Elias
Cornell – (1916-2008)
Historiador marxista sueco, foi Professor catedrático de História da
Arquitetura e do Urbanismo no Instituto Tecnológico Chalmers – Gotemburgo. De sua vasta produção literária destacamos: História da Arquitetura (1949); A História da arquitetura das grandes
exposições internacionais (1952): As
técnicas da construção, métodos e ideias através dos tempos (1970); A arquitetura da relação cidade campo
(1979); As raízes da fúria demolidora
(1984); e O espaço na arquitetura,
história e atualidade (1996).
Tradução Frank Svensson
A
cidade despedaçada
Dentro dos prédios
construídos segundo os princípios do funcionalismo e da eficiência, as pessoas
podiam acomodar-se conforme ou contrariamente aos propósitos de arquitetos e de
engenheiros.
Planta esquemática de
um colchos, c. 1930.
Nas comunidades
ampliadas e construídas segundo os mesmos princípios não havia escolha. O
modelo transformou-se num ditado do modo de vida.
Ao dividir o espaço
interno de habitações, fábricas, teatros e ginásios de esporte, segundo
distintas finalidades, devia-se fazer o mesmo com as diferentes partes da
cidade. Mais ou menos assim pensavam os profissionais e os políticos. Era
simples fazê-lo e era fácil eleger a zonificação como um princípio de
diferenciação da construção social. Na realidade, era somente uma inevitável consequência
da necessidade, que agora era aceita como um mérito da mesma.
Assim, as grandes e as
pequenas comunidades continuaram a crescer com as suas partes, mas não partes
completas como em fabris após distritos fabris, bem como áreas hospitalares,
universitárias, de recreação, centros de cultura, centros administrativos.
Enquanto seus predecessores couberam num mesmo centro de cidade, num mesmo
terreno ou numa mesma quadra, as novas construções passaram a ocupar
territórios inteiros. Muitas partes foram construídas tão grandes como o centro
da própria cidade de onde saíram. Algumas instituições podiam ser até maiores,
como os aeroportos com seus muitos terminais.
As cidades maiores
resultaram mais estranhas e mais cheias de contradições e de conflitos. Mesmo
se concordamos em que certas partes ganharam em serem desenvolvidas de per se,
o seu isolamento atingia a totalidade e assim finalmente as partes também.
Muitos locais de
trabalho perderam completamente o relacionamento com a comunidade da qual
faziam parte, não só as oficinas e as fábricas da vida produtiva, mas também os
prédios administrativos, as instituições de ensino e pesquisa, bem como as de
saúde. Cada uma desenvolvia uma espécie de via própria em curiosa contradição
com o restante da comunidade. A cidade passou a ser um mundo externo sem
interesse, como que um mal necessário.
Vista do interior do
Museu Guggenheim era Nora York, de Frank Lloyd Wright, em 1953, segundo projeto
de 1943.
A vida passou a ter um
andamento dilacerado e dilacerante através de dias e semanas, dividida em
decorrência de momentos isolados nos quais a eficiência e o anseio contínuo
quase desapareceram em razão da crescente ineficiência do todo. Cada momento
foi esvaziado de sua vitalidade ao ser isolado dos demais, Os bairros
habitacionais foram desprovidos de trabalho. Residir num lugar sem trabalho
torna-se necessariamente algo vazio e desumano.
As famílias são levadas
a recolher-se à sua vida privada, pois não há nada mais que lhes diga respeito.
Crianças, velhos, doentes, donas-de-casa ficam sentados com as mãos cheias de
padrão de vida mas com a alma carente de experiências. A vida apresenta-se
ainda mais vazia do que ao reunir velhos e doentes. Privamos uns aos outros de
vários dos lados essenciais da vida quando não cuidamos dos nossos concidadãos
e os entregamos aos cuidados de outrem.
Da pura e simples
moradia muitos vão todos os dias para um local exclusivamente de trabalho, no
qual o planejamento racional ordena que seremos mais efetivos se não fizermos
outra coisa do que trabalhar.
Vez por outra vamos
fazer compras em estabelecimentos onde temos de nos submeter a exigências racionais
ao consumidor que não deve pensar em outra coisa do que em efetivo consumo de
coisas úteis e inúteis umas pelas outras.
Proposta de cidade
mercantil, de Ludvig Hilberseimer, 1930.
Entre as paradas de
nossa trajetória há duas especialmente curiosas: as especificas instituições de
cultura e as prisões. Numa somos obrigados a aceitar mais do que aguentamos, na
outra somos despojados de mais do que podemos suportar. A ambos extremos apontamos
através de meios tecnicamente planejados, utilizando dois meios com os quais a
sociedade não despende suficientes recursos.
Especialmente estranhos
sio os trechos da vida usados para trafegar entre as paradas. As comunicações
são tidas como soluções racionais dos problemas dos assentamentos humanos, mas
isso é uma meia-verdade, com toda a falsidade que uma meia-verdade possa ter.
Na realidade, os assentamentos existem para servir à eficiência de nossos atos,
em vez de as comunicações servirem aos assentamentos.
Muitos imaginam que
caímos nesse modo de vida às avessas por causa de um desastre ou algo imprevisto;
outros opinam ser questão de uma espécie de necessidades racionais. Tudo isso é
fatalismo. Trata-se, ao contrário, do fato de engenheiros, arquitetos e
empresários, durante décadas, insistirem em programar a nossa despedaçada
existência. Para a totalidade foi Le Corbusier que nos deu o primeiro aviso com
seu grande Plan Voisin, em 1925. Não foi o único. Um projeto do arquiteto
alemão Ludwig Hilberseimer mostra o quão conscientemente trabalhadas eram as ideias
já nos anos 1920.
Hilberseimer
desenvolveu propostas de estabelecimentos onde todas as ideias c hábitos de
muitas décadas de arquitetura comercial seriam resumidas num bairro a ser
extrapolado por toda uma cidade.
Com sua proposta,
Hilberseimer queria mostrar como se devia transformar o centro de uma cidade
num aparelho de distribuição da sociedade de consumo. Pode parecer errado, mas Hilberseimer
mobilizou toda a sua capacidade criativa para obter a extremada uniformidade
que constitui a interpretação consequente da exclusiva e preestabelecida
finalidade: eficiência e produção em larga escala, assambarcando totalmente o
comércio a varejo.
O projeto de
Hilberseimer é uma advertência ou um sintoma, mais do que um modelo a ser
seguido. Projetos tão consequentes ninguém encomendava. Mas os princípios têm
sido empregados, variando de tamanho, nos centros urbanos onde empresários e
autoridades decidiram substituir o antigo pelo novo. Essa espécie de total
comercialização de partes inteiras da cidade com a ajuda de eficiente
arquitetura não ocorreu só para partes novas ou onde as antigas edificações
foram destruídas durante a Segunda Grande Guerra.
Fomos testemunhas,
também, de como a periferia entumecida da cidade passa a pressionar o antigo
centro, exigindo que algo construído para a vida plena de alguns milhares de
habitantes tem de passar a servir a centenas de milhares.
Então a construção
social culmina numa violenta e trágica crise cultural. Assim, empresários,
empreiteiros, políticos e planejadores em grau variado são tomados de incrível
ambição de construir o novo. Se nenhuma força contrária se ergue para impor
juízo, as seculares tradições de cultura podem ser substituídas por nada em dez
anos de especulação e ignorância, de presunçoso desprezo por tradições. Diga-se
desprezo pelo humano.
É questão tanto de
arquitetura como de urbanismo. As dificuldades multiplicaram-se. Já a
arquitetura construída fora dos limites da cidade era inadequada. Quando as
novas forças começaram a inovar, construindo no centro da cidade, foram poucos
os que acharam que podia ser de outra forma. Na maioria dos casos, os
políticos, as autoridades, os profissionais e os financiadores atropelam o
centro da cidade justamente com a mesma arquitetura radicalista que já pode
mostrar na periferia as suas deficiências.
Ainda pior será o passo
seguinte. Os empresários apoderam-se de um território no campo fora da cidade e
aí constroem estabelecimentos comerciais de grande porte com desérticos
estacionamentos de asfalto. O planejamento anárquico do comércio de varejo
atinge um estágio burlesco. Antigas e recentes áreas habitacionais são privadas
de seu comércio de vizinhança, e uma parte da população, a que não possui
automóvel, fica praticamente impedida de fazer compras. Ao mesmo tempo as lojas
do centro da cidade são esvaziadas pela concorrência dos grandes centros
comerciais fora da mesma. Algo que apressa ainda mais a demolição dos antigos
prédios.
Leigos, profissionais e
dirigentes em muitos países já reconheceram a necessidade de um enfoque
totalmente distinto de todas as questões de planejamento. De planos urbanos
passaram para planos regionais e planos de âmbito nacional. O objetivo só tem
sido parcialmente obtido. Numa sociedade que no seu mais íntimo só reconhece a
economia de empresa, as distintas partes têm enorme dificuldade de entender
situações e circunstâncias maiores. Por mais bem-intencionados e abrangentes
que sejam os planos, acabam sempre deturpados, postos sob o comando da
imediatista economia de empresa com suas ideias de lucro fácil e imediato.
Assim culmina a caótica
dissolução de cidade e campo e é substituída por vazias quadras comerciais com
vazios estacionamentos, ao mesmo tempo em que a área rural diminui e é poluída
por tempos imprevisíveis. Cada passo do caminho é anunciado como necessário a
uma economia racional, e cada prédio é caracterizado como arquitetura racional
até o ponto de perder sentido.
Trata-se
de uma escolha global
Será que os habitantes do nosso planeta irão
preferir a destruição a longo prazo ou a renovação de sua construção social?
Para o povo em geral parece fácil escolher. A dissolução de cidade e campo é
uma necessidade histórica. Não podemos escolher ou cidade ou campo por não se tratarem
de coisas distintas. E a industrialização é necessária para desenvolver a vida
de quatro bilhões de pessoas.
O projeto de Marcel Breuer para Grand Central City em Nova York; c. 1967.
Escolhendo renovação
poderemos fazer de cidade e campo um dos maiores avanços da história da
humanidade, mas em países demais e em regiões demais a maioria dos
empreendedores e construtores tem seguido a estrada larga, onde a construção
social cresce por meio de suas partes. Iniciativas abrangentes são mais para
nivelar a estrada. Bem diante de nossos olhos avança uma dupla destruição por
sobre todos os assentamentos humanos, por sobre todas as áreas rurais e
naturais que possuímos.
O que fora cidade e o
que fora a sua mais próxima área rural é destruído pela super-utilização.
Aquilo que fora área rural um pouco mais longe da cidade é destruído por
subutilização. As cidades grandes ficam cada vez mais parecidas umas com as
outras em seus distintos países e com suas distintas origens: Nova York, São
Paulo, Tokyo, Sidney, Nova Delhi, Seul. Também cidades com planejamento mais
antigo são inseridas na mesma tendência: Londres, Paris, Estocolmo, Milão,
Cairo, México. Cidades nas quais os dirigentes dominam a política do uso do
solo não diferem muito: Leningrado, Moscou.
Nem mesmo sinais
evidentes de catástrofe têm levado a alguma decisão: só os mais pobres
permanecem em Nova York, o povo não consegue mais andar nas ruas de Tóquio.
Apesar disso, os empreendedores em Nova York, nos últimos anos, encomendam
arranha-céus maiores do que nunca.
Funcionalistas de
renome internacional ganharam medalhas de ouro de seus próprios colegas, ainda
nos anos 1960, ao exibirem desenhos e maquetes sobre como ajudar as forças de
especulação a adensar Nova York algumas vezes mais. A mesma arbitrariedade que destrói
a paisagem e com isso a própria população de enormes partes do mundo, uma
população que se destina às cidades, aumentando ainda mais as dificuldades já
lá existentes.
As pessoas não fogem
para lá atraídas pelos encantos da cidade, como no século XIX e no início do
nosso século. Fogem para lá por não terem para onde ir. Fora de inúmeras das
cidades grandes, abancam-se formando favelas maiores e piores que as mais
lamentáveis de Londres no século XIX.
A grande criatividade
artística vez por outra é solicitada. Paira sobre as cabeças de altos e baixos
e tenta jogar o papel de altiva detentora das soluções de todos os problemas da
construção social. Mas seus recursos são limitados. As personalidades que a
lideram pairam como os últimos individualistas de uma série de cinco séculos na
qual Brunelleschi e Filarete foram os primeiros.
Vista de Brasília, 1998.
Brasília, a
extraordinária e monumental capital do Brasil, foi construída com promissora
confiança nos arquitetos-mestres da nação brasileira: Lúcio Costa e Oscar
Niemeyer. A contradição entre a
brilhante obra de arquitetura e a vida social tornou-se grande demais. Já em
1946, muito antes de Niemeyer configurar seus prédios em Brasília, ele escreveu
palavras que davam o que pensar a respeito de seu trabalho:
A arquitetura deve ser uma
expressão do espírito das forças técnicas e sociais dominantes de uma época.
Quando essas forças não estão em equilíbrio, surge um conflito em prejuízo do
conteúdo e da totalidade da obra. Somente considerando isso conseguimos
entender o caráter dos planos e dos desenhos apresentados. Gostaria muito de
poder apresentar um resultado mais realista. Seria o tipo de trabalho que não reflete
somente refinamento c satisfação, mas também uma cooperação direta entre o
arquiteto e a sociedade no seu todo.
Por mais difícil que
tenha sido para o reconhecido gênio realizar algo, por mais forte que tenha
sido a sua consciência social, assim descreveu Brasília, em 1960, já a bom
caminho de sua concretização:
É lamentável perceber como as
condições sociais reinantes entraram em contradição com o espírito do Plano
Piloto causando problemas que não é possível resolver com esquadro e desenho, e
muito menos - como querem alguns ingênuos - apelando para uma arquitetura
social, algo que não leva a lugar nenhum a não ser em bases socialistas.
Apesar de o trabalho de
Mayer, Novickis e Le Corbusier com Chandigarh no Punjab ter sido decantado por
milhares de colegas, a cidade deles também entrou em contradição com a vida
naquele estado da India.
É difícil entender como
as autoridades puderam convidar esses americanos e esse franco-suíço. Talvez
por uma reputação tardia das possibilidades do funcionalismo e do cubismo
permitirem um planejamento futurista.
A Índia acabara de
livrar-se da supremacia britânica com seu classicismo europeu. Constituía para
a população do país somente um símbolo de opressão imperialista, tendo sido
expulsos aqueles que se valeram do mesmo. Ao invés de construir uma cidade que
pelo menos visasse à equidade social, os dirigentes deram aos arquitetos a
incumbência de substituir a sociedade de castas por uma sociedade de classes
capitalista. O funcionalismo criou, com seu cubismo, símbolos para um novo
imperialismo. A nova independência nacional não teve como se expressar. Um ar
de desenraigado cosmopolitismo é que viria a brilhar. Nem um sinal de liberdade
popular. Um arquiteto hindu, que não participou do coro mundial de arquitetos,
escreveu:
Há mais de 14 tipos de casas em
Chandigarh para gente com diferentes níveis de renda. As áreas são bem
planejadas se vistas à luz de determinadas necessidades dos habitantes. A
principal e mais significativa necessidade não foi considerada. O que quero
dizer é que não há a possibilidade de as pessoas dos distintos níveis de renda
se relacionarem entre si. Gente de baixa renda não tem coragem de frequentar as
áreas de gente de alta renda. Essa maneira de planejar implica pressão
psicológica e social sobre seres humanos. Não há nenhuma interação de duas
áreas. Não reina a liberdade social e nenhuma expectativa de vida humana. Em
decorrência passam a dominar as tensões emocionais. Tais consequências sempre
ocorrem onde não há sinais de visão global.
Mesmo havendo fortes tendências de considerar
totalidades maiores do que as partes dilacerantes que caracterizam a maioria
das cidades, Brasília e Chandigarh não insinuam querer resolver as contradições
capitais da Construção social, aquelas entre cidade e campo bem como entre
essas e o industrialismo. Apesar de seus autores buscarem algo essencialmente
mais elevado e maior do que os construtores de partes da cidade, sua obra
cresce sem raízes na sociedade para a qual aceitaram planejar. Decorre daí que
a sociedade tem de atender aos propósitos do arquiteto, quando na realidade era
o arquiteto que devia servir à sociedade. As relações não ficam melhores se
constatarmos que a sociedade atende aos propósitos da arte. Nos ouvidos do povo
tal tipo de justificativa soa como vazia, senão como um prepotente desafio.
Chandigarh, 1975.
No trabalho dos
utopistas radicais há muitas contradições difíceis. Muitas estão ligadas ao
enfoque do fator tempo. Creem ser dinâmicos e criar construções sociais
dinâmicas, mas seu trabalho na realidade é mais estático do que qualquer
construção anterior.
Seu trabalho não pode
considerar nem o passado nem o futuro. O mais curioso é que seu trabalho como
construção palpável não considera nem o seu próprio tempo. Os profissionais
desenvolveram sua técnica e economia afastadas de qualquer posicionamento vivo
para com o processo de construção. Fazem desenhos tão condicionantes que o
trabalho de construção perde o sentido.
Agora transferiram seu
fantástico enfoque também para os assentamentos já existentes. Por isso existem
sobremodo apenas duas maneiras de tratar casas já existentes: derrubá-las ou
declara-las objeto de preservação por interesse histórico. Só nos últimos anos
os construtores começaram a reconhecer o quanto perderam por haver esquecido a
arte de renovar reconstruindo.
Proposta de cantear com tapumes uma via expressa em Boston. Desenho de Spreiregen para The American Institute of Architects, c. 1965.
A falsa noção de que toda massa edilícia em princípio é intransigente tem levado a estranhas consequências em certos círculos de especialistas. Uma proposta de reconstruir a cidade de Boston evidencia traços absurdos. Alguns comissionados do American Institute of Architects não conseguiram pôr-se de acordo com certos conjuntos de prédios que denominavam de áreas cinzentas em razão de seu caráter indefinido. Não propuseram demolição nem preservação considerando essas massas cinzentas da cidade em razão de seu caráter indefinido. Tinham de sulcá-las com vias de tráfego, e para proteger-se a si e a outros corno eles, o grupo de arquitetos e o filósofo classista que tinham como chefe decidiram construir tapumes ao longo das vias. A si mesmos e a seus irmãos de classe os que tomaram tal iniciativa chamam de nós, e para esses nós formularam exigências quanto à imagem da cidade ao longo do percurso do entorno para o centro da cidade.
Proposta de cantear com tapumes uma via expressa em Boston. Desenho de Spreiregen para The American Institute of Architects, c. 1965.
A falsa noção de que toda massa edilícia em princípio é intransigente tem levado a estranhas consequências em certos círculos de especialistas. Uma proposta de reconstruir a cidade de Boston evidencia traços absurdos. Alguns comissionados do American Institute of Architects não conseguiram pôr-se de acordo com certos conjuntos de prédios que denominavam de áreas cinzentas em razão de seu caráter indefinido. Não propuseram demolição nem preservação considerando essas massas cinzentas da cidade em razão de seu caráter indefinido. Tinham de sulcá-las com vias de tráfego, e para proteger-se a si e a outros corno eles, o grupo de arquitetos e o filósofo classista que tinham como chefe decidiram construir tapumes ao longo das vias. A si mesmos e a seus irmãos de classe os que tomaram tal iniciativa chamam de nós, e para esses nós formularam exigências quanto à imagem da cidade ao longo do percurso do entorno para o centro da cidade.
Os autores desse
projeto foram ao mesmo tempo ingênuos e cínicos e totalmente alheios ao
problema da totalidade. As dificuldades são literalmente amputadas, de forma
mais radical do que ousaria qualquer utopista pelo fato de designarem
determinado segmento social corno abominável valendo-se do urbanismo.
Se a proposta desse
grupo de arquitetos houvesse sido aprovada, os cidadãos ricos de Boston
poderiam hoje trafegar tão bem como os habitantes ricos de Manchester quatro
gerações antes ou como escreveu Engels:
O melhor da questão é que esses
ricos aristocratas financeiros podem acessar à cidade pelo caminho mais rápido,
atravessando os bairros operários, sem sequer perceber o quanto estão próximos
à maior miséria tanto à esquerda como à direita do caminho.
A arbitrariedade
durante o liberalismo na Inglaterra seria elevada à condição de princípio
artístico nos Estados Unidos durante o capitalismo tardio.
Será que as forças, as ideias
e as tendências de oposição não têm influência, não conseguem fazer-se valer?
Apesar de sua força ser pequena no mundo ocidental, não são totalmente sem
efeito. Que têm importância para o futuro é evidente. Trata-se de todas as
dispersas e tênues forças que avançaram nos caminhos em que começaram, no fim
do século passado, Geddes e Howard e seus pares.
O centro de Cumbernauld,
1969.
Em continuação, as
iniciativas também foram britânicas. Associações, comitês e comissões, privadas
e estatais, trabalharam através dos anos 1920 e 1930 com as difíceis questões
quanto ao crescimento das cidades e o destino das áreas rurais e naturais, tudo
sob a pressão do desenvolvimento do industrialismo tendo capital e especulação
por trás e pela frente.
Foi durante a Segunda
Grande Guerra que a escolha de caminho para a construção social em sua totalidade
novamente se colocou na Grã-Bretanha.
Patrick Abercrombie foi
solicitado a sintetizar todas as tendências no livro Greater London Plan, 1944. Ele reflete algo da mesma determinação
que todo o país mostrou em função da vitória na guerra. As perdas foram
enormes. Ao mesmo tempo era possível pensar com liberdade acerca de
planejamento enquanto as atividades de construção estavam em baixa. Os planos
incluíam o propósito de os serviços públicos apoiarem uma densidade menor de
população para Londres com a criação de cidades autônomas e multifuncionais no
entorno. Tratava-se de dar continuidade àquilo que Howard iniciara. Em 1946, o
Parlamento aprovou The New Towns Act, uma decisão de grande conteúdo e muito
bem redigida sobre como construir cidades novas. Seriam multifuncionais e
comedidamente grandes, e deviam interagir com suas áreas rurais tanto em termos
de produção agrícola como de gestão ambiental.
Graças ao trabalho com
as New Towns desenvolveu-se a construção social depois da Segunda Guerra Mundial
na Inglaterra, na Escócia e no País de Gales, segundo duas linhas opostas: contra
a linha de intensa destruição rumo ao caos, luta apesar de tudo uma linha
favorável à renovação. Incluindo Welwin, foram mais de 20 novas cidades a serem
desenvolvidas. Em torno de um milhão de habitantes tiveram as suas condições de
vida melhoradas. A pressão nas cidades grandes diminuiu um pouco e a rapinagem
exercida pela industrialização também.
O que a política de
construção social britânica não conseguiu frear foi a continuada exploração em
Londres e em outras grandes cidades. Londres perdeu o seu caráter específico.
Ainda nos anos 1950 muitos podiam justificar a sua enorme expansão com a sua
construção em pouca altura. Depois disso a cidade tanto se expandiu como
cresceu em altura. As grandiosas possibilidades que Abercrombie e seus
auxiliares descortinaram com a reconstrução após a guerra foram em muito
deturpadas.
Talvez a política de
construção social britânica seja a mais determinada em todo o mundo ocidental.
Sinais de continuidade apareceram em vários países — Estados Unidos, Canadá,
Austral —, enquanto os países na Europa seguiram caminhos exclusivos, mesmo
aqueles que buscaram a perspectiva socialista.
Em muitas partes tanto
empresários como construtores têm se valido de pesquisas econômicas e sociais
em seus preparativos. Como especulação, inflação, conjunturas e conflitantes
vontades tanto na direita como na esquerda sempre driblaram com iniciativas, em
nenhum lugar tem sido fácil monitorar a totalidade.
Muito da imensa
anarquia depende do fato de gente por demais haver estado unida num ponto ter
aceito o tráfego como um fator do destino sem retorno.
Os responsáveis pela
nova cidade de Cumbernauld na Escócia procuraram dar um passo adiante em
matéria de tráfego. Decidiram organizar todo o centro da cidade em função da
questão de tráfego, tanto para os que tinham o que fazer no centro ou que por
ele iriam passar. Em torno de 1960 é que a sociedade do tráfego começou a ser
seriamente concretizada em sua extremada consequência; aquilo que Le Corbusier
insinuara uma geração antes. Um corte pelo centro da cidade lembra um ferry-boat mais que uma imagem de
cidade.
Aqueles que
desenvolveram os planos para Cumbernauld usaram frequentemente o argumento de
que a era do automóvel veio para ficar. Esse tipo de argumento ajuda a levar a
nossa construção social à dissolução e ao caos. O tráfego torna-se o símbolo da
paisagem, o crescimento incontido das indústrias ou as favelas do Rio de
Janeiro, Carachi ou Cairo como objeto de preocupação. Que é necessário observar
todas as questões de uma só vez está claro e evidente, pelo menos desde o tempo
de Geddes e Howard.
Mas são extremamente
poucos os países do mundo onde as pessoas tomaram por regra colocar a
totalidade em primeiro lugar quando de sua construção social. Hoje a China é o
país principal desse diminuto grupo, e a China é o pais mais populoso do mundo.
Os chineses lembram frequentemente
de quão tortuoso o caminho do desenvolvimento pode ser, mesmo assim já
conseguiram chegar a um bom pedaço do caminho de sua construção social desde a
libertação, em 1949. Como agem talvez é mais fácil de entender considerando sua
máxima andar com duas pernas, usar os
dois contraditórios lados de cada situação.
Decidiram nivelar a
contradição entre cidade e campo, por meio de nova coparti-cipação, ao mesmo
tempo em que nivelam a contradição entre artesanato e mecanização e entre o
antigo e o novo.
Uma condição é a
propriedade da terra. Pouco a pouco toda a terra se tornou de propriedade
comum, apesar de o direito de uso do Estado não-exclusivo e muito da
coletivização passar por decisões locais.
Outra condição é a
ponderada responsabilidade onde as determinações centrais só oca-sionalmente se
impõem à autoconfiança do povo.
A grande reforma
comunal dos anos 1950 foi uma proposta claramente popular de Honan. Mao
Tsé-tung contribuiu pessoalmente para que se tornasse uma das reformas
mundialmente mais decisivas de construção social.
Nas comunas, a
agricultura tornou-se variada e rentável, rentável inclusive como novas
culturas apoiando novas indústrias autossustentáveis. As comunas tornaram
possível a construção de grandes e pequenas indústrias por toda parte. Assim,
as antigas regiões industriais do leste do pais não precisaram mais suportar
sozinhas a industrialização. No interior do país, onde os chineses pouco a pouco
descobriram os seus fantásticos recursos naturais, a industrialização também
teve início, até longe no oeste em áreas de baixa densidade populacional.
Justamente por isso é
que a mesma atmosfera invade a cidade de Shangai, com seus 10 milhões de
habitantes, e a menor aldeia, fazendo com que os chineses com meios os mais
distintos promovam o seu desenvolvimento.
Os milhões de
arruinados camponeses pobres que vieram para Shangai fugindo da miséria no
campo nos anos 1930 em cooperação com a antiga população artesanal da cidade
reuniram milhares de pequenas oficinas em centenas de fábricas nas terras sem
lavoura do entorno da cidade. Em terras de plantio os chineses não implantam
assentamentos. Assim, formaram-se bairros autônomos, com habitação própria, a curta
distância dos locais de trabalho e com escolas, clínicas, lojas e organizações
políticas e culturais.
Lá onde os velhos
escombros de favelas existiam, as autoridades assentaram prédios de
apartamentos de vários andares construídos por profissionais do ramo e as
mulheres iniciaram indústrias de bairro próprias.
As centenas de mercados
da cidade passaram a se relacionar com as áreas rurais e recebem seus gêneros
sem intermediários e por meio de uma única forma de transporte.
O fato de se restringir
a propriedade de automóvel próprio é só uma das formas de manter o tráfego nos
limites aceitáveis dentro da relação cidade e campo. Montando uma economia
variada, em cada lugar os chineses restringem também a necessidade de
transportar gêneros a grandes distâncias.
Nos assentamentos
menores muitas condições são inversas às das grandes localidades. Nas comunas,
os camponeses e outros profissionais se reúnem e constroem eles mesmos as suas
casas e oficinas. A quantidade é frequentemente dada desde antigamente quando
unidades administrativas chamadas bsien se formaram em torno das aldeias
atingíveis a pé.
Onde não há ferrovia
nem fábrica de cimento, o povo desenvolveu a tradição rural de casas com
abóbadas de blocos de adobe ou tijolo queimado em fornos próprios. Um hábito
originado de escavar as quebradas e reforçar as abóbadas revestindo-as com
caulim. Os hábitos variam conforme as tradições e os recursos materiais. As
casas são construídas em longarinas ou em prédios de dois andares e são frequentemente
consideradas por arquitetos para reinterpretação nas cidades.
De um modo geral, tanto
auto construtores como engenheiros e arquitetos são muito cautelosos com as
inovações na China. Durante a época da grande marcha aplicaram estilos
históricos locais em prédios institucionais, mas geralmente com uma linguagem arquitetônica
simples e parcimoniosa, sem as pretensões do radicalismo e do cubismo e sim com
traços do passado chinês. Calma e sistematicamente reúnem suas experiências e
acham que com o tempo encontrarão seu estilo próprio, aquele que convém à sua
sociedade, mas creem que as distintas regiões do país irão apresentar
diferentes exigên-cias tanto em relação à técnica como à forma. O estilo é de
certa forma uma teoria para a construção. Não deve ser imaginado a partir de
especulações intelectuais. Ao invés, surgirá de dentro da grande prática.
Com as grandes
edificações dá-se o mesmo que nas pequenas comunidades. Valem-se das forças do
industrialismo para igualar as contradições entre cidade e campo, entre
indústria e lavoura. Levam adiante o gigantesco trabalho de uma história
milenar, aquele que foi interrompido quando estrangeiros se impuseram à China
durante os últimos séculos da Ultima dinastia.
Mas onde os
construtores de canais e pontes dos imperadores uma vez arregimentaram à força
artesãos e serventes, passou a haver trabalhadores tecnologicamente habilitados
que desempenham o seu trabalho a serviço da comunidade, represam os rios e
distribuem água por áreas muito maiores do que antes.
Sobre todas as partes
do país com maior ou menor densidade populacional espalharam-se novas comunas.
Com todas as suas unidades sob diferentes graus de industrialização substituíram
a cultura de camponeses e pastores, a cultura de cidade e campo ou de
entumecidas cidades. Se os chineses puderem continuar como começaram o seu
país, este se desenvolverá uma única e coesa construção social, onde a
industrialização não ameaçará com caos, mas com sua renovação totalizante.
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