Robert
Misik -- (capítulo IV de: Marx para
apressados. Eds. ALVA – Brasília 2006.
Tradução: Frank Svensson
Será que O Manifesto expressa o triunfo da vontade sobre a sociologia?
Será que
Marx é, ao fim de tudo, movido por uma ética, por um sentimento e pela
motivação de combater o mal e a injustiça? Formular isso dessa forma não é
violar a ideia central de Marx? Isso não é matar Marx de uma vez? Nada parece
estar tão em baixa cotação nos nossos dias como as motivações morais.
Mesmo os
revoltados pelas injustiças, pela brutalidade da riqueza que implica miséria,
reagem mal quando acusados de moralizadores. Após os distúrbios de Seattle,
Davos, Gênova e Florença, Die Zeit (Hamburgo) constatou o nascimento de um novo
movimento radical de esquerda; o jornal Libération (Paris) festejava a geração
da justiça social. E o eterno rebelde Daniel Cohn-Bendit exortava seus verdes a não se afastarem da gération morale.
Atentemos
para a palavra do moralizador: a principal motivação da nova geração de
rebeldes é a indignação moral face às
fotos de crianças de ventre inchado, ou mais geralmente face às injustiças
sociais, julga também Dieter Rucht, professor do Centro Científico da
Pesquisa Social de Berlim, que trabalha sobre os movimentos sociais de
protesto.
Entre os
mais dotados descobrimos uma variedade de antiquado paternalismo. Aquele que
ates-ta o moralismo de outrora evidencia um pouco de condescendência. Aquele
que baseia seus procedimentos sobre a moral é sujeito suspeito. Entre as
características mais singulares do nosso tempo, são inúmeras as motivações
morais do engajamento, do comportamento quotidiano, seja entre os amigos do
imoral, seja entre os amigos da moral. Fazemos ver às pessoas moralmente
indignadas que geralmente o ocultam e sofrem veladamente a indignação; de mesma
forma, os adversários das pessoas moralmente indignadas creem, no mais das
vezes, que sua objeção é suficiente para desembaraçarem-se das mesmas. Em todo
caso, é muito raro perceberem do que se trata: qual é o mal em se portar com
moral?
Se a
moralidade dos motivos e dos atos éticos é tão frequentemente associada a um
moralismo enfadonho, a uma simples ingenuidade, a uma simplicidade excessiva e
crédula, em parte isso se explica pelos sucessos dos adeptos do capitalismo e
pelos cínicos estragos das lutas de opinião. A firmeza da doutrina econômica
ultraliberal em que atualmente nos banhamos contribui para o descaso da moral.
Leva a conclusões inesperadas para o profano, aumentando provavelmente seu
prestígio intelectual, dizia Keynes. Por exemplo: aquele que não visa senão a
seu interesse pessoal ajuda melhor o desenvolvimento de uma comunidade do que o
que procura sempre fazer o bem, mas só consegue fazer o mal. Como na prática
esse ensinamento traduzido é reiteradamente espartano e incômodo, isso lhe dá
ares de virtude.
O fato
que pode servir de base a uma superestrutura lógica, gigantesca e rígida,
confere-lhe beleza. Ao permitir explicar injustiças sociais e uma crueldade
flagrante corno problemas inevitáveis decorrentes do progresso e fazer passar
as tentativas de substituir as coisas por uma ação provavelmente mais nefasta
que benéfica, esta teoria recebe uma aprovação quase geral.
Isso não
esclarece completamente porque a ação baseada na moral tem gosto duvidoso,
mesmo para adversários do liberalismo econômico. A depreciação da moralidade,
como facilmente con-cebida, é arma privilegiada do arsenal das doutrinas
ultraliberais da economia de mercado. Forçoso é constatar algo simultaneamente
surpreendente e lógico: em seu menosprezo pela ação ética, eles se voltam à
tradição de Marx. Tendo por consequência a certeza, compartilhada à esquerda
como à direita, de que só dados objetivos são importantes, não desejos,
esperanças e ilusões dos homens.
Atitude
que obtém franco sucesso, a ponto de uma criança saber hoje ser preciso
conhecer as realidades econômicas e ater-se a fatos. Não se ter em conta o que
deseja um indivíduo e as ideias e ilusões que lhe povoam a mente tornou-se
lugar-comum que quase não se põe em questão. A última e imensa certeza de nosso
tempo, que de resto quase não há, é a da primazia da economia que a política
não pode contrariar e só um imbecil exaltado questionaria. Ninguém ousa
contestar que o mundo funciona segundo sua lógica, que é puramente econômica,
impõe-se como lei da natureza e à qual nem governo, nem empresa, nem indivíduo
podem evitar. Só uma pessoa bizarra pode perder tempo a dar tratos à cabeça
quanto a alternativas de lógicas de desenvolvimento ou questões filosóficas ou
históricas. Esse tipo de pensador está tão fora de moda quanto espíritas ou
comunistas.
Os
apologistas da ordem estabelecida estão vitoriosos em toda a linha. Teríamos
mesmo o direito de dizer: vejam precisamente porque, admita-se o propósito do
comunista italiano Antonio Gramsci, pelo centésimo aniversário de Marx, após a
primeira guerra mundial: Não seremos
todos marxistas? Todo mundo é um pouco marxista sem que o saiba (Écrits politiques, t.l, p. 145, Paris,
Gallimard, 1981).
Isso se
encaixa? Encaixa-se muito bem, lendo e sublinhando aspectos das profusas ideias
de Marx. Afirmávamos que Marx desenvolveu suas teses contestando a filosofia
hegeliana e a pós-hegeliana. Quando Marx decidiu acertar contas com sua antiga
consciência filosófica, Hegel já estava morto havia quinze anos. Para Hegel,
toda a vida era essencialmente espirito, não prática. Hoje é forçar portas abertas
afirmar que a existência material e as condições de vida concretas dos homens
exercem papel capital em seus projetos e objetivos de vida, nas imagens que se
fazem do mundo. É banal observar que, por estar em condições de formar
consciências esclarecidas, de instaurar instituições democráticas, um aparelho
de Estado que funciona e um sistema de instâncias jurídicas, sociais e
culturais, as sociedades devem ter atingido certo grau de desenvolvimento
material e que o respeito a outrem e à lei terá grande dificuldade de se
im-por, enquanto a grande maioria da população ve-geta na miséria e na fome.
Isso absolutamente não era evidente à época, quando se podia filosofar
livremente sobre o espirito, a consciência ou o saber, sem muito considerar o
estado de evolução de uma sociedade.
Se o
jovem erudito Marx foi cedo um opositor, também o foi porque o jovem rebelde
Marx sabia que a revolução que se descortinava no horizonte não se faria,
porque o revolucionário Marx desejava. Nosso universitário questionador não se
vê em confronto somente com a filosofia especulativa, bate-se com todas as
nuances de um socialismo ético e afetivo. Toda a vida abominou aqueles que
assentaram o socialismo numa utopia elaborada na sua torre de marfim, que
obedeceram a uma ética forte, mas desdenharam as realidades.
Aos 25
anos Marx lutou contra esses e contra os Jovens Hegelianos. As revoluções
efetivamente necessitam de um elemento passivo, de uma base material, escreve
ele com a arrogância incontida do debutante; acrescenta: não basta que o
pensamento seja realizado, é necessário que a realidade faça pensar. (Crítica do Direito Político Hegeliano,
p. 206). Aqui desponta o modo de argumentação que Marx desenvolverá no materialismo histórico. Esse
materialismo não significa -- como pretendem certos adversários -- que os
homens sejam essencialmente movidos por motivos materialistas, ou que o homem
seja mau. Significa que o nível de produção material e constitutivo do grau de
desenvolvimento da civilização de um pais. A
liberação é um fato histórico, não um fato intelectual, lemos na “Ideologia Alemã”, e ela é provocada pelas condições históricas, pelo estado da indústria,
da agricultura, do comércio, das relações ... (1. A. p. 22).
Convém aqui introduzir duas categorias
essenciais do marxismo: as forças produtivas e as rela-ções de produção. A
noção de forças produtivas descreve o nível material geral de uma sociedade, ou
seja, o nível do saber-fazer e o das invenções, o grau de tecnizacão: uma
sociedade que dispõe de fábricas automatizadas e que pratica a agricultura com
ajuda de grandes máquinas agrícolas e se vale de substâncias químicas atingiu
um nível de desenvolvimento das forças produtivas mais elevado que uma
sociedade onde o camponês aciona o arado puxado por bois ou os artesãos
fabricam manualmente, com alguma ferramenta, os objetos de uso quotidiano. A
noção de relação de produção descreve, ao contrário, as condições sociais nas
quais se desenvolve a produção. A sociedade divide-se em homens livres e em
escravos trabalhando para aqueles? Decompõe-se em uma nobreza proprietária de
terras, em camponeses atados à gleba e em cidades com comerciantes livres, onde
artesãos vendem os bens que produzem? Ou estamos ante uma sociedade capitalista
desenvolvida, em que uns vivem do trabalho assalariado, outros de seu capital,
uma sociedade marcada por generalizada produção de mercadorias e uma economia
monetária?
O
materialismo histórico leva a uma dupla conclusão. Primeiramente, os diferentes
graus de desenvolvimento das forças produtivas correspondem (cada um) a
diferentes relações de produção. A ordem social de uma sociedade, onde a grande
maioria da população trabalha na agricultura, dispondo só de meios
rudimentares, é o feudalismo, isso independentemente de que um critico filosófico
considere a servidão boa ou má; uma economia de mercado e monetária
desenvolvida, tendo produção globalizada e relações comerciais se estendendo além
dos continentes se relacionará mal com uma escravatura generalizada. 0 que não
quer dizer que a economia de mercado desenvolvida critica a escravatura de modo
mais eficaz e duradouro, corno jamais fez uma critica humanista que invoca a
dignidade de um homem nascido livre.
Em
segundo lugar, homens que produzem com relações de produção e forças produtivas
históricas determinadas desenvolvem essas forcas produtivas, melhoram seu
saber-fazer e seus instrumentos, fazem invenc6es. Nos nichos dessa sociedade
tomam lugar classes intermediarias (como comerciantes) que aportam produtos
vindos de longe ou transformam os processos logísticos. Assim é que artesãos não
trabalham mais só por si, para seus mestres ou para seu entorno imediato, mas
igualmente para comerciantes que lhes confiam produtos para vender algures,
acumulando novo capital de mercado, permitindo reorganizar o processo sobre
base mais ampla. 0 grau de produtividade e a organização da produção podem
continuar a se desenvolver em meio a certas relações sociais, ate que fiquem
anacrônicas e a organização tradicional não mais possa satisfazer a nova
modernidade. E então que nascem as tensões e os conflitos sociais. As novas
classes, mais dinâmicas, revoltam-se contra as antigas classes superiores anacrônicas.
Segundo nossa concepção, todos os
conflitos do historia têm sua origem na contradição entre as forças produtivas
e o modo de troca, formula Marx (IA. p. 60).
Marx não se ateve a aplicar a análise
materialista a épocas passadas. Introduziu novo método de estudo histórico,
embora sua teoria haja revolucionado também a reflexão sobre a história, até
então história de grandes homens, ideias e grandes acontecimentos (afora
instituições como Exército ou Igreja). A história moderna da sociedade e a
sociologia atual seriam impensáveis sem a herança de Marx, que aplica sua
crítica histórica materialista à sociedade em que vive e ao capitalismo.
Já vimos
que desmontando o mito do Homem, Marx mudou a possibilidade de criticar de fora
o capitalismo. Para ele não mais existe a utopia vinda do céu, causa da origem
inicial do Homem, que se oporia ao mundo capitalista das mercadorias. Não lhe
restam mais que duas possibilidades: renunciar à crítica da ordem estabelecida
ou relocar a crítica para essas condições. O projeto de Marx não é acusar o
capitalismo, mas expor uma análise provando que o capitalismo sempre contribuiu
para sua autocrítica ativa e prática.
Efetivamente,
como as formações sociais precedentes, a ordem capitalista não é mais que uma
dessas relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento de
suas forças produtivas (homens). À medida que o capitalismo corresponde a esse
grau de evolução, é relativamente independente da vontade dos indivíduos.
Uma
formação social não desaparece jamais antes que se tenham desenvolvido todas as
forças produtivas às quais possa dar livre curso... Isso porque a humanidade
jamais se põe problemas que não pos-sa resolver. ("Contribuição à Critica
da Economia Política", Prefácio - pp. 4-5).
Mesmo
esse modo de produção atinge um ponto em que as forças produtivas não podem mais se conter dentro de seu
envoltório capitalista. Este se romperá em pedaços. At hora da propriedade
capitalista já soou ("O Capital", 1, 3, p. 205). É sob esta forma
satírica que Marx se exprime em O Capital,
uma de suas últimas obras, que prioritariamente consagrou uma análise detalhada
da dinâmica econômica. Os trabalhos preliminares a estes textos remontam aos
anos 1840, o grande período criativo de Marx, 1844 a 1848.
Em
resumo: Marx não teve a menor intenção de conceber uma utopia. Não se tornou
comunista porque desejasse o comunismo ou julgasse o capitalismo moralmente
reprovável, mas teria reagido muito mal se alguém lhe fizesse tal observação.
Para ele, a supressão da propriedade privada e a socialização cooperativa
representam simplesmente um potencial, uma tendência da sociedade capitalista.
O comunismo não é para nós nem um estado que deve ser criado, nem um ideal sob
o qual a realidade deverá ser regulada, escrevem Marx e Engels em "A
Ideologia Alemã". Denominamos comunismo o movimento real que abolirá o
estado atual. As condições desse movimento resultam de premissas existentes (I.
A. p. 33).
À
diferença dos grandes utopistas, de Thomas Moore aos do socialismo primitivo,
Marx sempre evitou fazer-se uma imagem da sociedade comunista. Também isso
ajudou consideravelmente os doutrinários do socialismo de Estado do antigo
bloco do Leste a fazer passar seu modelo social como concretização da teoria
marxista. Em nenhuma parte de sua obra Marx descreve a sociedade comunista
ideal, os dados concretos do socialismo real não têm a que ser comparados. Não
há mais que uma passagem célebre onde Marx, que sempre respeitou sua proibição
quase bíblica de cair na utopia, deixou-se levar a um breve esboço do que
poderia ser a vida no comunismo. Levando em conta a divisão do trabalho em
vigor no capitalismo, o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico. Diz Marx:
... enquanto que na sociedade comunista,
onde cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode se aperfeiçoar
no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, o que me permite a
possibilidade de fazer hoje tal coisa, amanhã outra, caçar de madrugada, pescar
de manhã, pastorear de tarde e fazer critica após o jantar, segundo meu
bel-prazer... (I. A. p. 32). Mas não atribuamos muita importância a essa
passagem, que pode hoje ser classificada como produto de uma imaginação
errante.
Quando imaginou a sociedade comunista em seu
foro interior, Marx tinha em mente, esperamo-lo, uma comunidade mais
desenvolvida. De qualquer modo, é mais provável que nem tenha formulado dela
uma representação. Sociedade socialista não é coisa concluída, mas como todos
os estados sociais deve ser entendida como coisa em perpétua transformação e
reorganização, afirmou o velho Friedrich Engels muito tempo após a morte de
Marx, quando alguém lhe pediu para descrever como via a sociedade futura. Seria
simplesmente o produto das condições que o capitalismo abandonaria, uma vez
cumprido o seu tempo. Eram condições desconhecidas de Marx e seus amigos.
Estes, ao contrário, estavam convencidos de que o capitalismo era destinado a
desaparecer.
A última
certeza deve-se a uma das ideias herdadas do marxismo que tem suscitado
inúmeras controvérsias. Gerações de exegetas de Marx e de revolucionários
reunidos com seus legados examinaram milhares de páginas escritas de suas
obras, virando e revirando frases e guardando na mente as passagens. As teses
do materialismo histórico deixam notadamente uma questão crucial sem resposta:
se as leis da dinâmica interna do capitalismo exacerbam as tensões e as
contradições, conduzem necessariamente à revolução, como escreveu Marx nos Manuscritos de 1844. Essa tese do fim
natural e inquestionável da dominação da classe capitalista, Marx não só
formulou nesse texto de juventude, mas numa carta ao amigo Weydermeyer:
No que
me concerne, não é a mim que cabe o mérito de haver descoberto a existência de
classes na sociedade moderna, tão pouco da luta que movem. Historiadores
burgueses haviam exposto isso bem antes de mim. A evolução histórica dessa luta
de classes e dos economistas burgueses haviam descrito a anatomia econômica. O
que eu trouxe de novo foi: 1° demonstrar que a existência de classes não é
ligada senão a fases históricas determinadas do desenvolvimento da produção; 2°
que a luta de classes leva necessariamente à ditadura do proletariado
("Cartas sobre O Capital", p. 59)
Para os
marxistas pós-Marx há uma pesada e explosiva herança a assumir. Se o movimento
real da formação da sociedade capitalista necessariamente conduz à queda da
ordem burguesa e ao reino do proletariado, é de se perguntar que papel cabe aos
combatentes dessa luta de classes que Marx considera motor da história. O
teórico francês há pouco morto, Cornelius Castoriadis, julga que na medida em
que se mantêm as afirmações essenciais da concepção materialista da história, a
luta de classes não é fator à parte (A
Instituição Imaginária da Sociedade. Paris. Le Seuil, 1999 p.43).
Introduzindo
a noção de necessidade histórica, Marx, o teórico da liberação, faz intervir
uma segunda alienação, desta vez teológica,
e estabelece uma espécie de providência
comunista, tendo por fatal consequência que o revolucionário não tem outra
missão senão fazer triunfar a implacável necessidade com toda sua energia e sua
vontade. A questão não é mais saber o que os homens querem e desejam, mas como
se conscientizam e põem-se de acordo quanto ao que a história lhes encarregou:
desenvolver as forças produtivas e fazer saltar as cadeias das relações de
produção, quando chegar o momento.
Os
indivíduos de que se trata liberar não são mais que os executantes de leis
históricas independentes, ou pelo menos muito indiretamente o produto da
atividade desses indivíduos. Visto assim, o proletário da luta de classes não é
mais que uma marionete manipulada por essa lei do mundo. Certos críticos viram
nesse raciocínio a origem do estalinismo: infelicidade! Se o proletariado não
satisfizer o que lhe pede a história, será obrigado a entrar na armadura de bronze da implacável
necessidade. Em nome de uma revolução que perde o homem de vista e nada tem em
conta além das leis históricas, tudo é permitido -- mesmo o combate sangrento
contra o próprio homem. Vejamos a amarga critica que faz Albert Camus em O Homem Revoltado (Paris, Gallimard,
1951) contra Marx, contra essa concepção de revolução onde o homem é tido como
simples joguete, ou melhor, um agente da história, desde que a revolta está no
homem, a recusa de ser tratado como coisa (coisificado) e ser reduzido à
simples história. Em conseqüência, a revolta em Camus é também revolta contra
uma revolução que, ademais, exige do homem que aceite seu sofrimento em nome da
realização de uma necessidade histórica. Na sua célebre peça didática A Decisão, Bertold Brecht mostra a que
ponto um sacrifício pode chegar para satisfazer a necessidade histórica.
Embrasse
te boucher. Mais Change
le monde; il en a besoin!
...
Donc, nous décidons: maintenant De
notre corps retranchons notre propre pied, !I
est horrible de tuer. Pouretant
nous tuons non seulement les autres mais
aussi les nôtres, quand iL le faut.
Car seule la violence peut changer Ce
monde meurtrier, comme Le
savent tous [es vivants. II ne nous
est pas encore permis, dissions-nous, De
ne pas tuer. C'est uniquement par la
volenté inflexible de changer
le monde que nous avons motive Cette décision.
(La Decisión, poema de Bertold
Brecht)
Nunca
Marx foi tão longe. Ao contrário: em vários lugares de sua obra, contestou uma
inter-pretação por demais determinista. Várias vezes insistiu que as leis
econômicas descobertas pela economia política não eram leis da natureza, mas
que as relações sociais determinadas são produtos dos homens como o tecido, o
linho etc. e não têm efeito de lei enquanto os homens não as modificarem. Donde
a célebre frase: À tradição de todas as
gerações mortas pesa como um pesadelo sobre a cabeça dos vivos (O Brumário XVIII, Louis Bonaparte,
p.69).
Isso
seria difícil de compreender se todo o poder da história se voltasse ao
desenvolvimento das forças produtivas e se fosse efetivamente sem importância
saber quais ilusões e quais desejos alimentam as gentes. O desenvolvimento das
forças produtivas é o campo do real que delimita o sentido do possível para o
homem: se na sociedade como é, não
encontramos mascaradas as condições materiais de produção de uma sociedade sem
classes e as relações de troca que lhe correspondem, todas as tentativas de lhe
fazer explodir não passarão de donquichotismo, escre-veria Marx (Cl, p.95),
e jamais o materialismo histórico procurou dizer mais.
Marx
sempre investiu muito de seu tempo na reunião das forças revolucionárias, o que
teria sido relativamente inútil se a revolução devesse advir dela mesma, assim
como fundar um partido para provocar um eclipse solar. Marx cria profundamente
no progresso do moderno e assim deixa suficientemente de fragmentos
contraditórios e susceptíveis de induzir em erro, permitindo a certos
discípulos ulteriores conferir à sua doutrina uma tendência determinista, fatalista, mecanicista, como disse Antonio Gramsci. Em toda vida Gramsci foi contrário a
essas simplificações, da mesma forma que o marxista francês Louis Althusser,
que questionava como é teoricamente
possível sustentar a validade dessa proposição marxista fundamental: a luta de
classes é o motor da história, ou seja, sustentar teoricamente que é pela luta
política que é possível desmembrar a unidade existente, quando sabemos
precisamente que não é a política, mas a economia, determinante em Ultima
instância? (Por Marx, p. 221)
Em
primeiro lugar isto não é uma imprecisão teórica, mas uma fraqueza humana a
reforçar nossa deriva. Gramsci reconheceu que esse determinismo tinha um
sentido: pois se tornou historicamente necessário e justificado pelo caráter
subalterno de camadas sociais determinadas. Quando não temos a iniciativa da
luta e de que a luta termina por se identificar com uma série de defeitos, o
determinismo mecânico torna-se formidável força de resistência moral ... Eu fui momentaneamente derrotado, mas a
força das coisas trabalha por mim (Gramsci
dans le Texte, Gallimard p. 153).
Esta
certeza do futuro é um erro particularmente sedutor, porque é fonte de força:
mesmo se as classes inferiores foram humilhadas e ultrajadas, ofendidas, sem
influência e perseguidas quando se puseram à frente, quando se puderam dizer
que o futuro lhes pertence; uma fonte inaudita e inesgotável de reconforto
moral donde resultam os impulsos mais
fortes para tomar uma iniciativa prática capaz de se transformar (Gramsci) em um desdobramento da vontade coletiva.
De sua parte Marx não o teria visto muito diferentemente. Alguns anos antes de
sua morte, escreveu numa carta: O sonho
da iminência do fim do mundo incitou os primeiros cristãos a combater o
universo romano, dando-lhes certeza da vitória.
Hoje a
esquerda de todas as cores perdeu essa fé na vitória. É certo que lhe restou
seu lado objetivista, como mostramos no início, a aversão pelos bons
sentimentos, pelos pensamentos estúpidos e nalguns uma certa mordacidade
pós-bolchevique que os faz considerar -- ao melhor com um certo levantar de
ombros -- os resultados mais antipáticos (isto é um eufemismo) da mundializacão
capitalista, como o preço a pagar pelo progresso. O materialismo histórico
afirma, essencialmente, que não vale a pena senão para o que parece possível no
horizonte, porque a nada serve desejar o que quer que seja, quando a realidade
vai noutro rumo. Isto é sempre válido, mas aquele que quer engajar-se por urna
sociedade melhor ou por um maior respeito pela natureza deve ter em mente que
nenhuma forca oculta da história o fará em seu lugar. Eventualmente, o mundo
não evoluirá noutro sentido, se indivíduos morais dotados de razão e de livre
arbítrio não se engajarem.
Em sua
última obra de filosofia política, Gérald A. Cohen pôs o dedo na ferida num
pequeno livro recentemente aparecido Gleichheit
ohne Gleichgültigkeit, (Igualdade sem indiferença) Hamburg. 2001. Esse
veterano da velha esquerda norte-americana passou metade da vida a defender a
tese que depois passou a considerar como o erro fundamental do marxismo: Com um pouco de ajuda de alguns adeptos do
socialismo, o capitalismo produzirá o nascimento do socialismo. Hoje ele
diz ter passado a um ponto de vista moral
e se esforça para que nos deixemos inspirar
por ideais, pois não haverá uma sociedade justa sem uma ética da justiça; para eliminar as condições de existência mais
escandalosas, carecemos do fermento da
moral. Sem isso, diz Cohen, todas as ideias segundo as quais o ativismo
político não necessita de moral, mas só de conhecimento das necessidades
históricas e a rigor dos interesses práticos para os quais a gente se reúne no
intuito de lhes atender sempre com gabarolice;
a despeito de sua confiança na história seriam, em primeiro lugar, os valores
que teriam motivado Marx: a igualdade, a
comunidade e a realização de si do homem foram, efetivamente, componentes
indubitáveis do raciocínio e da argumentação do marxismo.
Cohen
pleiteia atualmente uma sorte de moralismo esclarecido, sem recair na utopia. É
irrealista de se opor à realidade; quando o mundo se põe em marcha, ele pode
tomar diferentes direções. A que escolher dependerá dos indivíduos, de sua
moral e das ideias que defendem. Cohen: Os
homens têm a possibilidade de tomar decisões. E: Nós devemos trabalhar com as forças sociais sem obrigatoriamente tomar
a direção que elas preferem. Seu colega politólogo novaiorquino Stephen
Bronner recentemente declarou que hoje o engajamento pelos valores socialistas
ou outros não se justificam mais, exceto
pela convicção moral de fazer avançar assim a justiça.
O
moralismo tem um lado menos cool.
Ativistas moralmente indignados tendem também ao ativismo pelo ativismo: porque
devem sempre estar em movimento, e a imobilidade significa a morte do
engajamento - o que as naturezas calmas consideram enervante, tanto mais que
tudo é interligado: a guerra com os interesses geoestratégicos e o
neoliberalismo com a pobreza e a destruição do meio ambiente etc. etc. Por toda
parte do planeta ocorre algo deprimente. Os que proclamam o grande Eu acuso
ultrapassam bem mais facilmente a estreita linha que separa o pathos moralizador do simples kitsch e acabam por dizer não importa o
quê. Tudo isso, no entanto, não é motivo para ser contra as convicções morais,
que não são irrealistas, mas reais, têm forca própria e não podem ser
desligadas das ideias, da filosofia que Marx dizia constituir uma força
material, desde que amparada nas massas.