengler. Neue Welt 7 (23): 1947.
2 Karl Marx e Friedrich Engels:
Kommunistiska manifestet (O manifesto
comunista), Estocolmo, 1938, p. 16.
3 Karl Marx: O Capital, vol 1, p. 11.
4
Previsão e providência, são as grandes
expressões. empregadas hoje para explicar o desenvolver da História. Na
realidade elas nada explicam. Na melhor das hipóteses trata-se de uma forma
retórica, uma das muitas formas de descrever os fatos. Karl
Marx: Misere de la philosophie
(Miséria da filosofia), Marx/Engels Gesamtausgabe
(Obras completas), Erster Arbeitung. VI,
p. 187. A mesma tendência irracionalista aflora vez por outra durante o
desenvolvimento da pesquisa histórica burguesa: veja-se, por exemplo, o que
diz Ranke sobre “as leis genéricas da vida”, “a mão de Deus sobre nós”, “os
maravilhosos caminhos do destino" etc., que substituem a análise das
realidades econômicas e politicas.
5 Friedrich Kõppen: Die Berliner Historiker (Os
historiadores berlinenses). IL
6/7, 1945.
6
O classicismo revolucionário realista de David foi o ápice da curva ascendente
desse desenvolvimento,
7
Karl Marx: O Brumário XVIII de Louis
Bonaparte, Estocolmo, 1939, p, 14.
8
Idem, p.14. Já nos irmãos Goncourt, é possível ler a franca e cínica traição do
burguês moderno para com as tradições revolucionárias de sua classe. Veja-se,
por exemplo, a reação desses senhores estudando, em seu Diário, a publicidade
do período revolucionário: Destituindo
esses grandes homens, um Robespierre, um Marat, de seu ar de carrascos, um não
passaria de um professor de retórica togado, de um Graco velho e grotesco, e o
outro um voluntarioso e caricato idiota. Basta tirar o sangue da revolução,
ante essa confusão de idiotismos canibais e grandiosidade comedora de gente, e
ver-se-á que emaranhado de mentiras é toda essa revolução!... E assim por
diante. Não e necessário citar mais para desnudar esses brilhantes escritores em toda sua miséria ética e espiritual. O Diário dos irmãos Goncourt, vol. I, p.
169, e a famosa história da revolução de Taine, não deixam a coisa por menos.
9
Citação a partir de Lukács: Karl Marx und
Friedrieh Engels ais Literaturhistoriker (Carlos Marx e Frederico Engels como
historiadores da literatura), Berlim, 1948, p. 112.
10
Ibidem, p. 114.
11
Em grande parte, a obra de Say consiste numa vulgarização de The Wealth of Nations, constata a
Encyclopedia of the Social Sciences.
12 H. H. Gossen: Entwicklung der Gesetze des menschlichen
Verkehrs und der daraus fliessenden Regeln für Mensehliches Handeln
(Desenvolvimento das normas para a melhor fluidez do transporte e do comércio
humano).
13
Ver Vogt em Athenaeum, 1834. Comparar
também com Maurice Dobb: Klassisk och modern
ekonomi (Economia clássica e moderna), Estocolmo, 1939.
14
Menger: Grundsãtze des
Volkswirtschaftslehre (Princípios de economia política).
15
Bõhm-Bawerk: Kapital und Kapitalzins
(Capital e juros do capital), 141, Innsbruck, 1914.
16
Gustav Cassei: Teoretisk socialekonomi
(Sócio-economia teórica), Estocolmo, 1938.
17
Ibidem, p. 200 e seguintes.
18
"A economia vulgar não faz outra coisa senão interpretar doutrinariamente
a imaginação dos agentes de um modo de produção, presos a suas relações, sistematizando
e defendendo a mesma". Karl Marx: O
Capital III, Estocolmo. 1931, p.771.
19
Quanto aos elementos progressistas da macroeconomia clássica, burguesa, ver
também: Misere de la Philosophie
(Miséria da Filosofia), Marx/Engels, Gesamtausgabe
(Obras completas), Erster Abt. vol. VI, p. 190.
20
Comparar com Karl Marx, Misere de la Philosophie
(Miséria da Filosofia), p. 136.
21
Quanto à crítica de Marx a Malthus, ver:
O Capital, p. 577, nota 76, p. 597 e alhures.
22
Em sua principal obra -- Nouveaux
Principes d'Économie Politique (Novos princípios de economia política),
publicada em 1819 --, Sismondi critica o axioma da economia clássica burguesa e
demonstra que as crises econômicas são fenômenos inevitáveis do sistema
capitalista. Demonstra também as consequências desumanas da divisão capitalista
do trabalho. Seu posicionamento político o aproximou da crítica romântica de
Carlyle ao capitalismo e da sua teoria quanto ao do estado pelos nobres. Em: Études sur les constitutivos des peuples libres (Estudo sobre as
constituições dos povos livres) -- editado 1836, ou seja, seis anos após a
revolução de julho, o que pode ter influenciado o seu posicionamento --,
Sismondi apresenta-se como liberal, distanciando-se da democracia, alegando que
nem o proletariado nem a baixa classe média estariam maduros para ela. Seu
livro torna-se uma apologia da burguesia urbana e dos privilégios dos
intelectuais.
23
Como Marx já observara, é tênue o limite entre a falta de brilho dos
economistas vulgares e a rebuscada linguagem dos escritores românticos, que na
economia romântica, ao contrário, se ligam indissociavelmente, como em Adam
Müller, que não apresenta outra coisa senão preconceitos
do cotidiano, uma raspa da camada mais superficial das coisas. Tal
conteúdo, pobre e trivial, querem depois elevar
e tornar poético através de
expressões mistificantes, O Capital, vol. III, p. 362.
24 Marx/Engels: Über Kunst und Literatur (Sobre arte e literatura), vol. I, p. 566.
Comparar com Schiller em Mãnnerwiirde
(A dignidade humana): Zum Teufel ist der
Spiritus/Das Phlegma ist geblieben. (Do demônio é a inquietude/de Phleugma a estabilidade).
25
Thomas Carlyle: The Present Time (O
presente momento), p. 42-43.
26 Alfred Rosenberg: Mythos des zwanzigsten Jahrhunderts (O
mito do século XX). Munique, 1938, p. 350.
27 Die fröhliche Wissenschaft, Werke in drei Bãnde (A alegre ciência,
obra em tres volumes), Munique, 1966, II pp. 65-66. É; inerente a essa utopia
ultra-capitalista apresentar vários traços feudais.
28
Ibidem, vol. III, p. 558.
* * * *
OBS. Em seguida partes
II e III.
Nenhum comentário:
Postar um comentário