Gunnar Gunnnrsson. (1889 – 1975) Pensador marxista sueco. Entre suas principais obras
encontram-se Os grandes utopistas; A Comuna de Paris; Gyõrgy Lukács; De
Machiavelli a Mao; O ideário da social-democracia; Estética marxista. e História do fascismo.
Tradução:
Frank Svensson
Se não te sentes
suficienterninte forte para fundir, na chama da tua genialidade, as duas formas
de criar, tens de te posicionar abertamente em favor de uma delas para alcançar
aquela unidade que a vida impõe como condição.
Honoré de Balzac
A época da poesia burguesa é
... a época do "fetichismo da mercadoria" ou "da arte pela
arte", dada a falsa situação do poeta burguês como produtor para um
mercado, uma situação imposta pelo desenvolvimento da sociedade burguesa.
Cristopher Caldwell
O que é o romantismo?
O
realismo, em sua fase moderna, burguesa, surgiu e desenvolveu-se em contradição
com o grande movimento romântico do inicio do século passado. Qual o papel do
romantismo nesse processo? Foi negativa a sua função? Ou conteve elementos
positivos? A resposta a essas perguntas pressupõe uma análise do romantismo em
sua totalidade, uma análise tanto mais difícil pelo fato de o romantismo --
esse movimento cultural extremamente diversificado, amplamente ramificado e
cheio de duplo sentido -- estar no centro tanto do debate teórico-literário
como do debate estético, desempenhando, ainda, um importante papel na práxis
dos escritores modernos. O
romantismo ainda é capaz de despertar apaixonados engajamentos e apaixonados
distanciamentos. No campo do marxismo, tanto clássicos -- como Marx e Engels --
corno seguidores seus, Mehring, Plekbanov, Lukács, Rue e outros, puseram o
romantismo em debate. 1
A
posição dos mesmos é predominantemente critica. Encontram-se em concordância
com a critica burguesa do romantismo surgida na França, na Itália e nos países
anglo-saxônicos e apresentada por pensadores tão dispares como o neo-tomista
Jacques Maritain e o liberal Benedetto Croce, e que do outro lado do Atlântico
tiveram defensores em Babbit e P. E. Moore.2
Uma
critica de caráter principalmente ideológica, em parte urna crítica de direita
e, da parte de marxistas, uma critica de esquerda. Às vezes por demais
unilateral, mas com o método materialista do marxismo, é possível obter uma
avaliação mais variada. Tentaremos, a seguir, indicar as principais linhas
segundo as quais, no nosso entender, a crítica do romantismo deve ser
desenvolvida. O meio do qual emerge o romantismo é caracterizado pelas grandes
mudanças econômicas e sociais que se seguiram à revolução francesa e às guerras
napoleônicas, tanto na própria França corno na Europa Central e na Inglaterra,
como resultado da guerra civil e da gloriosa
revolução. O desenvolvimento capitalista entrava em sua fase de alta
industrialização. Confirmava-se, como havia dito Hegel, o domínio da prosa.3
O
romantismo é um protesto contra o enfeamento provocado pelo capitalismo
industrial, contra a mecanização e banalização da vida. Os irmãos Échnond e
Jules Goncourt registram em seu diário urna curioso desabafo que Théophile
Gautier, por ocasião da inauguração de uma ferrovia na Argélia, indignado com a
civilização e seus engenheiros que estragam a paisagem com a sua técnica, fez a
Claudin:
Você é quem gosta disso ...
você é quem é civilizado. Mas nós, nós três, com mais uns quatro, cinco outros,
nós somos uns doentios, decadentes ... não, antes uns primitivos, não outra vez
não, nós somos simplesmente umas pessoas comuns, esquisitas, indefinidas, algo
excitadas. Claudin, há momentos em que desejaria trucidar tudo o que há: os
guardas-civis, os equivocados intelectuais, os guardiães de toda ordem, enfim
toda a pocilga ... Tu entendes, eu falo sem ironia, eu te invejo, tu é quem
estás no caminho certo. Isso depende exclusivamente do fato de tu não teres o
gosto pelo exótico, ao contrário de nós outros. Tens alguma sensibilidade para
com o exótico? Não, não vês ... Nós não somos franceses, nós pertencemos a
outras raças. Nós desejamos ardentemente outras direções. E quando ao desejo de
terra estranha se acrescenta o desejo de outro tempo, como por exemplo o século
XVI ... como o meu desejo pela Veneza de Casanova, com uma esticada ate Chipre,
atinjo o auge, a medida se ... Venha visitar-me uma noite. Falaremos mais a
fundo longamente. Sentar-nos-emos os três, um após outro, qual .16 no monte de
estrume entre seus amigos ... 4
Trata-se
de um testemunho quanto ao romântico sentido de vida, tardio, mas com seus
ingredientes essenciais. Aí está o exotismo que levou Chateaubriand a
transferir o cenário das novelas de Atala
para a Florida e para as montanhas de Alleghenies. Prosper Mérimée a levar os
seus leitores a tempos pretéritos e lugares longínquos -- à França das guerras
religiosas em A noite de São Bartolomeu,
à Córsega em Matteo Falcone e em Colomba,
à Espanha em Carmen -- e Novalis, em Heinrich von Ofterdingen, a buscar o
auge do romântico em terras do Oriente. Aí está essa nebulosa nostalgia, esse
desejo ardente pelo irreal que, na literatura romântica, aparece mais
nitidamente talvez no primeiro romance de Achim von Armin, Holins Liebeleben, que fez Novalis condenar o Willhelm Meister de Goethe pelo fato de ele só tratar de coisas humanas comuns, não considerando
a natureza e o misticismo, e que o motivou a declarar:
Romancear implica em atribuir
um elevado sentido às coisas corriqueiras, em dar uma aparência misteriosa ao
comum, em tomar conhecida a dignidade do indigno, a finita aparência do
infinito,5
Existe
também uma atração pelo passado, pelo histórico,
que fez principalmente os românticos alemães sonharem com a Idade Média e
garantirem ao romance histórico e ao drama histórico uma posição central na
literatura romântica.
O
escritor romântico protesta contra a prosa fugindo à realidade. Foge no espaço:
da sociedade burguesa para países e povos exóticos, primitivos,
subdesenvolvidos; e no tempo: do presente para o passado. O interesse por
grupos étnicos estranhos e por épocas pretéritas não precisa ser, em si, algo
reacionário. A fuga do real, por parte do romântico, não produz só frutos
amargos. Sem dúvida o posicionamento romântico face à vida abriu caminho ao
desejo de conhecer povos estranhos. O estimulo maior nesse sentido foram os
empreendimentos de colonização dos estados capitalistas no além-mar. Mas a
função ideológica essencial da alienação resultante do exotismo romântico
situava-se noutro plano. Em seu artigo O
cristianismo ou a Europa, Friedrich Novalis procura integrar o Oriente na
construção da História Universal. Curiosamente, ele descobre então que os povos
longínquos conseguiram uma feliz síntese de todas as contradições que
estraçalhavam a Europa. Na índia, as contradições de nossa despedaçada
civilização teriam, assim, formado uma unidade harmônica.6
Não é
difícil perceber que Novalis transfere uma problemática típica do capitalismo
europeu-ocidental -- que emerge da contradição para ele atual entre o
classicismo e o romantismo -- para um ambiente estranho aos motivos econômicos,
sociais e culturais dessa problemática. O exotismo oriental serve para não se
dar conta das crescentes contradições internas da sociedade burguesa, às quais
fogem na prática os românticos.
O sentido histórico do romantismo é muito
superestimado. O mais típico escritor romântico, Raumer, que através da sua
obra sobre os Hohenstafers, exerceu uma influência pouco feliz sobre a
literatura, é um expoente típico da previsão apologética da história, que
atravessa corno uma linha vermelha a moderna maneira burguesa de escrever
história.7
Karl
Friedrich, amigo de Marx, observou que Raumer representa uma forma de
apologética do estabelecido que poderia ser chamada de objetividade aparente. Consiste em colocar fora de jogo a dialética
característica do desenvolvimento histórico, ou seja, a dinâmica de
contradições que impulsiona o desenvolvimento:
Raumer é avesso a
contradições, nada deve ser ou frio ou quente, ou peixe ou carne, ou branco ou
preto. Se fosse ele o criador do mundo o teria pintado de cinza para ser
plenamente neutro e para não fazer injustiça a ninguém, o teria povoado com
anfíbios ou ermafroditas.8
A
formula do pensamento de Raumer é a de tanto -- quanto:
Nada é tão grande ou tão
pequeno, tão antigo ou tão novo que não possa ser dividido ou acrescentado com
essa faca de dois gumes: se bem que -- no entanto, em todo caso -- assim como,
por um lado -- por outro lado. É evidente que desse jeito qualquer opinião
histórica torna-se inviável.9
O
historicismo romântico implicou num retrocesso em relação a Hegel. Seu país de
origem é a Alemanha, e sua função ideológica foi a de constituir um freio às ideias
da revolução francesa. Na realidade foi uma pedra de tropeço à grande revolução
burguesa, com cuja ajuda se pode distinguir entre os seus aspectos positivos e
negativos. Para alguns, o romantismo significou a restauração dos ideais da
Idade Média -- ligando-se socialmente à hierarquia de classes, com igreja,
nobres e cavalaria, e artisticamente ao gótico.
Homens
como Friedrich Schlegel e Johan Joseph von Gõrres defendiam um embelezamento da
reacionária Santa-Aliança, que após a
queda de Napoleão dominou a Europa (na velhice, Schlegel se tornou tão
exageradamente papal que até o seu escritor preferido, Dante, lhe parecia por
demais gobelino). O irmão Wilhelm via a Idade Média de forma mais sensata,
enquanto que Tieck a considerava antes de tudo a idade poética. Com relação ao
renascimento gótico, o livro de Wackenroder As
confidências de uni irmão de claustro teve um papel importante.10
Wackenroder
quis reabilitar a arte gótica em relação à renascentista. Uma reabilitação é
sob muitos aspectos, justificada e ocorreu em tempos modernos sobre bases mais
sólidas, mas os pontos de partida ideológicos de Wackenroder não servem para
uma reabilitação objetiva. A função que procura atribuir a Albrecht Dürer é no
mínimo duvidosa. Wackenroder homenageia Dürer como o criador de uma arte nacional própria da Alemanha,
mas, curiosamente, iguala-o também a Rafael.11
Em seu
empenho pelo gótico, Wackenroder
procura excluir os traços renascentistas da arte de Dürer que motivaram
posteriores pesquisadores de enfoque nacionalista a falarem do italianismo de Dürer e opô-lo
polemicamente a Mathias Grünewald como o
verdadeiro artista alemão. O romantismo foi capaz, ainda, de incluir algo
inverso da reação de roupagem gótica. O protesto polêmico do romantismo ao
capitalismo industrial não se expressou somente em O rei de Tule e sua policia mas também no democratismo
revolucionário inspirado na revolução francesa. O desenvolvimento capitalista
especializou os tesouros espirituais dos homens e dissolveu as relações
orgânicas entre eles. Rompeu-se a harmonia entre razão e sentimento Psique, que
advinhar deseja o mistério de tudo
não e mais a Psique que tudo fruia, canta Atterbo.12
E é
certo. A Psique que queria advinhar o mistério de tudo, que principalmente
queria saber e não sentir, não e mais a Psique da fruição despreocupada. O
sonho da pessoa harmônica do renascimento e do neoclassicismo é brutalmente
despedaçado pelo capitalismo. Entrementes, começa a crescer, porém, a autoconsciência
do proletariado e, com o surgimento dos primeiros sistemas socialistas utópicos
-- Saint-Simon, Owens e Fourier --, a possibilidade de na realidade prática
superar o capitalismo e suas niveladoras consequências. É por isso que o tédio
social do romantismo não só é visto como um anseio reacionário de voltar ao
passado, ao patriarcalismo, a formas moralmente mais válidas de vida, mas também como algo mais ou menos
revolucionariamente utópico. É contra tal pano de fundo do contexto social que
tem de ser visto o romantismo. Em que medida ele viria a ganhar um caráter mais
reacionário ou mais revolucionário, dependeria das condições do desenvolvimento
de cada pais.
Na
Alemanha, onde o capitalismo, ainda no inicio dos anos 1800, era pouco
desenvolvido e onde a Prússia, entre os muitos principados territoriais
absolutistas e tirânicos, após a queda de Napoleão começou a tocar o
primeiro-violino, o romantismo ganhou o caráter de urna reação cristã-feudal,
militarmente sustentada contra as idéias da revolução francesa. Os alemães
fizeram a sua revolução no mundo das idéias -- Kant, Hegel, Lessing, Goethe,
Schiller, Hôlderlin --, mas recuaram ante a real revolução. A guerra de libertação teve, na
expressão de Marx, o caráter de urna regeneração
equiparável com reação.13
Sob a
pressão das guerras napoleônicas os românticos alemães se desenvolveram num
sentido mais reacionário. Uma parte dos românticos aprovaram desde o início a
revolução francesa, mas fizeram-se depois interpretes da vontade do povo alemão
de se libertar de Napoleão. Como não havia uma classe burguesa alemã fortemente
autoconsciente, o sentimento nacional alemão desde o inicio esteve poluído de
elementos reacionários. Achim von Arnim, que veementemente polemizou contra a
revolução francesa e seus ideais, reunia consciência de classe apoiada em
militarismo com anti-semitismo.
O
principal representante da visão de mundo romântica, Adam Müller, combateu
decisivamente todas as reformas sociais liberais e comportava-se como o
defensor par preférence da economia
feudal prussiana. O jornal Die
Abendblâtter -- porta-voz de Müller, Arnim e Kleist -- era o órgão dos
militares prussianos contra o chanceler Hardenberg fortemente influenciado
pelas ideias da revolução e de Adam Smith. A falta de perspectiva baseada na miséria alemã era o motivo último por
que a apatia para com o reinante não levou a outra coisa senão a encobrir os
trapos da miséria com os cortinados góticos, católico-místicos e
irracionalistas. Nem mesmo a poesia e a música romântica tiveram outra função.
Liebe denkt in süssen Tõnen, Denn Gedanken stelien zu
fern, Num in Tõnen mag sie gern Alies was sie will verschõnen, 14
anuncia uma das mais conhecidas estrofes de Tieck.
Na
França, com as suas atividades e tradições revolucionárias, o romantismo em
parte teve outro caráter. Em Victor Hugo -- que com relação á França e com
certa razão podia afirmar: o que o
liberalismo é para a política, o romantismo é para a literatura --, unem-se
romantismo político e estético num poderoso fermento revolucionário. No famoso
prefácio de Cromwell, é verdade que o
cristianismo -- mesmo se sublimado sob forma de romântica melancolia --
desempenha um papel proeminente.15 Mas o que surge de novo e o
realismo. Victor Hugo descobre para a literatura que o feio existe junto com o
belo, o disforme junto com o agradável, o mau junto com o bom, a sombra junto
com a luz.16
Em
Victor Hugo, o romantismo conduz dialeticamente ao realismo. É verdade que tal
processo completa-se por meio de Balzac, mas já aparece de forma embrionária em
Victor Hugo. A dissolução da forma e a experimentação com a língua tornam-se
para ele um meio de introdução a uma nova realidade, que não e mais a do
neoclássico, de introdução à vida forçando-a a entregar a sua verdade. Vejamos em Reponse à un acte d'accusation:
Quand je soitis du
college, du theme ... l’idiome, peuple ou noblesse,était l'image du royome, la
poesie était la monarchie um mot
etait un duc ou pair, on n'etait
qu'un grimaud; la langue
etait l'état avant quatre-vingt-neuf; les
mots, bien ou mal uses, vivait parqués en castes; les
uns, nobles...montant à Versailles aux carosses du Roi; les autres,
pas de gueux, drõles paiticulaires, habitant
les patois; quelques-uns aux galeres dans l'argot; devoues à tous les
genres bas; ... populace du Style au fond de l'ombre éparse; vilains,
rustiques, croquants, que Vaugelas, leur chef, dans le
bagne Léxique avait marques d'une F Je mis un bonnet rouge aux vieux dictionnaires. Plus de mot, senateur! plus de mot, routier! ... J'ai mis tout en branle, et, morose, j'ai jete le vers noble aux chiens noirs de la prose.17
II -- Romantismo e realismo
Edward
Engel acha que as correntes românticas emergem de conflitos entre gerações
O
romantismo e antes de tudo a poesia de uma nova mocidade, que primeiro atua
junto com os clássicos, mas logo passa a combatê-los. Busca, com o seu bom
direito juvenil, novo conteúdo e novas formas, assim como os clássicos um dia
fizeram, quando ainda pertenceram ao Sturm und Drang (Titanismo). Juventude é a
palavra gravada na bandeira dos românticos, e só como jovem expressão de vida a
literatura romântica poderá ser humanamente compreendida. 18
Engel
não percebe, dada a limitação de seu método idealista, que a contradição entre
classicismo e romantismo não foi um conflito
de gerações, mas uma contradição entre duas fases do desenvolvimento da
sociedade burguesa, divididas entre si pela grande revolução francesa. A busca
da literatura romântica por novas formas
artísticas só pode ser entendida através de uni enfoque como esse. Do ponto
de vista formal metodológico, a literatura após a revolução francesa,
caracteriza-se por uma ação dialética reciproca de ambos os gêneros literários.
Essa ação reciproca baseia-se no caráter cada vez mais contraditório e complexo
da vida moderna, impossível de ser domado literariamente com o método e os
instrumentos do sistema formal do classicismo. Desse ponto de vista, o
romantismo surge como expressão necessária das novas formas de vida. O
romantismo levou, no entanto, tal dialética das formas até à dissolução das
mesmas, à mistura, sim, até mesmo à anulação dos gêneros. Essa mistura dos
gêneros teve grande importância na teoria literária do romantismo.
Encontramo-la como um momento fundamental na conceituação, por Fredrich
Schlegel, da poesia romântica:
A poesia romântica é uma
poesia universal progressista. Sua determinação não se limita a reunir as
diferentes formas de poesia e a relacioná-la com a filosofia e a retórica.
Pretende e deve misturar, fundir, poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia
artística e poesia natural, tomar a poesia viva tomando a vida e a sociedade
poéticas, poetizando a vivacidade e preenchendo todas as formas da arte com
conteúdo cultural de toda sorte, e marcando a sua alma com todas as oscilações
do humor.19
Na
França, a dissolução dos gêneros e da síntese formal ganha um papel proeminente
na estética de Victor Hugo. Segundo o prefácio de Cromwell, a poesia tem três idades: a poesia lírica, a poesia
épica, e a poesia dramática, em correspondência às três idades dos homens: a
juventude, a idade adulta e a velhice. O drama seria a poesia plena pelo fato
de -- conforme Victor Hugo -- compreender e resumir
o lírico e o épico. Como exemplo, Victor Hugo cita os dramas de Shakespeare, Atala de Chateaubriand, O
paraíso perdido de Milton e A divina
comédia de Dante. A teoria de Victor Hugo é manifestamente uma tentativa de
justificar historicamente a dissolução dos gêneros.2O
Os grandes escritores pós-revolucionários
incorporaram essa tendência de mistura, dissolução e síntese de géneros em seus
métodos, como modelo para a nova forma literária. Victor Hugo via claramente
que a estética romântica, ao esmagar o sistema de regras do classicismo,
acercava-se do realismo: Eu abandonei o
nobre verso em favor dos cães da prosa. Mas ele não entendeu que, para
atingir um verdadeiro realismo, era necessária a superação do romantismo.
Balzac assumiu as consequências de seu rompimento com o romantismo, tornando-se
o criador do moderno romance burguês-realista . No prefácio de A comédia humana, lembra a grande
importância que o romantismo de Walter Scott teve para o seu trabalho, mas
salienta que para alcançar um profundo realismo crítico-social é necessário
abandonar o romantismo, extinguindo as suas tendências dialeticamente.21
Em: Études sur M. Beyle, ele afirma
categoricamente que, juntamente com o romantismo e o classicismo, existe uma
terceira tendência literária que busca a síntese entre as duas primeiras:
Não creio que uma
representação da moderna sociedade seja possível com o rígido método dos
séculos dezessete e dezoito. Parece-me incondicionalmente necessário introduzir
os elementos dramáticos, a analogia, a imagem, a descrição e o diálogo, na
literatura moderna. 22
Pontos
de vista semelhantes ele deixa Étienne Lousteau apresentar em Ilusões perdidas. A forma adequada para
a literatura moderna é o romance., que impiedosamente configura a problemática
sem recuar ante a sua feiura não artística e que em si é expressão dessa
problemática. O romance é, afirma Balzac, em 1839:
... a imensurável criação moderna. É o
sucessor da comédia, a qual, com as suas velhas leis, não é mais viável sob as
modernas condições culturais. Incorpora fato e ideia em suas invenções,
exigindo o sentido e a moral de La Bruyere, o tratamento de caráter de
Shakespeare e a descrição das nuances mais sutis da paixão.23
O
romance supera a literatura fria e
matemática do século XVIII. Não é somente análise, é também síntese. O
século XVIII pôs tudo em questão. A tarefa do século XIX é a de chegar a uma
conclusão: busca-a através de realidades, mas de realidades que vivem e se
movem.24
A esse
novo sentido do romance, Balzac o chama de scene,
o que insinua uma síntese no sentido do romance de dois gêneros, romance e
drama. O elemento dramático é surpreendente também nos romances de Balzac:
reproduzem toda a dinâmica da vida social. São realidades com vida e movimento
III -- L'art pour l'art e a ironia romântica.
A
estética do romance, assim como o movimento romântico, é ambíguo. Na Alemanha,
tal ambiguidade, decorrente da miséria
alemã, é expressa na contraditória teoria kantiana de l'art pour l'art. Em Kritik
der Urteilskraft, o problema é a superação da velha contradição filosófica
entre natureza e liberdade. Introduzindo na natureza a ideia de um motivo, Kant
acha que submetemos a natureza à liberdade. O princípio da motivação, ele o
fundamenta na sensação de prazer ou de desgosto que experimentamos ao
contemplar as coisas. Todas as suposições, oriundas de tais sentimentos,
classifica-as de estéticas. E o sentido do belo é simplesmente aquele prazer,
destituído de qualquer interesse, ligado à forma perfeita. Essa teoria estética
de Kant é preciso lembrar -- não é outra coisa senão uma aguda síntese,
altamente frutífera para a práxis artística, aplicada por vários escritores
pioneiros, os quais juntos provocaram um período áureo da história da
literatura burguesa: Lessing, Herder, Goethe, Schiller, Holderlin, toda a Sturm
und Drang ... Em outras palavras: A estética de Kant foi a estética da
emergente burguesia alemã, mas nas condições especificamente atrasadas daquela
Alemanha, onde o capitalismo estava atrasado em seu desenvolvimento cerca de
cem anos em relação à França e duzentos em relação à Inglaterra.25
Enquanto
os franceses tomaram a Bastilha e consolidaram a o domínio da classe média, os
alemães fizeram a sua revolução no mundo das ideias e da literatura. O elemento
capitalista ainda era pouco desenvolvido, a indústria jazia em seu berço, e a
burguesia alemã, dada a sua debilidade, era forçada a trilhar o caminho da
conciliação. A estética de Kant é, no campo da teoria artística, a expressão de
tal conciliação: por um lado implica em opor a urna arte que apregoa a moral
feudal, a visão de vida feudal -- e a arte como um folguedo desinteressado não
pode ter tais motivos! Mas, por outro lado, quebra a oposição burguesa, negando
a função da arte como instrumento dessa classe social. Ao mesmo tempo em que a
estética kantiana libera a burguesia dos ideais feudais para a arte e a
literatura, prende ideologicamente os seus anseios de emancipação, isolando-os
da luta social da classe burguesa. Essa ambiguidade torna a arte pela arte uma teoria de dois gumes.
Nos países onde as tradições advindas da revolução francesa eram vivas, a
teoria d a arte como jogo desinteressado,
ainda em sua específica forma romântica, podia desempenhar um papel
progressista como teoria de oposição aos novos detentores do poder capitalista
que haviam traído a democracia: a arte não queria deixar-se prostituir pela
burguesia. Alguns românticos lutaram pela causa da classe trabalhadora e da
burguesia liberal nas barricadas em 1830 e 1848. Na França, l’art pour l’art passou para um extremo
reacionário após a decisiva derrota da revolução democrática. Na Alemanha, onde
o romantismo desde o início havia passado para a direita, a estética kantiana
degenerou num instrumento de alienação reacionária e subjetivismo. A ironia do romantismo alemão é a primeira
teoria da arte do período decadente. A literatura deve, segundo Schlegel
... entre o apresentado e o
apresentador, livre de qualquer interesse real e ideal, voar nas asas da
reflexão poética, animando-a continuamente e multiplicando-a como numa infinita
série de espelhos.26
Essa
irônica atitude do escritor implica em que ele deve estar livre em relação a
sua obra, em que deve estar acima dela e estar pronto a romper com a ilusão a
qualquer momento. A literatura romântica está repleta desse tipo de ironia. No romance Godwill, de Brentano surgem as mais curiosas surpresas quando o
escritor de pseudônimo Maria finalmente encontra os personagens de seu conto:
quando finalmente encontra o herói titular, surpreende-se com o fato de ele,
sobre quem tanto escrevera, ser tão diferente do que havia imaginado. A certa
altura deixa Godwi se explicar que isto
aqui é uma represa na qual cai na página 266 do primeiro volume E como se
não bastasse, finalmente Brentano tira a vida do escritor Maria bem no meio de
sua criação: Ele morreu de tédio durante
a composição da segunda parte, o que quase não surpreende nenhum dos
leitores atuais.27
A ironia
romântica dá início à tendência ao subjetivismo, que caracteriza o
desenvolvimento da literatura moderna durante o período da decadência
ideológica. A subjetividade artística é aceita como algo absoluto em si, e degenera
num arbitrário jogo com figuras autoconcebidas
(Lukács). O subjetivista escolhe arbitrariamente o seu assunto. O subjetivismo
pode, ao transgredir os limites naturais de sua função estética -- incorporar e
criar de forma artística original o
sentido da realidade --, penetrar num tema qualquer, mesmo que a matéria
não tenha nada a ver com as experiências subjetivas do escritor. O escritor
realista recebe o seu tema do próprio desenvolvimento histórico dado, da dialética própria do movimento cultural,
para usar urna expressão de Gottfried Keller. Essa subjetividade é de um tipo
diferente da ironia romântica. Consiste
na capacidade de descobrir e executar um ato verdadeiro. Esse tipo de
subjetividade aproxima o escritor da vida, desperta o seu amor pelo homem e sua
existência. Esse humanismo é naturalmente tanto mais paradoxal quanto mais a
sociedade capitalista desenvolve os seus lados negativos. Mas sem isso nenhum
realismo é possível.
N o t a s
:
1 - Ver, entre outros Marx/Engels: Ueber Kunst lind Literatur; Franz
Mehring: Zur Literaturgeschichte I,
Berlim, 1929, e Zur- Geschichte der
Philosophie; Harald Rue: Literatur og
Sarnfund; Gyõrgy Lulcács: Goethe und
seine Zeit, Bem, 1947; Der junge
Hegel, Zürich/Wien, 1948; Heine und
die Vorbereitung der 48er Revolution'; Kommunistische
Internationale 3:1941; Paul Reinman: Legendbildung
und Geschichitsfálschung in der deutschen Literaturgeschichte, Unter dem Banner des Marxismus 2-3:1930;
Herder und die dialektische Methode, Unter dem Banner des Marxismus
1:1929". Comparar
com a interessante enquete Ueber Romantik
und Heroik Intemationale Literatur 2:1935.
2 - Ver
resumo de Folke Leander: Nya synpurikter
pa romantiken (Novos enfoques quanto ao romantismo). Estocolmo, 1944; de R.
Bonz, Die deutsche Romantik, Leipzig,
1940; de Erik Blomberg Tidens romantik
(O romantismo do tempo). Estocolmo, 1931; de Ricarda Huch, Die Romantik, Stuttgart, 1951; de Walzel, O. F., O romantismo alemão, Estocolmo, 1917; de
Mario Praz The romantic agony, New
York, 1956; de Johannes Mittenzwei e outros, Erlâuterungen zur deutschen Literatur - Romantik, Berlim, 1967.
Muito representativo da critica católica é o texto de Jacques Maritain sobre
Rousseau, em Trois reformateurs,
Paris, 1937. Ver também de Irving Babbitt, Rousseau and romanticism, New York, 1955.
3 - A
industrialização arruina a fruição da Natureza pelos românticos. Quando Tieck
foi à Inglaterra, não pôde alegrar-se com a natureza inglesa, pois com a
indústria, tinha perdido o seu aroma
natural.
4 - O diário dos irmãos Goncourt, Estocolmo,
1927, p. 123.
5 - Citação segundo Eduard Engel: Geschichte der deutschen Literatur von den
Antãngen bis in die Gegenwart, Wien/Leipzig, 1918, vol 11, p. 25.
6 - Novalis, Hyinnen an die Nacht e Die
Christenheit oder Europa, em Werke und
Briefe Ansbach, 1968. pp. 403-404.
7 - Ver, de Henri See, Les origines du Capitalisme moderne; de Jacques Pirenne, Les grands courants de l'histoire
universelle, vol Neuchâtel, 1945.
8 - Friedrich Kõppen Die Berliner Historiker. Internattonale Literatur, vol 6/7, p. 109.
9 -
Loc. cit.
10 - W. H. Wackenroder Herzensergiessungen eines kunstliebenden Klosterbruders. Leipzig, 1904, p. 81.
11- Ver
pp. 79-80.
12 - De
J. Tegnner, Cartas escolhidas,
Estocolmo, 1947, p. 39.
13 - Ver, de Franz Mehring, Deutsche Geschichte vom Ausgange des
Mittelalters, Berlim, 1947, p. 86. De Ph. Dengel, ver a análise de como a
revolução francesa influenciou a vida cultural alemã: Die grosse bürgerliche Revolution in Frankreich und das deutsche
Geistleben. Kommunistische Intemationale, vol 7, 1939. Ver também Hedwig
Voegt: Die deutsche jakobinische
Literatur und Publizistik 1789 - 1800 Berlim, 1955.
14 -
Citação segundo O. F. Walzel, O
romantismo alemão". Estocolmo, 1917, p. 115.
15 - De Victor Hugo: Le christianisme améne la poésie à la vérité.
16 - De Victor Hugo: Les Contemplations, Londres, Edimburgo e Nova York, 1930.
17- Ver p. 30.
18 - Eduard Erigel, Geschichte der deutschen Literatur, vol II, p.23.
19 -
Citação segundo Eduard Engel, obra acima, p. 25 -- Diferentes definições do que
seja romantismo em contradição com o classicismo: de Sismonde Sismondi, em Litterature du Midi de l'Europe: “Independente
de cada povo ter seu gosto quanto a literatura dramática, e suas regras
próprias, essas se agrupam sob duas bandeiras, e são somente dois sistemas que
estão em contradição em toda a Europa. Esses sistemas foram caracterizados como
o clássico e o romântico, os quais, no entanto, não estão bem determinados
quanto ao significado. Franceses e italianos chamam os escritores antigos de
clássicos, invocando a autoridade deles, valendo-se de seus padrões e gosto
para si mesmos. Alemães, ingleses e espanhóis, que levam em conta a memória da
Idade Média, acham haver mais poesia na memória do passsado de seus próprios
povos." (IIp. 295) Sismondi acha que os alemães denominam essa poesia de romântica em ligação ao românico. Ampere define o classicismo
como cópia, e o romantismo como originalidade. Um escritor do jornal Le Globe
-- que primeiro assumiu uma postura conciliatória, mas depois de Sainte-Beuve
assumir a redação do jornal se tornou romântico -- acha que o romantismo é o gênero
de literatura que expressa uma fiel imagem da civilização moderna -- o que
equivaleria a afirmar que o romantismo é o
espiritualismo da literatura.
20 - Victor Hugo: Cromwell. Paris, p. 9.
21 -
Sobre o papel do romance histórico no surgimento do realismo sócio-crítico, ver
Gyõrgy Lukács: Der historische Roman,
Berlim, 1955. (Werke 6, Neuwied und Berlin, 1965)
22 - Balzac: "Etudes sur M. Beyle, Analyse de la Chartreuse de Panne. Geneve, 1943. p. 16.
23 -
Citação segundo Emst Robert Curtius: Balzac,
p. 426-427.
24 - Ibidem, p. 427.
25 - Ver Franz Mehring: Zur Literaturgeschichte. Berlim, 1929, vol II, p. 229.
26 -
Schlegel : Schriften. Augsburg.
27 -
Walzel observa muito bem que a ironia romântica implica uma tentativa de,
através da maior liberdade de movimento, aproximar-se daquela harmonia, que o
classicismo buscava, mas que no entender romântico não consegue alcançar. Essa
situação confirma ainda mais a interpretação do romantismo alemão como uma fuga
da miséria. Ver O. F. Walzel: Romantismo alemão, pp. 42-43.
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