Edmilson Carvalho - Arquiteto de formação, trabalhou sempre em planejamento
econômico, área em que se especializou na CEPAL (Comissão Econômica para a
América Latina). Teve destacada atuação na SUDENE, em Recife (1962 a 1973) e na
Secretaria de Planejamento da Bahia. Professor de Economia Política e Teoria
Política. Há cerca de 20 anos participa da Oposição Operária (Opop), grupo que
edita a revista Germinal. De sua autoria neste blog: GRAMSCI E A PRODUÇÃO DAS
CATEGORIAS DO CONHECIMENTO.
Como os
capitalistas sabem de cor que o provérbio popular
o rio só corre para o mar não é um ditado à-toa, eles jamais remarão contra
o curso que leva à cidade grande.
Mas esse efeito de como opera a lei do valor no seu rebatimento espacial também resulta de um outro fato simples, reiteradamente explicado por Mészáros em praticamente todos os seus escritos (que verdades simples custam de ser compreendidas e aceitas, a História está repleta delas, desde pelo menos a descoberta científica da lei da gravidade por Newton): a incontrolabilidade do capital. 11
É um fato tão simples, mas que até hoje não foi assimilado pelos urbanistas e planejadores regionais; os que, sinceramente, ainda creem, ah imo pectore, em Caipora e Mula de Sete Cabeças, e por isso pretendem ainda reverter essas duras constatações pela via do planejamento.
Mas esse efeito de como opera a lei do valor no seu rebatimento espacial também resulta de um outro fato simples, reiteradamente explicado por Mészáros em praticamente todos os seus escritos (que verdades simples custam de ser compreendidas e aceitas, a História está repleta delas, desde pelo menos a descoberta científica da lei da gravidade por Newton): a incontrolabilidade do capital. 11
É um fato tão simples, mas que até hoje não foi assimilado pelos urbanistas e planejadores regionais; os que, sinceramente, ainda creem, ah imo pectore, em Caipora e Mula de Sete Cabeças, e por isso pretendem ainda reverter essas duras constatações pela via do planejamento.
Com
efeito, o que está na origem dessas imensas, irrefreáveis, irreversíveis e encontroláveis
desigualdades sociais e espaciais da produção capitalista, vale dizer, o
mecanismo da produção e da reprodução do capital — hoje emperrado e a potencializar
esses e outros resultados —, tem seu lócus preferencial e decisivo nas grandes
cidades e respectivas regiões metropolitanas. Como os próprios capitalistas
também não querem e nem podem inverter a tendência estrutural, as suas
intervenções como pessoas do capital acabam potencializando os mesmos processos
ao agir como capitalistas — numa palavra, potencializando as desigualdades sócio-espaciais
existentes.
Quando,
nos termos de uma crise estrutural do capital, a taxa de lucro despenca e, por
isso mesmo, já não pode ser recuperada mediante o expediente da concorrência,
os capitais se valem, por meio do Estado e dos governos, de soluções políticas,
como subsídios e incentivos fiscais, isenção de impostos, com os quais — aqui
já atolados em terreno movediço altamente contraditório, incerto e precário —
pretendem dar continuidade à reprodução ampliada do capital. Nos casos em que
algum motivo relevante obriga a implantação de certos processos de extensão
horizontal de uma ou de muitas unidades de produção distantes das grandes
cidades, os subsídios e incentivos de crédito fácil e barato, renúncia fiscal,
doação pura e simples de terrenos e outros componentes de capital fixo social
são de uso cada vez mais frequentes, como medida de compensação às perdas resultantes
das distâncias das regiões metropolitanas com suas economias de escala. O
grande imbróglio está em que a crise crônica do capital torna inócuas todas
essas modalidades de artifícios.
Mas, o
que têm as cidades — nomeadamente as grandes, que, no comando de suas regiões
metropolitanas, tais como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto
Alegre, Salvador, Fortaleza, Recife no Brasil — a oferecer aos capitais que se
deslocam para elas atraídas num movimento inexorável, irreversível e explosivamente
contraditório?
Voltando
à forma funcional do capital-dinheiro D — M (mp + ft) ...P ...M' D'. O
capitalista A, por meio de fax, e-mail ou telefone, liga para os fornecedores
fazendo as necessárias encomendas de máquinas, matérias-primas, etc. e recomenda
seus prepostos a contratarem trabalhadores, em número e qualificação
necessários, para dar inicio a um — ou mais de um, se não se trata de um
iniciante no ramo — ciclo do capital D aplicado. Os fornecedores de M (mp), por
sua vez, despacham, se possível no dia apalavrado, os componentes físicos
encomendados, que seguem para a fábrica de A, em cujo recinto já devem estar
presentes os trabalhadores contratados — estes lá chegaram, no prazo
rigorosamente estipulado pelo patrão (abençoado de Deus!) e com a necessária
disposição para cumprir ordens e produzir, em determinada jornada, intensidade
de ritmo de trabalho e com um salário dado e concertado de antemão,
deslocando-se de casa para a fábrica a pé, de bicicleta, de metrô ou de ônibus.
Como já foi visto também mais acima, o tempo de circulação, que se estende do
empenho da massa de dinheiro D ao momento em que a mercadoria encomendada, M
(mp + ft), já está à disposição e apta para entrar em operação, tempo que deve diminuir
a cada ciclo, a cada ano, vai depender do aperfeiçoamento dos meios de
transporte e comunicação em geral, vale dizer, da melhoria das estradas de
ferro, rodovias, telefonia etc. Uma vez dispostos diante das máquinas, tem
inicio o processo de produção propriamente dito, P, tempo precioso que deve
também ser reduzido ao máximo, devido ao aumento da produtividade do trabalho,
eliminando todos os poros de ócio, de desconcentração por parte do trabalhador,
vindo à luz do dia o milagre da mais-valia.
Em
seguida, a massa de mercadorias produzidas, M', em estoque ou no pátio de
expedição, deverá ganhar os rumos da circulação-venda, do comércio, portanto,
onde vai ser metamorfoseada em D', valor finalmente valorizado. A massa de
mercadorias prontas para entregas deverá ser transportada pelas mesmas vias em
que chegaram as matérias-primas, de modo que a diminuição do tempo de
circulação-venda vai depender, à partida, dos mesmos fatores que atuaram na
circulação-compra. Mas é exatamente a partir desse momento que entra em cena um
dos papéis mais decisivos da (grande) cidade no processo de circulação do
capital — especificamente no do encurtamento do tempo de rotação do capital,
por intermédio do encurtamento do processo e tempo de circulação simples que o
capital cumpre como momento final de cada ciclo de seu processo de circulação.
De todos os componentes do capital fixo, que devem ser renovados, enxugados,
criados ou adaptados, à base de tecnologias que imprimem velocidade na
circulação-venda das mercadorias expelidas do processo de circu-lação do
capital, o destaque maior, do ponto de vista das funções que a cidade recebe
das determinações do capital, deve caber aos modernos equipamentos de
comercialização, representados pelas grandes lojas de departamentos,
supermercados e shopping centers.
O capital
realiza suas mercadorias por meio de uma vasta cadeia de comércio, parte dela
para as vendas no atacado, parte para as vendas no varejo. Entre todas, um
particular destaque deve ser dado às estruturas e aos equipamentos que
distribuem as mercadorias combinando novos meios de circulação com os grandes
equipamentos comerciais aptos para as operações de venda em questão. As grandes
lojas de departamento — do tipo Pão-de-Açúcar, Casas Bahia, entre outras —
acabaram assumindo as características de supermercados e/ou de shopping
centers, de modo que, na prática, as grandes estruturas de comércio pelas quais
o capital lança suas mercadorias no mercado consumidor em geral, podem ser
sintetizadas em duas formas básicas: a forma-supermercado e a forma--shopping
center. Essas imensas formas que o capital adotou para atuar no extremo do seu
processo de circulação, ou seja, nas operações que recebem as mercadorias M'
diretamente das fábricas para as transformarem em D', valor valorizado em D —
M... P ...M' — D; acabaram por se impor como formas hegemônicas; na verdade,
formas oligopolistas que abrem espaço por entre as numerosas e dispersas lojas
e casas comerciais tradicionais, as quais, por não poder suportar a
concorrência com os gigantescos supermercados e shopping centers, entraram num
longo, sistemático e regular pro-cesso de decadência sem retorno. Dir-se-ia
que, da mesma maneira — por conta da concorrência —, as lojas e casas de
comércio suplantaram, no passado, os tropeiros e mascates, e, hoje as formas novas
de comércio tendem a eliminar as lojas e casas de comércio, até porque as
formas supermercado e shopping center
estão inva-dindo as cidades interioranas, última trincheira de resistência das
lojas, casas de comércio e feiras-livres, todas elas sofrendo duros golpes
desferidos pelas novas formas do capital comercial.
As
vantagens das novas formas de comércio sobre as antigas são evidentes e se
colocam, simultaneamente, para capitalistas e consumidores. Do ponto de vista
dos produtores industriais de mercadorias, ou, o que dá na mesma, dos que veem
nelas meros valores de troca a serem realizados no mercado, as vantagens são
mais do que evidentes. Uma delas consiste na entrega concentrada de massas de
mercadorias aos supermercados e shopping
centers, resultando em economia de custos e de tempo de circulação, ao
invés de as entregarem a milhares de pequenas lojas, mercearias, padarias,
farmácias, entre outras formas tradicionais, dispersas por todas as, áreas de comércio das cidades e mesmo por toda a cidade. É obvio
que a entrega de massas concentradas de produtos a uns poucos equipamentos de
comercialização, ao invés da entrega necessariamente dispersa dessas massas de
produtos a milhares de pequenas casas comerciais, se traduz em economia de
tempo e de custos com a circulação no extremo M' — D'. Além disso, as modernas
formas oligopolistas ou monopolistas de comercialização desenvolveram métodos e
estratégias de vendas muito mais eficazes do que as for-mas tradicionais acima
mencionadas. Os grandes equipamentos são formas especializadas de comércio,
capazes de efetuar vendas com mais eficácia e rapidez, tornando-se, por isso
mesmo, formas que economizam tempos e custos de circulação-venda; portanto,
também, dos tempos de rotação dos mais variados processos de circu-lação do
capital que as mais diversas espécies de mercadoria que devem escoar das suas
prateleiras para o consumo pressupõem.
Do ponto
de vista dos próprios capitalistas proprietários dos supermercados e shopping centers, a concentração das
vendas de inúmeros produtos traz economias de escala que vão repercutir nas
massas e taxas de lucro, portanto, também, indiretamente, das massas e taxas de
lucro das variadas empresas produtoras de cuja mais-valia resultam os lucros do
comércio.
Também
do ponto de vista dos consumidores, as formas supermercado e shopping cen ter trazem vantagens, na
medida em que as pessoas, que se deslocam aos referidos equipamentos para fazer
compras, encontram ali acesso fácil e rápido a praticamente todos os tipos de
valores de uso de que necessitam. Num raio de apenas algumas centenas de metros
de deambulações por ambientes, onde desfrutam do conforto do ar condicionado,
esses consumidores podem dispor de agências bancárias para poder fazer
depósitos e saques, farmácias, lojas de departamento, livrarias, butiques,
restaurantes, lanchonetes, joalherias e cinemas; sem contar que, nas formas em
tela, vão poder encontrar carros, pneus, motos e bicicletas, passando pelos
mais variados produtos alimentares até chegar a produtos que há pouco tempo
eram de exclusividade dos peque-nos vendedores de rua e de portões de parques e
estádios de futebol — como os famosos roletes
de cana, pastéis e churrasquinhos de
gato —, roubando-lhes essas fatias residuais de mercado, numa demonstração
cabal de que não estão para brincadeira.
Quando
não estão em compras, o espaço
fetichizado ao extremo é mais do que uni motivo para o footing de crianças,
jovens, adultos e, mesmo, de idosos, simplesmente para gozar do fascínio das
vitrines ou do convívio nas praças de
alimentação, tão a gosto dos glutões sempre dispostos a consumir todo tipo
de futilidades. Dá para notar que se está diante de uma outra modalidade de
golpe que a pós-moderna cidade do
capital desferiu nos que ainda insistem em crer em chavões alienantes como cidadania, na medida em que o espaço
público das cidades, representado antes pelos seus centros urbanos, nos quais
as pessoas podiam ainda circular sem pagar pedágio, estacionamento privado
etc., foi deslocado para os shopping centers, cuja dita "liberdade
cidadã" se resume a circular por entre vitrines e densa propaganda
comercial, deambulação forçada, programada por habilidosos profissionais da
publicidade, que inclui um controle e uma vigilância sutis que recaem sobre os
idiotas-cidadãos.
Mas,
como o capital, no seu movimento sem freios, não se detém para examinar suas
vitimas, ou, melhor ainda, para avaliar a dimensão do estrago que ele causa a
si próprio, pouco se lhe dá se o fogo
amigo que dispara contra tudo o que tenta lhe barrar os passos, encontra,
entre as novas vítimas, alguns desses grandes equipamentos comerciais, os quais
terminam por medir forças com formas de comercialização ainda mais enxutas — e aqui está-se falando do uso
da internet, que, como é fácil de percebei; pode, efetivamente, realizar as
operações de circulação em tempo mais rápido e a custos mais reduzidos do que
as grandes superfícies comerciais.
Das
parcelas do D' realizadas nos inumeráveis ciclos D — M P M' — D' ocorridos nas
regiões e cidades interioranas, parte delas volta — depois de depositada, por
algum tempo, nas agências bancárias da cidade que a realizaram — para a
reposição do ciclo, dessa vez como D, valor acrescido disposto e apto a
funcionar novamente como capital-dinheiro na mesma função produtiva. Mas, uma
outra parcela, sobretudo se o capital que a realizou tem sede fora do local no
qual foi gerada, flui para o local no qual a demanda por crédito e a
remuneração do capital são maiores. Nessa bifurcação do destino dos fluxos do
capital monetário reside uma evasão de valor e de mais-valia das cidades e
regiões interioranas para a cidade maior — a metrópole. Portanto, a cidade do
capital drena para si e, por conseguinte, para o capital, uma massa de dinheiro
e capital-dinheiro em parte originária dos ciclos de reprodução que se realizam
no seu próprio espaço, noutra parte originária de ciclos de reprodução
realizados nas regiões e cidades que se encontram na sua área de influência.
Tal massa de dinheiro, representada pelos depósitos bancários acumulados nas
agências bancárias da grande cidade, vai estar disponível, pela via do crédito,
tanto para consumidores como para aplicadores; e aqui, neste segundo caso, duas
vezes como capital-dinheiro: uma vez nas mãos dos bancos, para os quais vai
render lucros originados dos juros derivados dos empréstimos feitos a
consumidores e aplicadores, em operações do tipo D — D', outra vez nas mãos dos
capitalistas que vão aplicá-la nas operações tipo D — M P M' — D'. No ato pelo
qual o dinheiro — proveniente, via depósitos bancários, das regiões e cidades
que se encontram sob a influência mais ou menos direta da grande cidade — flui,
sob a forma monetária, para a grande cidade, encontra-se um dos mecanismos
pelos quais as cidades que recebem tais massas monetárias funcionam como uma
verdadeira puissance a servi-ço da
centralização de capitais e de reforço da própria cidade. Assim, para ilustrar
com um exemplo contundente, a rede bancária de Salvador, uma apenas das cerca
de 400 cidades do Estado da Bahia, concentra cerca de 86% da totalidade de
depósitos bancários em todo o Estado.
Poder-se-ia
prosseguir apresentando e analisando outros mecanismos pelos quais a cidade se
faz, se reproduz e se consolida como cidade do capital, tais como a existência
de unidades prestadoras de serviços de manutenção e reparo, agenciamento de
força de trabalho, segurança, transportes e fornecimento de alimentos,
bombeiros e pronto socorro, um sempre disponível exército de reserva de
trabalhadores, entre muitos outros. Como o autor está convencido de que os
exemplos analisados acima são suficientes para embasar a sua concepção de
cidade do capital, deixará de lado as análises desses outros aspectos para
avançar com a inspeção dos papéis das cidades por outros ângulos de abordagem.
Aos
poucos, essas diversas formas comerciais, os equipamentos de capital fixo
social, os resorts e apartamentos de luxo ostensivo (residências de
novos-ricos, que albergam desde empresários a artistas e estrelas do futebol e
da TV), edifícios e instalações de uso conexo (escritórios de empresas,
restaurantes, hotéis de todas as estrelas), uma insuportável exposição de
outdoors, tudo isso combinado com um urbanismo e uma arquitetura de gosto
abominável, vão configurando o aspecto
(pós)-moderno da cidade, aquele por meio do qual o capital cuida de
imprimir a sua fisionomia na totalidade do tecido
urbano. A cidade é, ela própria, o fetiche, maior e mais pleno, porque
continente de todas as formas sociais de fetiche; ela, e todas as partes acima
citadas, tornam-se opacas aos que nela vivem um cotidiano alienado e alienante.
Mas esse
é apenas um lado da coisa. Convém voltar ao ponto de apoio inicial — a forma
funcional do capital que melhor expressa o processo de circulação do capital: D
— M P M' — D'. Viu-se mais acima — com as palavras do próprio Marx — como esse
processo de circulação do capital avança do ponto de vista do capital. Assim,
foi visto que o ”principal meio de redução do tempo de produção é a elevação da
produtividade do trabalho [...V' e que o
principal meio para reduzir o tempo de circulação é o aperfeiçoamento das
comunicações. Também foi visto que a elevação da produtividade do trabalho
resulta da adoção de capital fixo cada vez mais aperfeiçoado, e que é
basicamente, também, pela melhoria da técnica que os meios de comunicação são
igualmente aperfeiçoados. No caso da produção, na qual o capital fixo joga o
mais importante papel, qual seja, a elevação do
padrão técnico, traz consigo um resultado adverso, a queda tendencial da taxa
de lucro, por conta da elevação da composição orgânica do capital — processo
que, no limite, e, evidentemente, depois de passar por todo um conjunto
complexo de mediações, vai desaguar nas crises de superprodução da ordem do
capital. À medida que a composição orgânica do capital avança, ela provoca a
substituição do trabalho vivo por trabalho morto, o que quer dizer que há uma
recorrente tendência ao desemprego. Até a década de 1970, o desemprego só não
se tornava crônico e socialmente explicito quando a mais-valia expropriada
encontrava ca-minhos que permitiam a abertura de novas frentes de acumulação
ensejando uma compensação.Marx demonstrou que, ao contrário do que afirmavam
alguns economistas burgueses, o capital liberado pela substituição de
trabalhadores por máquinas não podia reverter; quando reaplicado, por efeito de
uma suposta compensação, o quadro de desemprego criado com referido
deslocamento de trabalhadores por máquinas.12
Assim, o
desemprego de trabalhadores de uma determinada linha de produção, por conta da
elevação da composição orgânica do capital, só poderia ser compensado pelo
emprego resultante de novos investimentos feitos a partir da massa total de
mais-valia, somada, naturalmente, com recursos adicionais de crédito, massa de
valor-dinheiro convertida em capital no conjunto da economia. Mas nada disso acontece
sempre, ou seja, não se dá como um processo continuado. Com efeito, a partir de
certo estágio desse processo, circunstâncias adversas, inerentes ao
funcionamento do mesmo mecanismo de reprodução do capital, colocam-se como um
bloqueio à própria acumulação — de um lado a taxa de lucro, ao se colocar como
insuficiente para levar adiante o montante de trabalho morto acumulado; de
outro, a acumulação atingindo um nível que vai ultrapassar o nível da demanda
social, a qual também foi corroída por efeito do rebaixamento dos salários etc.
É
evidente que tal descrição da crise do capital está resumidíssima, mas não de
modo a que não se possa pôr em evidência em que medida a crise atual do
capital, olhada pelo ângulo da taxa de lucro e do mercado, difere das crises
precedentes. Assim é que, a partir dos anos 1970, as circunstâncias estruturais
da produção capitalista passaram a bloquear as possibilidades de retomada de um
ciclo de reprodução ampliada do capital à escala planetária. A compensação, que
nas novas frentes de acumulação estavam presentes nas fases de ascensão dos
ciclos anteriores, deixou de existir, disso re-sultando uma onda de desemprego
tão grande que o anterior exército industrial de reserva transformou-se em
desemprego crônico e estrutural. Do lado da circulação, a melhoria das
comunicações e dos transportes também ocorreu, e segue ocorrendo à base de
intensas inovações tecnológicas, acompanhadas pelo que os sociólogos costumam
chamar de precarização do trabalho,
de tal maneira que uma horda de desempregados e de empregados sem carteira
também emergiu do solo capitalista ampliando o enorme contingente estrutural de
mal e de não remunerados. Entra-se na era do também chamado mercado informal. É a partir desse fato
que surgem e ganham corpo as assim chamadas estratégias
de sobrevivência praticadas, cada uma a seu modo. por trabalhadores autônomos, camelôs, traficantes de drogas e toda uma
esfera novíssima, que inclui os sem
(sem-terras, sem-teto), os promotores dos arrastões
e os demais desempregados do campo e da cidade.
Parece
que existe mais um ângulo de abordagem que pode proporcionar melhor
entendimento a respeito da questão da tensão emprego/desemprego que tem palco
privilegiado nas cidades. Por conseguinte, parece também que se tem de voltar à
forma D — M P M' — D' com vistas a esclarecer essa questão. Para ilustrar;
parta-se do capital individual, agora com números expressando valores. Seja 80D
— 80M... P 100M' — 100D', numa situação de inexistência de capacidade ociosa. O
leitor haverá de concordar que, numa tal situação, a capacidade de produção, em
P, é que se configura como variável independente, de tal maneira que, se, com
todas as demais variáveis constantes (composição orgânica do capital,
produtividade, salários, preços etc,.), a capacidade instalada em P é de
produzir 100M (em cuja composição de valor acaba de entrar 20 de mais-valia),
as proporções de D e M não podem, em tese, ser dadas de modo arbitrário, nem
para mais, nem para menos. Se, para produzir 100M', é suficiente o consumo de
60mp + 20ft, e se, para a compra de mp e ft, são suficientes 80D, então de nada
adianta ao aplicador empatar 90 em M, (60mp + 30ft), porque, se o fizer, estará
desperdiçando capital-monetário e meios de produção — e super-dimensionando o
capital produtivo, com 90M, quando seria necessário apenas 80M para a produção
de 100M'; uma parcela de 10M deverá estar sobrando, isto é, permanecerá em
regime de capacidade ociosa. Tampouco faz sentido aplicar apenas 70M (55mp +
15ft), porque, se fizer tal aplicação, o seu capital produtivo instalado vai
operar abaixo do necessário e o capitalista estará impossibilitado de suprir
uma demanda de 100M'.
Neste
ponto, pode-se arriscar uma conclusão geral, a saber: partindo dos mesmos
pressupostos fixados logo acima, tem-se que, para um determinada grandeza do
produto-valor, deve corresponder uma determinada compra/soma de meios de
produção e de força de trabalho. Se os aportes de capital-monetário (D) e de
meios de produção (M) se colocarem acima dos níveis necessários, estará havendo
desperdício de capital-monetário e de meios de produção. Inversamente, se os
aportes de capital-monetário e de meios de produção se colocarem abaixo dos
níveis necessários, estará havendo capa-cidade instalada abaixo do nível de
produção realizável. Por outro lado, se a demanda social solvável de meios de
consumo (produtivo e improdutivo) é de 100D e a estrutura de comércio instalada
para a distribuição de referidos meios de consumo está apta para realizar; por
exemplo, 120M', é óbvio que, com a capacidade de comércio instalada, estando
superdimensionada, então duas ordens de fatos poderão acontecer: a) uma parcela
dos pequenos comerciantes ficaria, em tese, fora de combate, ou seja, seria
eliminada do mercado pelas estruturas de comércio dominantes; b) persistindo
estruturas de comércio de diferentes portes funcionando, todas elas, as maiores
menos, as menores mais, estariam operando aquém de suas respectivas capacidades
de operação. Significa que, na medida em que ocorre, por conta da pressão do
desemprego, o inchamento das atividades de comércio para além do nível adequado
ao escoamento da produção vendável, as estruturas comerciais sobrantes teriam
ganhos crescentemente marginais, tendendo a zero. Nesse caso, que é, com
certeza, o que ocorre em muitos países que albergam parcelas relativamente
grandes do desemprego estrutural — ocorrência é típica de cidades como as
brasileiras —, as parcelas do comércio superdi-mensionado estarão representadas
basicamente por quantidades crescentes de pequenas lojas, mercearias, vendas, a caminho do sucateamento
iminente, e por hordas crescentes de indivíduos que formam o chamado mercado informal, aquele constituído por
ca-melôs, ambulantes etc., que operam com margens de lucro comercial tendendo a
zero. Essas formas de comércio, que se caracterizam por unidades acionadas por
indivíduos — camelôs e pequenos vendedores (ambulantes) de produtos, em parte
oriundos da economia formal legítima
ou legal, em parte de produtos piratas, que atuam nas esquinas, nas
imediações de restaurantes, nas portas dos estádios de futebol etc. —, chegam a
ocupar grandes parcelas do espaço urbano das cidades, constituindo-se nas já
famosas feiras-guais. É frequente que
tais formas de comércio ocupem, em alguns casos, cidades inteiras, vendendo
desde confecções, CDs e DVDs, rádios de pilhas, relógios etc., em parte
oriundas da indústria formal-legal, em parte de fabricos informais-ilegais, em
todo caso tratando-se de formas nas quais vão desaguar os desempregados e
aquilo a que os sociólogos caracterizam como trabalhadores precarizados.
São,
basicamente, essas camadas do proletariado e de amplos segmentos de uma
população literalmente sucateada que vão, por sua vez, por meio de suas
específicas formas urbanas (bairros proletários, pardieiros, palafitas,
tugúrios, ocupações em encostas, moradias debaixo de pontes e viadutos,
favelas), imprimir a sua fisionomia — algumas vezes no interior, outras tantas
na configuração moderna impressa pelo
capital —, numa evidente relação de antagonismo de explosível potencialidade,
que se antecipa como um aviso ou recado, a quem interessar possa, a
desfechos iminentes.
Esta é,
concretamente, a cidade do capital: versão urbana da anarquia da ordem
capitalista do capital; versão urbana da incontrolabilidade do capital; sítio
inevitável da alocação do capital; espaço das economias de escala e de toda
ordem de equipamentos que estão na base das desigualdades regionais inerentes à
ordem do capital; cidade fetiche; manifestação fisionômica da profunda e
crescente clivagem de interesses, posições e luta de classes; parte de um ser
social que, ao contrário do que normalmente pensa a maioria dos sociólogos,
economistas, engenheiros, urbanistas e arquitetos, não é mera justaposição ou
articulação de espaços, desenhos e traçados arquitetônicos em cima de uma
sociabilidade abstrata e idealizada, mas peça viva dotada de eficazes meios,
papéis e contradições, no complexo mecanismo e movimento da reprodução do
capital e da específica e inconfundível sociabilidade que a ela corresponde. É
isso a cidade do capital.
N o t a s :
11 -
Mészáros, Istvan, Para Além do Capital. São Paulo: Editora da Unicamp/Boitempo
Editorial, 2002.
12 - 38
Marx, Karl - "Maquinaria e grande indústria', O Capital, Volume I, Tomo 2, Cap XIII, São Paulo: Abril Cultural,
1984, p. 54.
Nenhum comentário:
Postar um comentário