Ludovico
Geymonat (1908-1991) - filósofo, matemático e epistemólogo,
militante comunista italiano. Reconhecido conhecedor do legado teórico de
Lenin. Autor de vasta literatura sobre Teoria do Conhecimento.
Tradução: Frank Svensson
V
Propomo-nos agora a
examinar um pouco mais miudamente os processos do conhecimento, ficando bem
entendido que, para compreender o valor autêntico e determinar o grau de
objetividade alcançado por esses processos, é necessário estudá-los em sua
realidade histórica, sem apelar para um caráter ilusório absoluto que -- como
dissemos nos parágrafos precedentes -- alguns pretenderam perceber na sua
origem e nos seus resultados. Tratar-se-á, em outros termos, de precisar o tipo
de contato por etapas ou por aproximações sucessivas que, segundo
o materialismo dialético, se realizará no desenvolvimento do conhecimento
(principalmente no desenvolvimento cientifico).
Como já vimos, a
hipótese metafísica, segundo a qual a realidade seria constituída de elementos últimos, conduzir-nos-ia
inevitavelmente a admitir a possibilidade de conhecimentos absolutos (um
conhecimento que busca captar tais conhecimentos torna-se ele mesmo
evidentemente absoluto). Vimos depois que um exame minucioso dos processos de
conhecimento, considerados em sua concretude histórica, nos leva a abandonar
essa consequência; teremos sem dúvida alguma de renunciar também à própria
hipótese metafísica (hipótese que até o início de nosso século se revelou
inteiramente incompatível com os desenvolvimentos mais modernos da física). Mas
essa renúncia implica em aceitar a tese segundo a qual a realidade deve ser
considerada como última e definitiva. Ora, é precisamente nessa tese que o
materialismo dialético se fundamenta para justificar a sua tese do conhecimento
como aprofundamento.
Se concebemos de fato a
realidade como sendo constituída de muitos níveis, compreendemos prontamente
que um certo sistema de conhecimentos surge ligado a um desses níveis mas não a
todos os níveis sucessivos; sentir-nos-emos então autorizados a afirmar que tal
sistema possui um indubitável valor objetivo no qual se consegue efetivamente
captar o nível da realidade, mas não lhe atribuiremos um valor absoluto,
prevendo que ele será enriquecido e corrigido por outro sistema de
conhecimentos capaz de captar níveis mais profundos.
Nessa perspectiva, o
tema conhecer significa
essencialmente progredir de um
conhecimento a outro, ou seja, penetrar melhor a realidade.
Quando falamos de uma
verdade cada vez mais próxima da realidade, não estamos querendo afirmar que
exista uma verdade absoluta à qual deveriamos chegar pouco a pouco; pelo
contrário queremos afirmar a existência de uma realidade inesgotável e garantir
que nossos conhecimentos sucessivos, níveis conquistados cada vez mais
profundos que conquistamos, estejam em condições, graças a seu próprio
desenvolvimento, de fornecer-nos imagens progressivamente mais completas e
satisfatórias.
Lembrando-nos de que,
para o materialismo dialético, a realidade mesma tem um perpétuo futuro, será
fácil dar-nos conta de que, segundo essa doutrina, só uma concepção dinâmica do
conhecer (como, justamente, foi aqui apresentada) está em condições de nos
explicar porque os nossos processos de conhecimento conseguem se adequar a essa
realidade. Quem poderá pretender, de fato, capta-la com categorias imóveis, se
estão em perpetuo movimento?
É claro que renunciar à
ideia de poder captar o real em sua totalidade não equivale a admitir -- estribando-se
num certo kantismo de tipo agnóstico, defendido no século XIX por vários
cientistas -- que exista, para além dos fenômenos, uma coisa em si que se pode por principio conhecer, e que não implica
em nenhum caso negar à ciência a possibilidade de estabelecer afirmações
válidas sobre as estruturas efetivas do real. Abandonar a pretensão de captar
por um ato intuitivo a totalidade dessas estruturas, não exclui de forma alguma
que se possa capta-las em número crescente, e dentre elas, justamente algumas
mais significativas.
Uma coisa é considerar
que a cada estagio do processo do conhecimento transpareçam limites coibindo
todo caráter exaustivo aos conhecimentos considerados; outra, completamente
diferente, é afirmar que esse processo se encontre diante de uma barreira
intransponível. Os limites sempre presentes da pesquisa científica, não têm o
caráter de uma ruptura metafisica entre o mundo dos fenômenos e o mundo real,
mas são limites temporários entre as etapas sucessivas de uma série ilimitada
de conhecimentos, todos de um mesmo tipo se bem que aproximados gradativamente.
Não
há e não pode haver -- escreveu Lenin -- diferença de principio entre o fenômeno e a
coisa em si. A diferença e simplesmente entre o que é conhecido e o que ainda
não é, sendo que todas as fantasias filosóficas sobre os limites específicos
existentes entre um e outro, sobre o fato de que a coisa em si se encontraria
para além dos fenômenos, não passam de palavras vazias, caprichos e
invencionices.
Para completarmos a
nossa análise dos processos do conhecimento em sua realidade histórica, devemos
finalmente nos questionar em que sentido podem ser compreendidas as
transformações às quais são submetidas as teorias cientificas para permitir uma
aproximação cada vez melhor da realidade. De acordo com o que afirmamos no
primeiro parágrafo, por conta da importância dos dados da observação,
respondemos que tais transformações devem, antes de mais nada, ser entendidas
como um enriquecimento desses dados, surgidos em decorrência do emprego de
novos instrumentos de observação, mais possantes e mais sutis. Mas isso não basta
as transformações às quais nós devemos submeter as teorias cientificas para
torná-las mais próximas da realidade, concernem também ao seu aparelho
conceptual. Trata-se frequentemente de transformações limitadas ao circulo de
qualquer postulado ou de qualquer modelo explicativo; mas em tais casos, elas
chegam a comprometer as teorias fundamentais do conhecer a si mesmas.
O que o materialismo
dialético sustenta, é que os aprofundamentos mais significativos das teorias
cientificas são ligados justamente a este último tipo de transformações:
transformações que a metafísica rejeita dogmaticamente, mas que, pelo
contrário, é indispensável aceitar para não deixar que se perca o sentido
efetivo das revoluções cientificas. Sem
duvida, não é fácil admitir que uma categoria (como o espaço, o tempo, a
causalidade etc.) possa ser usada num sentido diferente do sentido tradicional.
Mas querer torná-la qualquer coisa algo de absoluto, de imutável, de estático é
tão injustificado como atribuir um caráter de absolutismo meta-histórico aos
dados da observação ou às verdades
cientificas.
Se nos propomos ser
coerentemente antidogmáticos, nós devemos ter a coragem de rejeitar o
definitivo no plano das categorias, vendo nelas algo de flexível, de mutável,
de essencialmente dinâmico. É a teoria leninista da flexibilidade das teorias, complementar da do aprofundamento. Como
o demonstrou Giorello, ela constitui uma das teses mais importantes da
gnoseologia de Lênin: e ainda hoje ela aparece corno um dos instrumentos-chaves
para compreender a significação autêntica da dialética complexa da ciência
contemporânea.
VI
Neste ponto da
discussão, aparece uma questão de grande interesse: de que modo a evolução
desenvolvimento do conhecimento -- de um nível dado a outro mais profundo --
pode ser qualificado de racional ou
ressaltar um tipo de racionalidade?
Como observa
Omelyánovski em trabalho apresentado na II Conferência sobre problemas
filosóficos das ciências da Natureza, realizado em Moscou em 1970. Einstein
sustentava que os conceitos de base e os princípios fundamentais das teorias não são deduzidos (dados empíricos) de forma
lógica e, nesse sentido, são criações livres do espírito humano, ele que
vivia particularmente graças aos conceitos e aos princípios que fazem passar a
ciência de um nível dado, a outro mais profundo.
Podemos declarar-nos
inteiramente de acordo com Einstein sobre o caráter irredutível dos dados
empíricos, reconhecido hoje unanimemente pelo conjunto dos que estudam esses
problemas. Mas o ponto mais importante da tese de Einstein é outro: é a
afirmação de que, não podendo ser dedutíveis de dados empíricos, os conceitos
deverão ser livres criações do espírito
humano. Para sublinhar o caráter livre dessas criações, outros eminentes
físicos têm afirmado tratar-se no caso deles, da imaginação mais audaciosa,
imaginação muito mais fecunda do que simplesmente recorrer a ideias malucas ou sem sentido.
Essas palavras têm sem
dúvida um fundo de verdade, se as interpretamos simplesmente como afirmações
enérgicas da necessidade de que o cientista -- quando constata os limites de
uma etapa do conhecer, ou seja, de teorias construídas com as categorias
características dessa etapa -- saiba se libertar, com o antidogmatismo coerente
de que falamos no último parágrafo, da pesada carga da tradição científica e
filosófica, introduzindo conceitos e princípios que se afastam radicalmente dos
tidos como rígidos e imutáveis pelas gerações precedentes.
O que, no entanto, nos
deixa perplexo é o outro aspecto, num sentido mais geral, que parece presente
nas palavras citadas acima. Referimo-nos à afirmação de que o desenvolvimento
em profundidade de nossos conhecimentos, em particular dos conhecimentos
científicos, sendo fruto da livre criação, seria um processo que escaparia, por
principio, a qualquer enquadramento racional.
Se levarmos em conta o
fato de que os epistemólogos mais modernos, que se dedicam à passagem de uma
teoria a outra na história da ciência -- por exemplo, Popper, que tem se
ocupado várias vezes expressamente com a criação de uma nova teoria quando as
precedentes foram declaradas falsas --, estão de acordo no essencial com a
afirmação de Einstein citada um pouco antes, devemos concluir que tal passagem
escapa efetivamente de todo tipo de racionalidade. Ora, o materialismo dialético se recusa a
fazer tão danosa concessão ao irracionalismo. Longe disso afirma que, se é
verdade que a passagem em questão escapa à lógica
formal com os seus aparelhos metodológicos, ela não escapa, porém, à lógica
dialética (Omelyáriovski).
Não negamos que o
recurso a esse tipo novo de lógica possa suscitar muitas dúvidas, mesmo
naqueles que, com Engels, aceitaram o caráter dialético -- e, assim, dinâmico
-- da realidade e do conhecimento. A lógica dialética, invocada pelo
materialismo dialético para evitar danosas concessões ao nacionalismo, na
realidade parece comportar riscos tão grandes quanto os oferecidos pelas
concessões contra as quais precatar-nos. Basta pensar no perigo de cair na
lógica hegeliana, tristemente célebre por suas três fórmulas abstratas e
errôneas. Entretanto o fato é que esse perigo pode ser evitado, quando nos
limitamos a interpretar a lógica dialética como uma tentativa -- a única conhecida
até agora -- de captar uma forma de racionalidade no devir, mesmo quando este
se afigura irredutível a um movimento mecânico puro e simples.
É fato conhecido: uma
tentativa desse gênero consiste essencialmente na atribuição de uma função nova
e muito particular à contradição existente os diversos momentos do devir, no
fato de considerá-la como uma ligação que, de dois momentos, por meio de suas
contradições, faz surgir um novo momento, o qual, em se situando num plano mais
elevado, elimina os aspectos contraditórios dos dois momentos precedentes. A
racionalidade posta em evidência, em última instância, na unidade estabelecida
entre dois aspectos que pareciam incompatíveis.
Por maiores que sejam
as dúvidas suscitadas em nós pela lógica dialética, devemos sinceramente
reconhecer que ela parece se adaptar admiravelmente àquilo que é possível
constatar concretamente nas fases mais delicadas do desenvolvimento do
conhecimento científico. Pensemos, por exemplo, na física dos primeiros anos de
nosso século, quando se viu face a duas teorias da luz -- a ondulatória e a
corpuscular -- , tanto uma como a outra demonstradas por experiências
inatacáveis. Ninguém pode contestar o surgimento naquela situação de um caráter
inteiramente paradoxal; como ninguém poderá contestar que foi justamente a
ampliação desse paradoxo -- fenômenos luminosos nos raios materiais -- por exemplo, os feixes de elétrons -- que
fizeram surgir a mecânica quântica,
resolvendo a contradição, em modificando radicalmente as teorias antigas -- de
objeto físico, de causalidade etc. -- e abrindo assim o caminho para um
aprofundamento muito importante de nossos conhecimentos científicos. Quem
poderá negar que nesse caso e em muitos outros, foi justamente o paradoxo
descoberto dentro de uma disciplina (ou seja, a contradição surgida entre duas
teorias igualmente dignas de aceitação) que permitiu avançar até um novo grau
de aprofundamento? Omelyánovski chega a sustentar que é quando um paradoxo põe
os pesquisadores em oposição suficientemente radical às ideias dominantes da
época que ele se revela verdadeiramente em condições de lhes indicar de que maneira tais idéias poderão ser
modificadas.
Se as coisas se passam
efetivamente assim -- e a história da ciência parece no-lo confirmar por muitos
exemplos --, a introdução de novos conceitos e princípios de base não se nos
apresenta mais como o produto de uma livre
criação do espírito ou de uma imaginação maluca demais, mas como o efeito de uma autêntica lógica interna ao
desenvolvimento da ciência. O cientista militante, que se deixa guiar
unicamente pela introspecção, pode enganar-se quanto à possibilidade de por
acaso chegar a certas inovações; mas o filósofo, que se esforça por compreender
globalmente o processo da pesquisa, capta as motivacões mais profundas, inatingíveis através de um simples exame
de ordem psicológica.
Mais uma vez, compete
ao estudo daquilo que efetivamente surge no desenvolvimento concreto da ciência
de servir de guia para o materialismo dialético. Mas trata-se de um estudo
conduzido sem limitações preconcebidas e, em particular, sem a presunção
dogmática de que a racionalidade só se exprime na lógica formal. Os adversários
de boa fé do materialismo dialético deveriam meditar sobre o fato de que, se a
utilização da lógica dialética está em condições de revelar urna ligação
racional nos casos em que as considerações adialécticas nada veem senão o caos
parece justo renunciar a priori a
esse tipo de lógica.
VII
Até aqui só aludimos à categoria da
totalidade, que detém um lugar de primeiro plano na concepção usual da
dialética. É conveniente, portanto, submetê-la a um exame mais atento com uma
referência particular à maneira pela qual o materialismo dialético trata do
problema geral do conhecimento científico e dos problemas específicos que lhe
são conexos. Por outro lado, com referência à aplicação de uma tal categoria à
concepção do mundo, limitamo-nos a discuti-lo brevemente no primeiro parágrafo.
Considerar o vasto circulo de processos do conhecimento em sua totalidade,
significa sublinhar que eles constituem um continuum
no qual não encontramos separações estanques entre um processo e outro, mesmo
quando conservam as suas diferenças; por exemplo, não se encontra a separação
apriorística entre categorial e pré-categorial, que já examinamos no segundo
parágrafo, ao criticar a fenomenologia.
Desse continuum não estão excluídas, dado o
seu caráter dialético, as modificações, mesmo rápidas, pelas quais se realiza o
processo de aprofundamento dos conhecimentos científicos, definido nas páginas
precedentes. O fato é que a conquista de um conhecimento mais profundo decorre justamente -- como procuramos explicar
anteriormente -- da radicalização dos paradoxos surgidos nos níveis precedentes
da evolução do conhecimento; radicalização que constitui uma ligação efetiva,
autêntica, entre o antigo e o novo, e não uma separação estática entre eles.
Ademais sabe-se que, segundo a teoria do aprofundamento, um conhecimento
superior não anula os precedentes, mas os engloba, permitindo-nos descobrir por
que eram válidos, dentro de certos limites, mas não além deles.
A aplicação da
categoria da totalidade aos processos do conhecimento nos mostra que a garantia
do conhecer deve ser buscada justamente no quadro global (em perpétuo
desenvolvimento) desses processos, ou seja, no próprio tipo de dinâmica que os
caracteriza, sem privilegiar uni em relação aos outros. Para ilustrarmos os
equívocos decorrentes da recusa, por parte de certos filósofos desse gênero de
garantia global ou dialética, julgamos oportuno considerar
por uni instante as consequências extremamente graves que se podem deduzir, num
caso particularmente significativo, duma tal recusa e da atribuição de uma
validade efetiva unicamente às categorias primordiais
ou intuições do saber comum, e não às
mais acuradas e mais amplas, elaboradas a partir destas, por meio de pesquisa
científica. O exemplo que pretendemos examinar diz respeito à noção de causa.
Quem tem o hábito de
privilegiar os níveis mais baixos do conhecimento considera evidente que a verdadeira significação da causa é
aquela que encontramos na vida cotidiana significação que, se aceita, virá travestida e deformada, seja da noção
mecanicista de causa à qual recorreu durante séculos a física clássica, seja
ainda, em grande medida, da noção da causalidade
probabilística introduzida pela mecânica quântica, seja, enfim, da noção de
interação comumente utilizada nos
mais recentes desenvolvimentos da teoria dos campos -- noção estritamente
conexa à de totalidade --. Para esclarecermos a atitude nitidamente
antidialética de quem assim pensa, tentemos imaginar um dialogo entre ele e um
físico moderno, focalizado no problema da causalidade.
Suponhamos que o físico
em questão tenha explicado ao nosso sujeito os métodos pelos quais conseguiu calcular
com muita precisão a probabilidade de certos acontecimentos subatômicos: por
exemplo, a emissão de partículas pelos átomos de uma substância radioativa.
Depois de ter seguido atentamente a exposição de seu interlocutor, o anti-dial
ético fará a seguinte pergunta: Qual é a
verdadeira razão pela qual, entre dois acontecimentos que, segundo os cálculos,
têm a mesma probabilidade, um se verificará num tempo t e o outro no tempo T,
muito diferente de t ? Corno o físico não lhe vai responder, ele concluirá Tua impossibilidade de responder à minha
indagação demonstra que a mecânica quântica é incapaz de captar a autêntica
realidade que se esconde sob a aparência probabilística do fenômeno.
Sem negarmos que esta
conclusão seja o esboço de uma exigência justa -- ou seja, a de buscar teorias
mais profundas que a da mecânica quântica --, parece-nos claro que demonstra
muito bem os limites metafísicos da antidialética, decorrentes justamente de
sua recusa de aceitar, com suas consequências, a tese da flexibilidade das
teorias, bem como da pretensão de poder dar uma significação ao conceito de
causa tomado isoladamente, fora do contexto histórico no qual é utilizada.
O que lhe oporá o
materialista dialético? Opor-lhe-á que a noção comum de causa não reflete total
e diretamente uma ligação existente no mundo objetivo : de fato, como as noções
mais complexas de causa, elaboradas gradualmente pela ciência, ela não possui,
por si mesma, nenhuma significação imediata evidente. Sua significação deriva
inteiramente do fato de que ela está inserida numa teoria bem determinada, da
qual parece independente por estarmos habituados a enfrentar tal contexto
histórico inconscientemente. Mais precisamente ela se insere num sistema
centrado na ideia de geração, que não goza de nenhum direito a priori de ser privilegiada em relação
a outras idéias.
C. B. Bazenov escreveu
a esse respeito : Não há nenhuma razão
para considerar a estrutura intuitiva da geração como urna parte fundamental da
realidade por ela mesma: é preciso, pelo contrário, tomá-la pelo que ela é
efetivamente: uma descrição aproximadamente verdadeira dessa realidade. Sem
dúvida alguma, a categoria de causalidade
subentende a presença de um mecanismo interno determinado de ligação entre
estados e sua simples sucessão. Mas, se
nas primeiras etapas do conhecimento cientifico um mecanismo foi imaginado
justamente sob a forma de uma estrutura intuitiva de geração, já hoje não é
assim; não há nenhuma razão para confundir
esse mecanismo interno com a
estrutura constitutiva do processo de geração. Fazer dessa estrutura uma característica integrante da causalidade
é um ato simplesmente dogmático. É fruto da ação de privilegiar o saber
primitivo e a incompreensão da teoria do aprofundamento por aproximações
sucessivas.
VIII
Neste
ponto da discussão, surge urna questão de certa forma desconcertante: se a
significação de termos corno causa é
sujeita a variação de uma etapa ou de outra de nosso conhecimento, o que será
da tese da objetividade das leis da
natureza (leis em cuja formulação se emprega muito frequentemente a noção de
causa?
Para dar urna resposta,
é necessário refletir com uma certa atenção sobre a noção mesma de objetividade
das leis naturais. Se no materialismo mecanicista essa noção foi utilizada para
indicar que as leis naturais conseguiriam formular com urna certa exatidão
absoluta uma parte fundamental da
realidade -- compreendida como um sistema rígido de seres, no qual não seriam
possíveis outras transformações a não ser a resultante de movimentos mecânicos
--, no materialismo dialético, ao contrário, ela possui uma significação bem
diferente: na realidade ela serve para indicar que as leis da natureza
constituem descrições aproximadamente
verdadeiras da realidade – com-preendida como um sistema não mais rígido,
mas essencialmente fluido --, descrições cujo grau de aproximação varia de urna
fase a outra da evolução de nossos conhecimentos. Nessa perspectiva, objetividade significa somente
capacidade de refletir qualquer estrutura do real, não de esvaziá-la totalmente;
indica a existência de uma relação efetiva -- não ilusória -- com o mundo
objetivo, mas uma relação que não é absoluta, mas sim passível de modificações
constantes, de integrações, de aprofundamentos.
Vários metodólogos
modernos, de orientação neopositivista, exprimem sua recusa à antiga
interpretação mecanicista das leis da natureza, afirmando que elas não têm
valor de hipóteses. Trata-se de uma tese que, examinada sem preconceitos, não
parece muito diferente -- em substância -- da dos materialistas dialéticos
(centrada, como já vimos, numa significação nova da noção de objetividade). É
preciso, no entanto, reconhecer que a dos materialistas dialéticos parece
preferível sob três pontos de vista:
1
- porque essa tese reconhece a legitimidade das aspirações, presentes em todos
os cientistas militantes, de buscarem uma forma de objetividade
2
- porque ela é compatível com a atribuição de um grau, mesmo limitado, de
objetividade dos próprios conhecimentos pré-científicos, na medida em que eles se revelam adequados
para formular, por intermédio de suas categorias rudimentares e pouco precisas,
as estruturas encontradas nos primeiros (menos profundos) níveis da realidade;
e
3
- porque ela consegue dar um sentido claro ao progresso cientifico, entendido
como a passagem de um conhecimento, adequado a um certo nível da realidade a
outros conhecimentos adequados a níveis mais profundos.
O verbo refletir foi aqui usado no sentido de reflexão ativa. Para esclarecer os
nossos argumentos, pode ser útil lembrar uma assertiva de Bazenov sobre a
relação entre o inundo objetivo e as categorias a que recorremos para dar uma
imagem cada vez mais aproximativa: Essas
categorias -- escreve ele -- são um reflexo da realidade, mas a realidade em si
não é uma corporificação das categorias de que dispomos.
O significado dessas
palavras é evidente: qualquer que seja o estágio de nosso conhecimento, dispomos
de categorias bem determinadas para formular uma imagem do mundo -- categorias
que se podem qualificar de reflexo da realidade, na medida em que elas estão
próximas da imagem em questão -- ; errado seria sustentar que a realidade é uma
corporificação dessas categorias,
considerando sempre possível poder dar uma imagem cada vez próxima, recorrendo
a categorias ulteriores mais precisas e mais refinadas. Ou seja: as categorias
são bem objetivas, mas somente de uma objetividade relativa, não absoluta.
Para explicar o
significado do conceito imagem do mundo,
alguém já propôs relaciona-lo à noção -- tirada da lógica moderna -- de modelo, afirmando que o mundo pode ser refletido por várias imagens, assim como
as teorias matemáticas não categóricas podem ser representadas por vários
modelos. Todavia, convém salientar que essa analogia negligencia a tese mais
característica do materialismo dialético, que fala também da multiplicidade de
imagens, mas com um sentido totalmente diferente: considera de fato que a
existência de várias imagens em suas isomorfias é uma questão de pouco
interesse, na medida em que o importante é reconhecer a existência de uma
sucessão de imagens -- não isomorfas -- próximas da realidade, ou seja,
construídas por meio de categorias progressivamente mais refinadas, e por isso
mesmo mais aptas a descrever, com crescente profundidade, as estruturas do
real.
Os materialistas
dialéticos afirmam, às vezes, a situação, delineada por Bazenov, fazendo,
límpida, embora complexa distinção entre "mundo físico" e "mundo
objetivo". O inundo físico é -- para quem aceita essa forma de se expressar
-- a representação do mundo objetivo elaborado pouco a pouco pela física -- no
sentido mais amplo -- representação que consiste num sistema de conceitos e
proposições, logicamente ligados entre si. E é evidente que em tal sistema,
toda lei terá um lugar bem determinado, não mutável sem a modificação do
sistema inteiro, se bem que será justo, desse ponto de vista, de atribuir-lhe
uma validade absoluta.
Entretanto, examinando
o desenvolvimento histórico das pesquisas científicas, verificamos que a física
muitas vezes revolucionou seu próprio mundo, como, por exemplo, quando a física
não clássica foi substituída pela
física clássica. Não nos surpreenderá que, em casos semelhantes, ela mude mesmo
as leis da natureza, para compatibilizá-las com o novo sistema de conceitos e
de proposições que vinha elaborando.
O inundo objetivo é,
pelo contrário, a realidade que nos esforçamos por captar, construindo mundos
físicos mais próximos dela. Com relação ao mundo objetivo, não faz sentido
falar de leis imutáveis, porque elas mudam com a passagem de um mundo físico a
outro.
A objetividade das leis
não fica de qualquer modo perturbada pelo fato de poderem se transformar. Na
realidade ela não pode ser comparada a uma pretensa imutabilidade, ou ter um
caráter absoluto. A objetividade reside unicamente no fato de que os sistemas
de conceitos ou de proposições, nos quais as leis em questão estão inseridas,
não são simplesmente convencionais mas são autênticas aproximações cada vez mais
profundas do mundo objetivo.
IX
Desenvolvidos
estes esclarecimentos, agora podemos finalmente empenhar-nos, com muita
prudência, no difícil debate sobre as relações teoria-prática, limitando-nos a
examinar um aspecto muito atual: será possível justificar racional e
praticamente o am-plo e sistemático emprego que a tecnologia faz das
descobertas da pesquisa científica ?
Não é difícil
evidenciar tratar-se de um problema que suscita muita dúvida e perplexidade.
Uma pergunta surge espontaneamente: se as leis científicas não são absolutas
como o admitem tanto os neo-positivistas como os materialistas dialéticos, que
valor se pode atribuir às indicações que nos são fornecidas acerca do
desenvolvimento efetivo dos fenômenos? Se, empregando a inquietante expressão
de Bazenov, elas não são corporificadas
pela realidade, quem pode recorrer a elas justamente para agir sobre essa
realidade?
Fazer ver que questões
como essa são puramente abstratas e capciosas, tem pouco valor; podemos tranquilamente
compreendê-lo referindo-nos à medicina como biologia aplicada. Nesse caso, na
realidade, essas questões transformam-se imediatamente em interrogações
dramáticas: quem nos assegura que os medicamentos produzidos hoje, com base nas
descobertas mais modernas da química e da biologia, serão verdadeira-mente
eficazes? Quem nos garante que, à luz dos conhecimentos científicos que
abordaremos mais tarde, eles não se revelarão inúteis ou simplesmente nocivos?
Do ponto de vista do
materialismo dialético, as dúvidas expressas por tais questões, são
extremamente instmtivas, porque elas esclarecem quais erros podemos identificar
em razão de conceder um caráter absoluto à objetividade, ou seja, da
incompreensão fundamental da tese leninista segundo a qual admitir a presença
de um elemento ativo do nosso conhecimento (teoria do reflexo ativo) não
significa negar a sua capacidade de se pôr em contato -- mesmo incompleto --
com o mundo objetivo.
Já nos esforçamos
várias vezes, em páginas precedentes, por refutar, no plano teórico, a
identificação da objetividade com o caráter absoluto. Propomo-nos a mostrar
agora como são insustentáveis as consequências que podem ser tiradas (e que,
realmente o são por diferentes autores) no plano prático. É possível resumi-las
assim: quando queremos agir por bem sobre a realidade, devemos -- senão em
palavras, pelo menos por atos -- abstrair o máximo possível daquilo que a
ciência pretenderia nos ensinar a respeito.
Examinemos então as
bases possíveis desta conclusão. Para justificá-la de alguma forma, só vemos
dois caminhos: ou negar qualquer valor a um conhecimento somente parcial do
mundo objetivo, ou sustentar que o resultado de nossos atos sobre o mundo não
depende de nosso conhecimento dele mesmo, mas exclusivamente da paixão com a
qual nos apressamos a executá-los.
Negar qualquer valor a
um conhecimento que se declara simplesmente aproximativo do mundo objetivo
conduz, no plano da pratica, à tese seguinte: a verdadeira racionalidade deveria consistir na interdição de
qualquer ato enquanto não se esteja de posse de um conhecimento completo e
absoluto do mundo sobre o qual se pretende agir. Ou seja: deveríamos considerar
como racional o fato de se nos abstermos de agir hoje a fim de podermos agir
melhor amanhã.
Como todos percebem,
trata-se da bem conhecida tese, característica de todas as formas de atentismo. Os perigos dessa atitude são
largamente conhecidos, sendo inútil aqui enumerá-los. O ponto que, no entanto,
é menos conhecido, e no qual vale a pena fixar nossa atenção. é que o atentismo
decorre justamente da negação da dialética, em nome da exigência de um saber
absoluto -- não aproximativo e sem estar em contínua mudança --. Trata-se de
uma exigência aparentemente nobre e sedutora: mas o fato de engendrar o
atentismo esconde a sua verdadeira natureza. Ela não passa de uma miragem uma
miragem que nos desvia do presente, fazendo-nos esquecer, por meio de
fantasmas, as nossas responsabilidades cotidianas de homens.
A face reversa do
supracitado dilema -- ou seja, a afirmação de que o resultado de nossos atos efetivos
e concretos sobre o mundo não dependeria daquilo que conhecemos dele, mas
somente da paixão com a qual o consideramos -- nos parece ter hoje um
considerável numero de defensores. Trata-se de uma atitude, frequentemente
adotada de boa fé, que se exprime na seguinte tese: a condição essencial para
conseguir transformar o mundo é efetivamente querer transformá-lo, ou seja, ter
bem claro na mente o objetivo que se pretende perseguir com essa transformação.
Não há duvida de que tal atitude pode ensejar atos heroicos, incontestavelmente
meritórios do ponto de vista pessoal: não há dúvida igualmente, como a história
nos ensina, de que ela sempre foi, ou quase sempre foi, essencialmente estéril.
Para realmente
conseguir transformar o mundo, não bastam as boas intenções é necessário saber
escolher os meios que, numa situação dada, serão os mais adequados para atingir
o objetivo fixado. A pretensão de poder prescindir disso desemboca
inevitavelmente no subjetivismo, no voluntarismo e, às vezes, no misticismo.
Vale a pena observar
que essa atitude decorre também, em última instância, exatamente como o
atentismo, de unia incompreensão fundamental da dialética. Para se convencer
disso, é suficiente considerar a base em que ela se apoia: é a afirmação de que
os meios de nossos conhecimentos (científicos ou não) não seriam de nenhuma
utilidade real para a ação, por não oferecerem uma garantia absoluta de
sucesso. A esse argumento, o materialista dialético poderá comodamente
responder: o erro que se esconde na raiz dessa presunção é o de confundir a
racionalidade com o caráter absoluto, negando dogmaticamente todo valor, por um
lado, dos conhecimentos somente aproximativos, e por outro, dos instrumentos de
ação que não permitem uma garantia absoluta.
Além dos atentistas e
dos voluntaristas, mais ou menos conscientes, existe ainda uma terceira
categoria de pessoas que sustentam, por motivos mais aceitáveis, que o apelo
aos conhecimentos científicos não representa algo de essencial para a ação. Os
conhecimentos científicos -- dizem -- podem certamente ser úteis para tornar as
nossas ações mais eficientes, mas não lhes conseguem impor um sentido. Esse
sentido não pode provir senão de uma visão global do mundo, que, só ela nos
pode ajudar a compreender e a dimensionar a verdadeira importância de nossas
ações dando-nos unia plena e total consciência das decisões a tomar em favor da
nossa ação.
Não negaremos a
validade dessa exigência, ou seja, dessa vontade de ter em conta o mais
possível a função primeira atribuída, sobre o plano da prática, à uma visão
global do mundo. Acrescentaremos ainda que essa visão possui sem dúvida alguma
uma função essencial no plano do conhecimento, mesmo ultrapassando os limites
dos conhecimentos científicos. Não e raro que se cometa, a propósito desse
enfoque, um grave erro: o de considerar que seja possível ter uma visão global
de mundo satisfatória, percorrendo um caminho totalmente independente dos
conhecimentos científicos, erro que decorre, em primeiro lugar, da incapacidade
de distinguir entre relação de simples impropriedade e relação de independência
efetiva, e em segundo lugar, de uma concepção muito restrita, rígida e mecânica
tanto quanto à estrutura dos conhecimentos científicos, como da estrutura da
filosofia -- compreendida precisamente como elaboradora de visões globais de
mundo --.
Uma vez evitado esse
erro, fica claro que os conhecimentos científicos tornam a ter -- de pleno
direito -- uma significação maior para a prática, não só na medida em que sejam
capazes de fornecer meios que permitam uma maior eficiência de nossos atos, mas
também por estarem ligados por uma relação muito articulada de interações com a
filosofia -- interpretada no sentido definido ainda há pouco --. De fato, uni
exame rigoroso da história das Pesquisas científicas e filosóficas nos mostra
que em quase todas as épocas a ciência e a 'filosofia exerceram uma profunda
influência uma sobre a outra, da mesma forma que sobre a cultura em geral e,
por meio desta, sobre os debates em torno das orientações a dar à ação dos
indivíduos e dos povos. A pretensão de encerrar as diferentes atividades do homem
em compartimentos estanques, isolados uns dos outros, é urna das heranças mais
perigosas da metafisica tradicional ; herança que deve ser combatida com
tenacidade, opondo-se lhe uma concepção unitária e dinâmica do inundo natural e
humano. Urna das contribuições mais importantes do materialismo dialético nessa
batalha constitui justamente a sua teoria do conhecimento, centrada na defesa
de um novo tipo de racionalismo realista, antidogmático e aberto, visando a
eliminar tanto da ciência corno da filosofia tudo o que se pretenda absoluto.
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