Ludovico
Geymonat (1908-1991) - filósofo, matemático e epistemólogo, militante
comunista italiano. Reconhecido conhecedor do legado teórico de Lenin. Autor de
vasta literatura sobre Teoria do Conhecimento.
Tradução: Frank Svensson
Para
expor dentro de certa ordem as teses mais características do materialismo
dialético sobre o problema geral do conhecimento (ou problema gnoseológico),
convém lembrar, mesmo que em termos esquemáticos, certas objeções de fundo
dirigidas a uma pretensa solução idealista desse problema. É isso que nos
propomos fazer neste parágrafo e nos seguintes.
I
Aquele
que tem por hábito considerar o idealismo de Fichte como uma das principais
formas modernas da filosofia idealista ficará surpreso com o fato de que os
materialistas dialéticos não aprovaram e não aprovam a necessidade de atacá-lo;
assim, por exemplo, os marxistas italianos não são dados a refutar a teoria do
conhecimento elaborada por Giovanni Gentile e seus discípulos.
Isso não se deve --
como insinuam alguns -- à existência de laços mais ou menos claros entre o fichteísmo (ou o néo-fichteísmo de Gentile) e o materialismo dialético
(principalmente sob a forma dada por Lênin), mas ao simples fato de que a noção
fichteana do eu puro distinta dos eus
empíricos não encontra nenhuma correspondência nos processos concretos do
conhecimento que constituam, para o materialismo dialético, o verdadeiro e
próprio objeto das pesquisas gnoseológicas, e em particular nos processos de
conhecimento das ciências exatas, unanimemente consideradas pelos materialistas
dialéticos corno o ponto mais alto atual do conhecimento humano.
Dedicar-se a atacar uma
filosofia tão distante de toda realidade não pode constituir outra coisa senão
uma considerável perda de tempo; ou seja, seria uma luta inútil contra os
fantasmas do passado, algo agora destituído de qualquer interesse teórico e que
finalmente não implica em nenhum dano. O verdadeiro perigo do idealismo se
encontra no fenomenismo herdado de
Hume e no agnosticismo de tipo kantiano. Com respeito a essa última forma de
idealismo -- muito difundida nos meios científicos do inicio do século e que
foi objeto de vivas criticas por Lênin podemos acrescentar haver perdido quase
todo seu peso, o que nos dispensa de considerá-la de forma sistemática. Limitar-nos-emos
a mencioná-la quando nossa argumentação nos levar a discutir se faz sentido
admitir, como os agnósticos, a existência de qualquer realidade por princípio
impossível de ser conhecida.
O fenomenismo é, ao contrário, extremamente difundido entre os
cientistas e os epistemólogos (ou filósofos) da ciência. Fato é que as formas
mais refinadas -- ordinariamente conhecidas sob a denominação de empirismo
lógico ou neo-positivismo -- parecem encontrar uma correspondência quase
perfeita em certos setores particularmente avançados do conhecimento científico
atual. É bem compreensível, no entanto, que nosso dever primeiro seja o de
guardar as devidas distâncias dessa teoria.
A gnoseologia
materialista-dialética também atribui uma grande importância às sensações (ou
percepções), afirma que elas constituem, sem dúvida alguma, o .fator primeiro
de nossos processos de conhecimento. Isso não nos autoriza, no entanto, confundir aquilo que é um fator primeiro e
essencial de todos os processos do conhecimento com o objeto de tais processos.
Uma tal confusão nos conduziria na verdade a considerar os dados perceptivos
como algo definitivo, além dos quais o conhecimento não poderia chegar. Isso
equivaleria a sustentar, de um lado, o caráter absoluto desses dados, e do
outro, o caráter não cognitivo mas prático, arbitrário, puramente convencional
das elaborações teóricas feitas a partir dos mesmos (donde a inconsistência de
qualquer tentativa de penetrar mais fundo no significado).
Se é um fato histórico
incontestável que o fenomenismo se afirma na filosofia moderna em oposição
direta com o dogmatismo dos metafísicos, é verdade, todavia, que um exame
crítico sem preconceitos das teses fenomenistas demonstra a sua estrita
analogia com as de seus adversários. Não se pode negar que atribuir aos dados
perceptivos um caráter absoluto e definitivo, como precisamente pretendem os
fenomenistas, parece demais com a realidade
última postulada de forma dogmática pelos metafísicos.
Apresentaremos no
parágrafo 4 as críticas sustentadas pelo materialismo dialético contra o mecanicismo (a concepção filosófica que, é verdade, com importantes variantes,
foi a base da física clássica depois do século XVII): criticas essencialmente
baseadas no fato de que a admissão -- fundamental para o mecanicismo -- de
conhecimentos absolutos daria um significado muito reduzido à noção de avanço do conhecimento. Sem antecipar
uma análise detalhada, parece oportuno assinalar que tais críticas também são válidas
em relação ao fenomenismo, pois este, tal corno o mecanicismo, postula a
existência de conhecimentos absolutos (precisamente os dados perceptivos).
Limitamo-nos aqui a
reafirmar que esta absolutização não pode deixar de criar uma verdadeira
ruptura entre os dados da observação, e não importa qual seja a elaboração
teórica feita à partir dela. Ora, é exatamente essa ruptura que o materialismo
dialético de forma alguma pode aceitar, na medida em que se trata de um sutil
artificio para desacreditar a razão, por negar dogmaticamente esse valor aos
esforços desenvolvidos pela ciência no sentido de levar a uma melhor e mais
satisfatória compreensão dos dados.
Resumindo: a origem da
profunda oposição entre fenomenismo e materialismo dialético radica-se no entusiasmo
em que aquele propõe a percepção imediata, entendida como conhecimento único, absoluto e incomparável, enquanto
o segundo defende vigorosa-mente a existência de um conhecimento mediato, ou
seja, um conhecimento que, por ser baseado em dados perceptivos, não consegue
superá-los.
O leitor, entretanto,
poderia agora se perguntar: não encontramos na teoria leninista do reflexo uma
tese que termina por atribuir um valor absoluto aos dados perceptivos? Na
verdade, a absolutização desses dados não estaria implícita na célebre
afirmação de Materialismo e empiriocriticismo, segundo a qual as sensações copiam, fotografam, refletem a realidade
objetiva?
Para demonstrarmos que
qualificando as sensações de cópias
da realidade, Lênin não tinha por ideia lhes dar um caráter absoluto.
Parece-nos suficiente lembrar o desenvolvimento dado à teoria do reflexo em
seus Cadernos filosóficos.
Desenvolvimento que pode ser resumido em dois pontos:
1
- a extensão da teoria do reflexo das sensações ao conhecimento total; e
2
- a afirmação explícita do caráter ativo do reflexo.
O primeiro ponto é
particularmente interessante, porque exclui toda ideia de privilegiar as
sensações; ou seja: se o conhecimento total é o
reflexo da natureza pelo homem, isso significa que a capacidade de refletir
não é atribuída só aos dados perceptivos (nesse caso assumiriam um caráter
verdadeiramente absoluto), mas aos processos do conhecimento. que são algo de
bem mais complexo, de essencialmente fluido, na medida em que se articulam em
atos perceptivos e em elaborações teóricas que levam a novas observações.
O segundo ponto liga-se
diretamente ao primeiro: se a reflexão não pode ser atribuída só às percepções,
mas também aos processos do conhecimento em sua totalidade. Resulta que:
...
não é uma reflexão simples, imediata,
total, e sim o processo de uma série de abstrações, de formulações, da
formulação de conceitos, de leis etc., e esses conceitos, essas leis etc.,
compreendem também, de forma condicional, aproximativa, as leis universais da
natureza eternamente em movimento, em evolução.
As palavras de Lênin
acima citadas são tão claras que é absolutamente impossível confundir a teoria
leninista com urna teoria que exalte o caráter absoluto dos dados imediatos. Ao
contrário, o que deve ser sublinhado, é a importância do caráter processual do
conhecimento, que exclui, por definição, a obtenção de resultados definitivos,
mas que não exclui por isso a possibilidade de apoderar-se -- mesmo se
aproximativamente -- do mundo real.
Sem dúvida alguma, os
verbos copiar, fotografar e refletir
podem ser julgados inadequados, na medida em que se referem a fenômenos físicos
que não mostram o caráter processual que acabamos de invocar. Pode-se, no
entanto justificar o emprego, pensando que Lênin os adotou em outro sentido:
afim de sublinhar que as sensações, os conceitos etc., são rigorosamente algo
de diferente do mundo real, que procuramos captar por seu intermédio, da mesma
forma que as imagens fornecidas pelo espelho ou pelo aparelho fotográfico. São
qualquer coisa de nitidamente diferente dos objetos refletidos ou fotografados.
Com efeito, as
sensações, os conceitos etc., não constituem aquilo que nós conhecemos, como o
pretendiam os filósofos idealistas, mas os meios graças aos quais nós
conhecemos. É justamente por isso que podem ser constantemente aperfeiçoados,
melhorados, afinados, como temos o hábito de aperfeiçoar, de melhorar, de
afinar os nossos instrumentos de pesquisa.
O leitor,
evidentemente, poderá sentir-se mais ou menos satisfeito com a teoria do
conhecimento de Lênin, que aqui procuramos definir. O essencial é que não
podemos refutá-lo travestindo suas mais significativas teses.
II Já mencionamos no
parágrafo anterior a ruptura, que o fenomenismo insere entre os dados
perceptivos e as elaborações teóricas a partir deles, feitas pelas ciências; Mostramos
que essa ruptura constitui a base entre fenomenismo e materialismo dialético.
Quer-nos parecer oportuno agora analisar ligeiramente a maneira – diferente quanto
à aparência, mas semelhante quanto ao fundo -- como essa ruptura aparece entre
as tendências mais conhecidas da filosofia contemporânea. Queremos nos reportar
à filosofia de Husserl.
Sabe-se que Husserl
atribui urna função primeira, nos processos de conhecimento, aquilo que ele
chama de caudal heráclitiano. Nas instituições correntes, a expressão caudal heráclitiano serve para
diferenciar fenomenística, da concepção husserliana da experiência que ele
procurou reduzir a um conjunto de dados
perceptivos. Quanto à significação que atribui à expressão intuições concretas, basta sublinhar que
quer referir-se às percepções tomadas em toda sua pureza, deixando de lado o
que diz a fisiologia e a psicologia. Ele entende assim referir-se ao que nos
aporta a experiência de forma imediata e autêntica quando a liberamos de toda a
superestrutura com a qual costumamos revesti-la.
A tese central que,
feitas as distinções necessárias, aproxima a filosofia husserliana dessa
fenomenistica, é a seguinte: a caudal
heraclitiana das instituições concretas (pré-categoriais) precede qualquer
tipo de conceituação (ou o categorial) e constitui o fundamental. Desse ponto
de vista, os conhecimentos científicos assim definidos, obtidos graças à
aplicação de categorias cada vez mais abstratas, não podem deixar de
importunar, pois afastam-se do pré-categoria. A única verdadeira ciência será a
fenomenologia, que se situa acima de
toda conceituação consciente ou inconsciente.
Mas -- objeta o
materialismo dialético -- é verdade que as supostas intuições imediatas sejam desprovidas de qualquer conceituação? É verdade que, buscando em profun-didade nos
nossos conhecimentos concretos, chegamos a um concluir puro como postulado por Husserl? Não ocorre, ao contrario,
que esse concluir se nos aparenta
imediato só porque se vale de categorias simples, rudimentares, espontâneas mas
que por isso não são de natureza diferente das outras categorias? Se assim é --
e dificilmente isto poderá ser negado -- devemos concluir que todos os
conhecimentos, dos mais simples aos mais complexos, resultam de uma fusão
íntima entre os elementos pré-categoriais e os elementos categoriais
inseparáveis, salvo por um ato de abstração artificial.
É baseado nessa
abstração que o fenomenólogo se crê no direito de sustentar que os nossos
processos de conhecimento se fundem em última instância num único caudal heraclitiano de nossas intuições.
Se, pelo contrário, agirmos de maneira realista no tocante ao caráter
componente de todos os processos do conhecimento (que unem sempre o pré-categorial
ao categorial), devemos renunciar à presunção de que nosso conhecimento só
tenha uma base, e devemos consequentemente admitir que possam ser realmente
enriquecidos, seja por urna multiplicação de dados de observação, seja pelo
aprimoramento das categorias aplicadas ao caso. Nessa nova perspectiva,
antitética à do fenomenólogo, a ciência não aparece mais como de conhecimentos
primitivos travesti- dos mas como um autêntico aprofundamento desses
conhecimentos.
Se o materialismo
dialético fala de um primado das sensações (como afirmamos no parágrafo
precedente), não é por subestimar a contribuição das categorizações, mas
unicamente para sustentar -- corno afirmaram os sábios de todos os tempos --
que seria desonesto qualificar de científica
urna teoria negada por nossas observações em perpétua evolução. Uma coisa é
afirmar esse primado, e outra, bem diferente é afirmar a existência de um nível
do conhecimento totalmente desprovido de teorização.
Daí o peso essencial
sempre atribuído pelo materialismo dialético à reflexão critica quanto aos
conhecimentos científicos. O peso dado a essa reflexão não advém de algum cego
quanto a tais conhecimentos. Advém da constatação de que eles estão em
condições de nos mostrar concretamente, com particular clareza, tanto a
coordenação entre o categorial e o pré-categorial, como a natureza autenticamente
progressista da passagem do nível simples do conhecer a níveis mais elaborados.
Vista desta perspectiva, a reflexão critica sobre os conhecimentos científicos
ganha uma extrema importância, não só para a metodologia da ciência mas também
para a filosofia.
III
Os resultados atingidos
nos parágrafos precedentes podem se resumir essencialmente em duas partes:
1
- os dados perceptivos não são os objetos
conhecidos, mas constituem instrumentos indispensáveis do conhecer e, como
tais podem ser modificados, precisados, aperfeiçoados,
2
- não existe um concluir puro que preceda toda teoria, mas, qualquer que seja o
processo de conhecimento, apresentam-se sempre ao mesmo tempo intuições e
categorizações (mais ou menos elaboradas).
Estes resultados foram
obtidos através da polêmica contra o fenomenismo e contra a fenomenologia.
Passemos agora a pars construens da
teoria materialista-dialética do conhecimento.
Não nos devemos surpreender
após o que ate aqui procuramos desenvolver, de que essa pars construens parte de uma consideração dinâmica do nosso
conhecimento, ou seja, do exame daquilo que surge, não num só ato de
conhecimento, mas na passagem de um conhecimento a outro (mais uma vez
principalmente com relação ao campo do conhecimento científico).
Retornaremos mais
detalhadamente, nos próximos parágrafos, ao exame dessa dinâmica. Por ora,
podemos nos limitar a uma primeira constatação muito simples: a de que o
efetivo desenvolvimento histórico nos mostra mil casos nos quais se encontra,
de comum acordo, unia passagem mais ou menos súbita de um nível a outro de
nosso aprofundamento nos fenômenos estudados. É ocioso dar exemplos, tão
numerosos e tão conhecidos que são.
Não cabe aqui discutir,
caso por caso, em que consistem as supraditas mudanças de nível. Isso é na
realidade a missão específica dos historiadores da ciência, que devem, entre
outras coisas, evidenciar os fatores econômicos e sociais que originaram (ou
favoreceram) tais mudanças. Sem querer negar a importância dessa história externa da ciência,
paralelamente existe outra, uma história
interna, relativa dinâmica das teorias científicas, pela qual é possível
afirmar que uma teoria domina outras,
resolvendo os problemas que essa deixou em aberto e nos fazendo encontrar a
natureza profunda da dificuldade que havia bloqueado a pesquisa.
Uma vez consciente
dessa incontestável situação, o materialista dialético afirma que ele não pode
desenvolver-se sem que seja postulada uma existência irredutível ao sujeito,
realidade que seria, por assim dizer, a metade do processo do conhecimento. Ou
seja, o materialismo dialético evidencia que é impossível dar um sentido exato
a expressões como aperfeiçoamento ou piora de nossos conhecimentos, se não
admitirmos a existência de objetos do
conhecimento, independente da atividade pela qual sejam penetrados.
Como poderíamos falar
de um contato quanto menor tanto melhor com esses objetos, sendo simplesmente
criações nossas? A definição mesma do termo criar
implica em que aquele que cria alguma coisa possui sempre e completamente o
fruto de sua atividade criadora e, por isso, a sua maneira de a possuir não
pode ser nem melhorada nem piorada.
Como sabemos, a tese criacionista acima apresentada é
sustentada, no plano epistemo-lógico, pelos convencionalistas. Mas -- objeta
agora o materialista dialético -- como é possível falar com razão da
superioridade de uma teoria quanto a outra (no que concerne a um mesmo grupo de
fenômenos), se todas as teorias não passam de puras convenções? Sabemos bem
que, se passamos do plano da ciência ao das elucubrações puras (estas sim,
baseadas unicamente em convenções), podemos certamente dizer que urna cogitação
é igual ou diferente da outra, mas não que seja inferior ou superior.
Demos deliberadamente à
nossa argumentação o caráter de uma análise linguística e, mais exatamente, o
caráter de uma análise da língua comum. Não tanto em concessão a conhecida
metodologia de urna das escolas filosóficas inglesas mais recentes e mais célebres.
Porém mais para permitir ao leitor a possibilidade de uma reflexão sem
preconceitos acerca de um dos mais sólidos pilares (pelo menos no nosso
entender), pelo qual o materialismo dialético sustenta a sua própria concepção
da realidade.
Se o metafísico pode
zombar desse tipo de argumentação, parece-nos que o empirista sincero também
tem o mesmo direito. Na realidade, ele parece bem mais dogmático entretendo
ilusões quanto a possibilidade de restringir radicalmente o patrimônio das
experiências concretas acumuladas pela língua comum ao longo de milhares de
anos.
As escolas filosóficas
que têm negado a existência de um mundo objetivo independente de nós,
conseguiram sustentar essa tese na medida em que se limitaram a examinar os
sistemas de nossos conhecimentos em sua estrutura estática sem a menor
referência ao desenvolvimento histórico efetivo e concreto desses
conhecimentos.
O materialista
dialético rejeita totalmente esse tipo de análise, por mais sutil que seja, ou,
pelo menos, o considera unilateral e assim insuficiente; sua firme convicção é
de que ele deve ser completado por uma análise tão rigorosa quanto essa,
daquilo que ocorre quando se passa de um sistema de conhecimento a outro. Caso
contrário, pensa o materialista, um exame aprofundado do saber científico leva à
conclusão de que o processo do conhecimento, em sua dialética histórica, nos
leva a qualquer coisa não criada pelo espirito humano, mas de sofrida
aproximação graças a aproximações que pouco a pouco se tornam satisfatórias.
Neste ponto da
argumentação, qualquer um pode opor ao materialismo dialético a seguinte
objeção: é bem verdade que na realidade histórica existem muitos exemplos de
passagem de uma teoria menos válida para uma mais válida, mas eles nos provam
tão-somente que a segunda teoria é superior
à primeira na medida em que permite, quer ordenar de forma sistemática todos os
dados perceptivos explicados pela
primeira, quer acrescentar um outro dado. E poder-se-á contrapor ainda que
evidentemente um tal critério de superioridade não tem nada a ver,
principalmente se levarmos conta que os dados da observação dependem
inteiramente do observador.
Para respondermos a
essa objeção, observaremos que os dados da observação -- como revelamos já no
primeiro parágrafo -- não são, rigorosamente, objetos de conhecimento, mas
instrumentos do conhecer, e que os instrumentos são qualquer coisa de
subjetivo. A subjetividade dos
instrumentos não pode ser atribuída, senão por um grave equívoco, aos objetos,
mesmo que esses instrumentos, ou seja os dados da observação, tenham por função
nos aproximar do conhecimento.
Reflitamos, por
exemplo, sobre o que ocorre ao curso da execução de urna experiência: se é
incontestável que devemos elaborar o programa, estabelecendo os dispositivos
conceituais e técnicos para questionar a natureza (dispositivos que podem ser
classificados como subjetivos na medida que são construídos por nós), é no
entanto verdade que não nos é dado determinar a resposta que a experiência nos
fornecerá. Urna coisa é reconhecer a relatividade dessa resposta aos meios de
observação; uma outra é afirmar que os dados dessa resposta resultarão
exclusivamente da atividade do observador.
Para responder a objeção
explicitada pouco acima, outra consideração ainda mais importante se impõe.
Trata-se de aceitar que a superioridade
duma nova teoria em relação às precedentes não implica sempre, e
exclusivamente, que ela consiga ordenar de forma sistemática todos os dados explicados pelas teorias anteriores e
qualquer outro dado a mais. Com frequência tal superioridade se revela também
na maneira como se articulam os dados examinados pela nova teoria, ou seja, na
transformação que ela acrescenta aos aspectos fundamentais de sua
interpretação.
Por exemplo, procura-se
estabelecer um cotejo critico entre a teoria limitada da relatividade e a
teoria precedente de Lorentz. É notório que, a principio, a força esclarecedora
da teoria de Einstein realmente não era maior que a de Lorentz. Desse ponto de
vista, sua superioridade efetiva não se revelou em sequência como imediata
pesquisa científica. Entretanto, comparadas as duas teorias, é possível
estabelecer que já em 1905 era nítida a preeminência da concepção de Einstein.
Fato é que, para explicar os novos dados resultantes da
observação (por exemplo, a famosa experiência de Michelson), Einstein não
recorreu a nenhuma hipótese ad hoc
mais ou menos artificial, mas a uma renovação radical de conceitos científicos
dos mais profundos tais como espaço e tempo. Ou seja: a superioridade da teoria
de Einstein é uma superioridade que surpreende não só pelo aspecto técnico, mas
também, pelo aspecto filosófico-epistemologico.
Uma vez estabelecido
que o critério de superioridade de uma teoria em relação a outra não se situa
no plano da pura subjetividade, é necessário reconhecer, segundo o materialismo
dialético, que a dialética histórica da ciência, ou seja a análise do processo
efetivo da formação dessas teorias, em seu aperfeiçoamento gradual, nos
demonstra de forma incontestável que a ciência progride efetivamente em direção
a objetos distintos de nós. O mundo desses objetos constitui -- ao lado do
sujeito -- o segundo grande parágrafo do processo do conhecimento: trata-se de
um protagonismo intencionalmente esquecido pela filosofia idealista, que por
essa razão não consegue achar a natureza autêntica do conhecimento.
IV
Nos primeiros
parágrafos, mostramos que um exame escrupuloso e sem preconceitos do processo
do conhecimento -- considerado em sua concretude -- não nos propõe nenhum ponto
de origem do conhecimento que possa ser qualificado de absoluto ou de
definitivo. Não podem ser nem os dados perceptivos (atômicos), de que falam os
fenomenistas, nem a caudal heraclitiana
das intuições a que os fenomenólogos aludem.
No terceiro parágrafo,
ao contrário, consideramos o desenvolvimento da ciência, procurando demonstrar
que a passagem -- passível de constatação histórica -- de uma teoria a outra,
quando esta se mostra superior primeira, não pode ser explicada a menos que se
admita a existência de um mundo objetivo irredutível ao sujeito: mundo objetivo
que o pesquisador se esforça por encontrar aproximando-se-lhe pouco a pouco,
seja recolhendo sempre novos dados empíricos, seja transformando os conceitos
fundamentais das teorias.
Reexaminaremos mais
adiante este último tema, para ilustrar a posição característica em relação a
outras, sustentada pelo materialismo dialético. Resumamos assim essa posição:
se é verdade que a ciência progride efetivamente em direção aos objetos,
independente de nós, não é menos verdade, por conseguinte, que ela não consegue
nunca nos oferecer um conhecimento absoluto. Ou seja, trata-se de uma posição
que nitidamente nega o caráter absoluto dos resultados dos processos do
conhecimento, assim como nega os presumíveis pontos de partida de tais processos.
O método mais adequado
para ilustrar essa posição parece ser o seguinte: submeter a uma análise atenta
os aspectos essenciais do materialismo mecanicista que, justamente por serem
antitéticos aos do materialismo dialético, esclarecem a significação autêntica
deste. Disso ressalta evidente e clara a singular analogia (à qual já nos
referimos no primeiro parágrafo) existente entre o fenomenismo e o materialismo
mecanicista, apesar de suas posições aparentemente divergentes.
É notório que os grandes
pensadores do século XVII, a quem devemos o surgimento da ciência moderna,
anunciaram abertamente a convicção de que o homem estaria em condições de
atingir um conhecimento completo -- intensivamente
semelhante ao conhecimento divino, afirmou Galileu --, pelo menos nos setores
limitados ao mundo. Ora, a primeira consequência inaceitável dessa tese é a
seguinte: o único tipo de ampliação do nosso conhecimento deveria se dar por
acrescentamento, ao setor já conhecido do inundo, de outros setores conhecidos
de uma maneira tão completa quanto a daqueles. Mas é correto reduzir o processo de conhecimento a uma simples adição de verdades? Afirmamos que não: o
simples exame da realidade concreta dos processos do conhecimento -- em
particular o progresso da ciência -- mostra-se sem dúvida alguma muito mais
rico e mais articulado.
Isso posto, parece
oportuno examinar quais as motivações apresentadas pelos pensadores do século
XVII para justificar a tese anteriormente definida. Será fácil demonstrar,
através de uma análise minuciosa das obras maiores da época, que, para
justificarem a tese em questão, eles apelaram -- conscientemente ou não -- para
uma hipótese metafísica quanto à estrutura do mundo : ou seja, para a hipótese
de que ele seja constituído de elementos
últimos -- por exemplo, átomos -- tendo propriedades primeiras (comparadas
em geral como propriedades da geometria e da mecânica) e que tudo o que
acontece no mundo é explicável a partir de tais elementos últimos e de suas
propriedades autênticas.
Que uma hipótese
metafísica desse jaez deve levar à interpretação da ciência apresentada acima,
é evidente: admitindo que um processo de conhecimento nos leva a encontrar os
elementos últimos e as suas propriedades, os resultados de tal processo não
podem deixar de ser uma verdade absoluta (e aqueles filósofos estavam
convencidos de que os processos científicos, mesmo que limitados a setores
circunscritos da realidade, apoiariam a tese em questão).
Dúvidas certamente
poderão surgir -- como se pensava -- sobre pontos particulares de teorias
construídas para explicar tal ou tal
setor da experiência ou, principalmente, para fazer derivar propriedades
secundárias (sons, cores etc.) das propriedades primeiras; mas tais dúvidas não
estarão jamais em condições de comprometer a interpretação da verdadeira missão da ciência.
A história da ciência
nos ensina que a concepção aqui exposta -- que é o fulcro do mecanicismo --
continua a ser apresentada, dois séculos após, por físicos dos mais
importantes, apesar da variedade de teorias elaboradas para explicar os dados
fornecidos pouco a pouco pelas experiências. Existem naturalmente profundas divergências
quanto à natureza dos elementos últimos do real, assim como
quanto às propriedades qualificadas de primeiras
permanece inalterada, no entanto, a ideia de cientificidade, ligada justamente
-- como já expusemos -- à hipótese metafisica da existência de tais elementos e
de tais propriedades.
É oportuno frisar que
essa hipótese se revelou extremamente útil. Especialmente no início da
revolução científica ela conseguiu infundir nos pesquisadores daquela época uma
forte confiança no seu trabalho apesar do aspecto muito pouco convincente dos
resultados penosamente conseguidos. Todavia, o materialismo dialético mostra
que, ao lado desse efeito indubitavelmente positivo, a hipótese em questão
tinha outro efeito perigosamente negativo: ela revelava de fato nos elementos
últimos do real -- e nas suas qualidades primeiras -- uma barreira absoluta que
a pesquisa cientifica nunca conseguiu vencer.
Suponhamos, por
exemplo, que nós aceitemos a tese segundo a qual os elementos últimos da
realidade são constituídos de partículas (ou átomos). Que significação teria
isso no sentido de fazer a nossa pesquisa avançar? Considerando que o próprio
conceito de átomos exclui qualquer
possibilidade de uma pesquisa de sua natureza profunda.
Porém no fim do século
XIX e no início do atual, o desenvolvimento da ciência demonstrou, com base em
experiências incontestáveis, que hipotéticos átomos não correspondem bem à
semântica do termo (átomo = sem divisão), pois revelaram-se como sistemas
complexos de elementos ainda menores (ou seja, de menor massa): elétrons,
prótons etc. Está claro que essa descoberta inflige um rude golpe ao
mecanicismo clássico e marca o início de uma nova fase da física.
Observando bem, essa mudança
não implicou ainda no abandono definitivo da concepção mecanicista, mas somente
em sua transformação radical. Foi possível ainda salvar o núcleo essencial,
atribuindo às novas e ainda menores
partículas do átomo a função de elementos
últimos da realidade que se atribuíam antes aos átomos.
Quem sentiu que a
revolução era bem mais profunda foi Lênin, o qual, sem ser um cientista,
descobriu -- antes e melhor que muitos dos sábios de sua época -- a
significação da reviravolta ocorrida na física. É fato bem conhecido: ele
formulou a interpretação dessa virada com a famosa tese de o elétron ser
inesgotável., tese que evidentemente não pode ser tomada ao pé da letra, mas
que enuncia numa forma imaginada a necessidade de abandonar a ideia mesma de elemento último da realidade.
Não nos compete expor
as numerosas consequências que puderam ser deduzidas no plano cientifico, pela revolução de que falamos. Entretanto
parece-nos, indispensável sublinhar algumas consequências que se podem tirar --
e realmente o foram -- no plano filosófico. Essencialmente, duas consequências:
1
- a necessidade de abandonar a ideia de que existe uma barreira intransponível
para a pesquisa científica ; e
2
- a necessidade de abandonar a ideia de que existe um fundamento absoluto
(inabalável) dos conhecimentos físicos.
Essa segunda ideia foi
pelos ares já nos últimos dez anos do século XIX, -- após o trabalho critico
desenvolvido por filósofos, lógicos, matemáticos, epistemólogos etc., numa
verdadeira guinada no campo da física, dando-lhe sua plena e inteira validade.
Todavia, nessa altura
emergiu a seguinte questão:
eliminada
a convicção, que remonta aos criadores da ciência do século XVII, de que o
conhecimento científico está em condições de alcançar a verdade absoluta, qual
o valor autêntico que se lhe pode atribuir ?
Este problema foi
claramente enunciado por Engels: o de conseguir conciliar o caráter não
absoluto com a validade objetiva de nosso conhecimento. Tendo em conta o que
foi dito antes com respeito à necessidade de abandonar a noção mesma de elemento último, podemos reformulá-lo
assim:
Se
retiramos à ciência o ubi consistam,
fundamento constitui do pelo conhecimento dos elementos últimos da realidade, qual outro fundamento lhe podemos
dar ?
É possível se
surpreender face a tal situação, havendo acreditado em diferentes concepções
filosóficas, que reduziram as teorias científicas a simples construções convencionais,
construções às quais não é justo atribuir nenhum valor, a não ser que tenham
resultado num sucesso prático efetivo, e dentro dos limites de tal sucesso. Mas
sabe-se que, do convencionalismo ao subjetivismo, a passagem é muito curta, e
em verdade ela foi vencida por vários epistemólogos, bem como por cientistas no
inicio do século.
Como observa Lênin com
justeza, esses cientistas venceram essa passagem como filósofos, e não como
cientistas. De fato, o cientista militante, quando faz uma pesquisa séria, está
sempre convencido de se encontrar face a uma realidade independente de si: realidade
a descobrir, a estudar sob aspectos sempre novos, a ser descrita em termos cada
vez mais exatos. Essa convicção não surpreende quando se considera que a
experiência vivida por ele como pesquisador é principalmente a experiência da
dinâmica da ciência, e, por outro lado, lembramos (reportando-nos ao que
explanamos no parágrafo terceiro) que compete justamente à reflexão crítica
sobre essa dinâmica fornecer-nos argumentos mais válidos em favor de uma
resposta realista ao problema do conhecimento.
* * * * *
Em seguida Parte II
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