Tradução Frank Svensson
Artigo extraído de Praxis und Geschichtsbewusstsein; Studie zur materialistischen Dialektik,
Erkenntnistheorie und Hermeneutik (Prática e consciência histórica; Estudos
sobre dialética materialista, Teoria do conhecimento e Ermenêutica. pp 51 a 83,
(Edition Suhrkamp, Frankfurt/M. 1973, ISBN 3-518-00529-4).
A
discussão sobre a hermenêutica - do ponto de vista das ciências sociais e/ou da
psicanálise - é evidentemente uma nova variante da recusa do marxismo, mesmo lá
onde utiliza sem preconceitos e de
maneira aberta alguns fragmentos de teoria marxista revistos e corrigidos.
(fenômeno que aparece mais claramente em J. Habermas). A essas tentativas para
salvar do positivismo e do formalismo as ciências sociais na sociedade
capitalista e de fazer da sociologia (como ciência experimental) uma ciência
humana de procedimento hermenêutico que não pode renunciar à perspectiva
histórica.21 Habermas apresenta uma explicação pertinente:
As funções que têm grandemente contribuído para
o progresso científico e técnico no intuito de manter o sistema das sociedades
industriais desenvolvidas explicam a necessidade objetiva de ligação racional
entre o saber tecnicamente utilizável e a consciência prática do mundo e da
vida. Eu creio que a hermenêutica, com sua exigência de universalidade, procura
satisfazer essa necessidade.
Mas será
a hermenêutica capaz de abrandar a exigência que faz com que o homem hoje seja obrigado - independentemente da expansão das
ciências do crescimento da dependência mutua - a reter dos outros o seu saber?22 Ou a hermenêutica não será forçada -- cru função da dialética da
acumulação do saber e da perda de liberdade no processo capitalista de produção
cientifica -- a jogar precisamente o papel de uma teoria regressiva,
restauradora, agindo no sentido da volta a um estágio anterior à divisão do
trabalho e do saber? Três posições extremamente críticas com respeito à
exigência de universalidade da hermenêutica negam esse perigo:
1º) a
justificativa da compreensão — do ponto de vista da antropologia do conhecimento
— de K. Apel;
2º) a
hipótese de Habermas de uma comunicação não-deformada, e
3°) as
teorias psicanalíticas da reflexão sobre si e também em concorrência crescente
àquelas da socialização de J. Habermas e A. Lorenzer; essas três posições
atêm-se firmemente ao princípio da compreensão hermenêutica;
1°) Em
seu ensaio Cientistica, hermenêutica,
critica ideológica, um ensaio da teoria da ciência do ponto de vista da
antropologia do conhecimento, K. O. Apel tem a pretensão metodológica de
uma mediação dialética das Luzes das
ciências sociais e da compreensão das
tradições dos sentidos sob o principio — com valor de regra — de uma supressão dos momentos insensatos de
nossa existência social. Seu programa: Porque
urna pura consciência-objeto do momento não pode extrair um sentido e porque
cada constituição de sentidos (...) corresponde a um engajamento físico da
consciência conhecedora, a língua deve ser redescoberta; ela indica um a priori singular, subjetivo, que não tem
sido levado em conta na teoria do conhecimento tradicional dependente de
Descartes. Eu gostaria de denomina-lo 'a priori físico' do conhecimento (...)
genericamente numa relação complementar ao a priori da consciência.
A
compreensão e o entendimento têm relações complementares, tais como as ciências
humanas que compreendem e as ciências da natureza que esclarecem ou, em breve,
a hermenêutica e a cientística. A separação neokantiana e positivista dessas
ciências não viram isso que a antropologia do conhecimento leva em conta: O homem tem (...), desde seu nascimento,
duas direções de conhecimento de mesma importância, não-idênticas, mas
complementares: 1°) uma que é determinada pela necessidade de unia prática
técnica ligada ao entendimento das leis da natureza; 2°) outra que é
determinada pela necessidade de uma prática social moralmente pertinente. Esta
última tende aquilo que já é pressuposto igualmente para a prática técnica: a
possibilidade e as normas de um ser-no-mundo humano e pleno de sentido. Esse
interesse levado à interpretação dos sentidos concerne não só à comunicação
entre contemporâneos, mas também, e ao mesmo tempo, à comunicação dos vivos com
as gerações passadas, sob o aspecto da transmissão da tradição.
A
afirmativa de Apel, de uma complementaridade das ciências científicas e
hermenêuticas, vem, no fim das contas, do fato de que a existência de uma
comunidade de comunicação é a condição de todo conhecimento na dimensão
sujeito-objeto e que a função mesma dessa comunidade de comunicação -- como
comunicação intersubjetiva para a descrição e a explicação objetiva dos dados
do mundo -- pode e deve ser o tema do conhecimento científico.
A
justificativa -- do ponto de vista da antropologia do co-nhecimento -- da
compreensão da totalidade encontra dificuldades cuja solução não é aceitável: a
comunhão de comunicação -- pelo menos
em relação ao passado --destruída. Apel contorna o velho dilema da não-contemporaneidade
do sujeito e do objeto do conhecimento: a) por urna antropologização do sujeito
do conhecimento e pela des-historização consequente da história da consciência,
e b) por um dualismo novo da natureza e da história, da história natural e da história
das ideias do homem, da prática técnica natural
e da prática moral e social. Essa tentativa de justificar esvazia-se
rapidamente desde que as intenções dos sentidos -- que a hermenêutica deve
compreender -- de sujeitos passados são ao
mesmo tempo as resultantes de formas de vida artificiais que não puderam captar
em sua compreensão. Os esforços de identificação hermenêutica (...) esvaziam-se
em razão dessa intervenção obscura da história natural do homem, que se
prolonga para dentro da história das ideias dos homens.
Não é
uma dialética da teoria do trabalho e da natureza, nem urna teoria da
totalidade dialética das condições anteriores materiais da consciência e das
formas de reprodução ideais -- digamos linguísticas -- que surgiram da luz
projetada sobre a obscuridade da
história natural, mas um estranho modelo
de conhecimento: a psicoterapia analítica. Nesse estranho modelo de
conhecimento, há efetivamente dois momentos: 1°) de explicação do comportamento
objetivado-distanciado e supondo uma ruptura da comunicação; 2°) da 'supressão'
ulterior da 'explicação' veiculada dialéticamente numa compreensão própria
aprofundada: a medicina reconhece com a ajuda da formação teórica
psicanalítica: 1°) os efeitos quase naturais, explicáveis e mesmo previsíveis
de temas de sentidos repisados, de certa forma fazendo do paciente um objeto:
2') mas ao mesmo tempo busca eliminar a condicionante causal, que não é
explicável, na medida em que compreende o sentido dos temas repisados e incita
o paciente pela comunicação a usar a interpretação do sentido para rever sua
própria compreensão autobiográfica.23
Em que
medida esse modelo da psicoterapia transposta por Apel no relacionamento que mantém a filosofia da história com a própria
compreensão da sociedade humana pressupõe a ilusão de uma ilha de comunicação sem dominação, à la
Robiuson? É isso que ressalta claramente a teoria de Habermas. Mas, aqui já não
se pode ver que essas formas de vida artificial não entram no campo de visão
dessa hermenêutica ou não entram como loucura da compreensão de resultados intelectuais da consciência humana. Mas não se pode achar que isso ainda pode
significar a crítica ideológica no
contexto dessa teoria.
Sem
querer tornar o professor responsável por seus adeptos, pode-se extrair, a
partir da generalização da antropologia
do conhecimento de Apel, efetuada por D. Bõhler, deduções quanto ao
problema da ideologia crítica.
Apoiando-se em Apel, Bohler pre-tende: Que o conteúdo do sentido que deve
examinar a crítica ideológica — independentemente de se tratar de uma teoria,
de uma eventual orientação da ação, de uma lei ou de uma norma, de um papel,
etc. — deve ser também compreendida de maneira imanente — e a bem da verdade na
significação particular que tem para os homens que dela participam. Uma tal
compreensão hermenêutica é a condição que torna possível uma critica pela
análise social de um conteúdo de sentidos, se essa critica deve bem atender a
esse conteúdo sensorial (em sua função social). Esse seria o primeiro aspecto e
o primeiro passo a caminho de uma critica ideológica.
A
objeção possível que uma compreensão
constante tome a aparência da realidade objetiva reificada e falsamente
elaborada no processo do reflexo e portanto a critica ideológica conduziria essa
aparência à essência da objetividade, essa objeção Bõhler a passa adiante como
uma crítica ao marxismo tão veemente quanto caricatural: marxismo -- redução
das formas sociais da consciência a um
mecanismo causal objetivo -- decisão anterior de considerar os conteúdos de sentidos como simples produtos das relações
materiais. Tirando as consequências idealistas do idealismo de Apel, Bõhler
deduz da tese da complementaridade do
ponto de vista da antropologia do conhecimento que o domínio da produção também
é antecipadamente tirado de um contexto histórico de interações e depende da
constituição de sentidos do mesmo.
O
objetivo de Bõhler e de outros é a crítica
ideológica da hermenêutica como alternativa ao materialismo histórico e
dialético. Bõhler, com uma segurança que não consegue abalar as fontes
marxistas, sabe que a perspectiva historicamente naturalista de Marx não'
considera a expressão linguística e a consciência de si como condições da
possibilidade de interação e tem por consequência um conceito de interação simples-mente materialista,
que como tal não pode deixar de explicar a interação
de puros seres naturais. É
suficientemente claro que não é possível se ater à mesma: a produção material depende da constituição de sentidos em
contextos intersubjetivos de interação; eis o resultado de uma hermenêutica que
podemos denominar, sem nenhuma maldade, de idealista. Irritante é somente essa
pretensão de haver fundamentado a compreensão
de maneira não-idealista.
2º)
Vejamos mais um pouco — ou, mais precisamente menos — a teoria da comunicação
de J. Habermas como conceito simplesmente
materialista da interação: Compreender
é uma experiência de comunicação. É, pensado de maneira problemática e com
insistência por Habermas, o fato de que a
objetividade da compreensão não é possível a não ser no interior do papel de
parceiro refletido num contexto de comunicação. O intérprete não se pode
destacar de sua situação hermenêutica inicial — independentemente de se tratar
de objetivações contemporâneas ou de tradições históricas. Ele não pode
simplesmente romper o horizonte aberto da sua própria prática da vida e
suspender de boa fé o contexto de tradições pelo qual foi formada a sua própria
subjetividade. [...] Contudo — também
Haberrnas apresenta sua solução — é
possível atingir a objetividade do processo hermenêutico à medida que o sujeito
compreensivo aprenda a se conhecer em seu próprio processo de formação, além da
apropriação, pela comunicação, de objetivações que lhe sejam estranhas.
Na
critica que Habermas apresenta da exigência de universalidade da hermenêutica
filosófica de Gadamer, ele restabelece, com uma clareza merecedora de aplausos,
uma diferenciação quase abandonada entre hermenêutica como técnica da exegese e
a teoria filosófica hermenêutica. Ele
designa também por hermenêutica um potencial que adquirimos à medida que
aprendemos a dominar uma língua
natural. A compreensão do sentido visa ao conteúdo semântico do discurso, mas
também aos significados fixados por escrito ou contidos nos sistemas de
símbolos não linguísticos, na medida em que possam por principio ser incluídos
no discurso. Devemos aplaudir também a dimensão da consciência falsa, que reencontra aqui seu valor contra a apologia
do julgamento preconcebido e que, se não é levada em conta, faz com que a
questão da verdade não seja colocada. Porque a meta-instituição da língua
como tradição depende ela mesma de processos sociais materiais que não se perdem dentro das relações
normativas e porque a língua [...] é
também um meio de dominação e de poder social e serve à legitimação de relações de violência
organizada.
Habermas
recusa-se a identificar a hermenêutica com a crítica ideológica e deixa a
experiência hermenêutica que tropeça na dependência do contexto simbólico em
relação às relações factuais se transformar em critica ideológica. Assim, uma teoria da comunicação em língua corrente
[...] deve abrir um acesso ao contexto de sentidos ocultos patologicamente
(Habermas). Mas o que quer dizer patologicamente?
Será que esse termo é introduzido para designar a gênese da consciência falsa
permitindo descrever mais adiante a
anatomia da sociedade capitalista burguesa?
Qual é a
terapia que Habermas prescreve com base num tal diagnóstico? Habermas fixa dois
caminhos nos quais nós podemos buscar uma resposta com toda chance de sucesso.
De urna parte encontramos limites incomuns do domínio da aplicação do processo
hermenêutico em casos que a psicanálise e — quando se trata de contexto
coletivo — a crítica ideológica pretendem esclarecer. Ambos os caminhos têm a
ver com objetivações da linguagem corrente nas quais o sujeito que produz suas
manifestações de vida não reconhece suas próprias intenções. Essas
manifestações deixam-se compreender como partes de uma comunicação
sistematicamente deformada. Elas não podem ser compreendidas a não ser na
medida em que as condições gerais da patologia da comunicação em língua
corrente sejam reconhecidas (Habermas). Duas vias: uma (a critica ideológica) é
delineada por Habermas e é a outra (a psicanálise) que ele usa.
A
ligação de urna hermenêutica esclarecida
de maneira critica com base em si mesma ao princípio de um discurso
razoável, segundo o qual a verdade não
seria garantida a não ser pelo consenso que só seria obtido em condições
idealizadas da comunicação ilimitada e sem domínio e que poderia pretender à
duração"(Habermas), essa ligação supõe uma capacidade de reflexão sobre si — isso libera o sujeito da dependência de poderes hipostasiados. Essa
tese enuncia-se assim:
Na reflexão sobre si chegam a coincidir um
conhecimento por amor ao conhecimento e o interesse de ser o maior. [...] Na força da reflexão sobre si o conhecimento e o interesse fundem-se
num único aspecto.
É somente quando a filosofia, na marcha
dialética da história, descobre os traços da violência que deforma o diálogo
sempre procurado e busca sem cessar os caminhos da comunicação sem
condicionamentos que faz avançar o processo pelo qual ela legitima senão de
outro modo a interrupção: o encaminhamento da espécie humana rumo a sua
maioridade [...] A unidade do conhecimento e do interesse é provada dentro de
uma dialética que re-constrói o oprimido a partir dos traços históricos do diálogo
oprimido (Habermas).
Uma
hermenêutica marxista não contradirá certamente os postulados da hermenêutica ernancipadora e critica", mas porá com
acuidade a questão do lugar favorável a uma
comunicação sem dominação e à reflexão
sobre si. Ela não pode reconhecer a utopia, o lugar que ninguém conhece.
Enquanto não se pode descrever esse lugar no indicativo, convém manter-se
desconfiado. O princípio do discurso
razoável, segundo o qual a verdade não estaria assegurada a não ser pelo
consenso, só atingível em condições idealizadas [...] da comunicação sem
dominação e que poderia pretender a duração, esse princípio Habermas não
consegue formular no indicativo.
A
antecipação de uma situação ideal de comunicação linguística — ou seja, de uma forma de vida na qual um
acordo universal sem condicionamentos é possível (Habermas) nada mais é,
como simples ideia com valor geral, que a repetição verbal de um fracasso: o
Iluminismo (Aufklärung) restaurado é um anacronismo, mesmo em se tratando de um
anacronismo ao qual a ideologia burguesa não possa renunciar. Assim também o
julgamento sobre a utopia da comunicação
sem dominação deve se pôr a par das alternativas sociais concretas, já
reais, que existem de forma prática, se Habermas não propõe pelo menos um modelo dessa utopia. Esse modelo é a
psicanálise.
3°) A
psicanálise compreendida por Habermas como uma
teoria geral dos processos de formação que se estendem ao longo de toda a vida
é para ele o paradigma de uma teoria que
desde o inicio se transforma em elemento de reflexão sobre si e ao mesmo tempo
usa de modo plausível a legitimação de proceder cientificamente no sentido
estrito do termo (Habermas). A referência à psicanálise desperta uma dupla
atenção: a) que a compreensão de si objetivista das ciências humanas tradicionais
seja destruída, b) que sejam lembrados às ciências sociais os problemas que
provêm da preestruturação simbólica do domínio de seu objeto, c) que seja
trazido à luz o papel da língua natural
na qualidade de uma última metalinguagem
para todas as teorias linguísticas
formais para controlar a legitimação das decisões que definissem a escolha
da estratégia da pesquisa, da construção e dos métodos de verificação de
teorias e portanto o progresso da ciência,
e dessa forma d) que seja assegurada a tradução na língua do mundo social de
informações científicas das múltiplas consequências sociais (Habermas).
Habermas liga essas considerações à hermenêutica,
mas é preciso subentender: a uma hermenêutica cujo modelo é a psicanálise.
Essas
expectativas são ilusórias: decifrar a
tradição cultural com base em
conteúdos que são a projeção de desejos imaginários, eles mesmos expressões de
uma intenção inatingida e de outra parte de sublimações [...] que
representam urna satisfação virtual e asseguram uma compensação publicamente
autorizada à renúncia da cultura (Habermas), isso a psicanálise não pode
realizar nem como terapia nem como teoria hermenêutica. Ela estacionou nesta
barreira que impede já a anamnésia do sofrimento individual por causa da analogia
— que para a psicanálise fundamenta o sistema — entre a ontogênese e a
filogênese (desenvolvimento do indivíduo e desenvolvimento da espécie).
O
esquema não-histórico, antropológico de Freud a respeito da estrutura do
impulso isso/ego/superego permanece na tradição do teorema social
burguês do estado natural e exclui a
variação histórica das necessidades dos indivíduos trabalhando em sociedade, e
por isso mesmo a historicidade da estrutura de impulsos. Além disso, Habermas
desconhece o caráter da situação terapêutica. A socialização do analista não é
sem consequências para o processo de transferência e de contratransferência entre o paciente e o médico: no processo de
reconhecimento mútuo — em realidade, a identificação mútua do outro —
refletem-se experiências sociais contraditórias na forma de antagonismos
sociais que não se tornam conscientes; eles se reproduzem em favor de uma
adaptação de quem está em análise, razão pela qual se deve levar em conta a
identidade do eu, do modelo de padrão social e ideológico do analista.
A doença
psicossomática não é a única a comportar especificidades sociais, a anamnésia e
a terapia dessa doença as têm também. A tese da psicanálise como caso ideal da concordância
entre conhecimento e interesse, corno paradigma de uma comunicação não perturbada, deve ser invertida: a hermenêutica psicanalítica
é o exemplo de uma ideologia na qual uma crítica das motivações sociais do
conhecimento e de suas consequências para a ação e uma critica reflexão sobre si representam justamente
um erro de caráter inadmissível. Ao
invés de uma reconstrução da identidade do sujeito por meio de sua história, a
identificação passa a ser usada à vontade: na "compreensão" chega-se,
no melhor dos casos, ao reconhecimento e à interiorização das normas do
su-perego, a sanções que favorecem a dominação, o que permite um acordo entre o
ego e a continuidade destruída da história individual e mesmo da história de
classe. Não pode mais ser questão de uma progressão da competência libertadora
da comunicação. Dessa forma limitamo-nos igualmente à crítica — apesar, e
justamente, por causa da caracterização da psicanálise como lugar onde o ideal
de uma comunicação livre torna-se
realidade. Exigir também a transformação
da consciência implica interpretar diferentemente o que existe, ou seja, a
aceitá-la por meio de uma interpretação diferente.24
Depois
de concordar, sobre o essencial, com a tese de Habermas, А. Lorenzer reviu a
representação do modelo da psicanalise соmо ciência simbólico-pratica de interação:
А interpreta9ao da formação de símbolos
сото produção, ou seja, соmо forma de pra- tica social e como reflexo do
trabalho social, não deve ser соmpreendida соmо а única tentativa para
introduzir a interação na categoria trabalho, mas deve insistir sobre o fato de
que nenhuma а9ао humana, nem investimento libidinal (...) pode ser considerada
de outra forma que uma transformação
produtiva no contexto de relações sociais. Eis o que sераrа Lorenzer da
ortodoxia freudiana de Habermas: 1°) a revisão critica do grau real de resistência
de certas categorias psicanalíticas (...) e 2º) a prova de que as limita- ções
dc enfoque resultam de insuficiências conceituais e fazem соm que mesmo 1á,
onde a psicanalise faz deliberadamente eclodir o domínio da psicologia
individual e se compreende соmо psicologia social, ela não pode ir além de
conceitos que restam abstratos, como o de dominação (corno repressão ancestral)
е não pode estabelecer а 1igação соm а analise da situação político-econômica.
Para а psicanalise, o рrоЫеmа que se coloca é a deformação dos sujeitos sob a condição das relações de produção.
А1ёгп da ргеtensão de 1ançar um rápido olhar
sobre a analise das condições objetivas na organização da dominação e na organização
do trabalho, dai nascem dois pontos programáticos: А dominação deve ser
considerada também сото иmа questão biológica (mas não соmо uma questão a ser
resolvida biologicamente) e a repressão
dos impulsos пãо pode ser pensada fora da questão do sistema de dominação.
Dai resulta que a psicanalise соmо teoria da compreensão das interações deve limitar-se а perspectiva interação-comunicação,
sob pena de sua auto liquidação; е1а interpreta a matéria sim- bolica а sua
disposição соm a ajuda da categoria da práxis.
É somente ligando, de uma parte, cada símbolo isolado as exigências corporais
(que se exprimem como necessidades na compreensão já veiculada) e dando, de
outra parte, o contexto da produção material que a psicanalise escapara do
desvio interacionista da compreensão.
O
objetivo que prevalece na analise como processo
terapêutico parece poder ser аlсацçado, desde que seja а construção da historia de uma vida (que é а obra de um circulo hermenêutico) da interpretação isolada de símbolos
e da compreensão da totalidade da historia individual. Por meio da categoria práxis que agora пãо é idêntica а interação/ato linguístico a psicanalise
torna o caminho de uma critica materialista da socialização. А questão não é a de
saber em que medida a psicanalise empresta seu nome corretamente; mas de saber
porque a psicanálise não se reduz (sich
aufhebt) de maneira marxista, mesmo que não seja objeto da discussão.
A
crítica é reforçada desde que renuncie no entusiasmo da autocrítica a uma
diferenciação necessária de manter: a distinção materialista entre ser e consciência, entre produção
e reprodução, entre trabalho e seu reflexo nas ideias. A
tese de Lorenzer, segundo a qual os símbolos, como meios de produção interior
(no sentido da virada epistemológica de Marx), poderiam ter surgido da
produção, leva a um caminho sem saída. Essa tese falsifica a identidade da
produção material e intelectual, que deveria tornar supérflua toda compreensão
de formas-reflexo não-idênticas.
A
contribuição da psicanálise — enquanto teoria
crítica do sujeito e que considera as causas psíquicas de destruição da palavra — para uma
hermenêutica materialista deveria ser uma contribuição para resolver o como? da transformação de processos
materiais em ideologia; mas é justamente essa contribuição que é recusada por
Lorenzer: A dessimbolização é urna mutilação que determina dois campos de
comportamentos (interação e trabalho), que nós designamos como destruição da palavra, e nesse caso destruição da palavra é sinônimo de
mutilação da prática. A formação de símbolos constitutivos da língua efetua-se
como auto constituição do homem, não só segundo o modelo do trabalho (a
confrontação com a natureza exterior), mas também a partir da confrontação com
a natureza interior da realidade biológica.
O eixo
central da formação dos símbolos — na compreensão da psicanálise — é
sobremaneira a tensão dialética entre exigências biológicas e sociais. O
símbolo é uma síntese, análoga a urna produção material porque sempre arraigada
tanto na natureza interior, da qual o símbolo como produto deve ser extraído,
como na confrontação com a natureza exterior de onde emerge o produto
compreensível pelos sentidos — da mesma maneira que a formação dos símbolos se
realiza produtivamente, ela também se dá num terceiro domínio da realidade: as
relações dos objetos, ou seja, como uma interação que cria os fatos que podem ser provados
sensivelmente. Assim, a teoria da compreensão do ponto de vista da hermenêutica
psicanalítica parece, por suas tentativas mais avançadas, dominar a aporia do círculo, projetar urna
estrutura circular de forma a mais radical: o círculo da identidade da causa e
do efeito, do trabalho e da linguagem, do antagonismo material e da destruição
intelectual. Que essa posição impulsiona o idealismo hermenêutico das quatro
teorias citadas até sua superação materialista parece ainda não oferecer
nenhuma garantia de escapar do desconhecimento subjetivista da base material
objetiva das formas-reflexo.
Em quinto lugar — Trata-se neste trabalho de descrever a aplicação da crítica
materialista ao modo de existência ideológica da consciência e a suas
materializações acessíveis à hermenêutica em documentos e fontes compreensíveis. Quatro variantes típicas
não materialistas foram apresentadas e tiveram largo direito à palavra, para
indicar a contrario quais são as
questões e quais são as respostas que urna hermenêutica materialista não
colocará. Nenhuma das teorias hermenêuticas — filosófica, sociológica ou
psicanalítica — pode querer substituir o materialismo histórico e dialético.
Mas os hermeneutas não materialistas concorrentes deveriam constituir urna
incitação a não abandonar de graça o campo da consciência dos homens
contemporâneos socializada pela ideologia burguesa e sua dominação hermenêutica
sobre as fontes.
As teses sobre a filosofia da história de Walter Benjamim são uma das fontes mais importantes da
hermenêutica materialista. Ele coloca a
questão daquele na pele do qual o que escreve a história do historicismo se
enfia. A resposta de Benjamim é uma prova da força explosiva da perspectiva
práxis e consciência histórica: A
resposta é absoluta: o vencedor. Os dominadores são sempre herdeiros de todos
aqueles que em todo tempo sempre venceram. E se identificar ao vencedor
favorece seguramente sempre ao dominador. [..] O detentor do materialismo
histórico considera como seu dever encarar a história no sentido contrário.
Para um
hermeneuta materialista que deve fornecer os instrumentos particulares de
decifração dos suportes ideológicos da tradição para a reconstrução dialética
da gênese da consciência contemporânea — dominando ou não a história — é
preciso estar plenamente consciente que:
Articular historicamente o que se passou não
quer dizer conhecer exatamente como foi. Quer dizer amparar-se em lembranças
que brotaram na hora do perigo. Trata-se para o materialismo histórico de se
ligar a uma imagem do passado tal como ela se apresenta de improviso ao sujeito
histórico no momento do perigo. O perigo ameaça também a existência da tradição
e de seus receptores. Para todos dois é uma só e a mesma coisa: tornar-se
instrumento da classe dominante. A cada época é preciso tentar novamente
arrancar a tradição do conformismo que está a ponto de anexá-la [...] Pertence
somente a quem escreve a história de atiçar a chama da esperança — se ele se
encontra compenetrado disso: mesmo os fatos não serão mais seguros perante o
inimigo, se ele é vencedor. E esse inimigo nunca cessou de vencer (Benjamim).
As teses
de W. Benjamim em si mesmas correm o risco de serem anexadas corno bem cultural que nunca é um documento da
cultura sem ser ao mesmo tempo um
documento da barbárie. E ao mesmo tempo que não, se mesmo isento da barbárie,
da mesma forma não é tampouco o processo da tradição na qual tenha passado de
um a outro.24 A mesma coisa vale para o marxismo-leninismo, do qual devemos
reconstruir a dialética materialista no momento
de perigo, a saber: alterar no mecanismo ou acomodar-se ao molho
subjetivista até tornar-se consumível pela ideologia burguesa.
N o t a s
:
21 Assim
também H. P. Dreitzel, Wege in die
socziologische Literatur (Introdução à literatura sociológica), em H. P.
Bardt: Iniciação à sociologia, Munique, 1966, p. 221.
22. A. Keller, Heutige Aufgaben Erkenntnistehorie (Papéis atuais da teoria do
conhecimento), em Novos problemas do conhecimento em filosofia e teologia,
editado por J. B. Lotz, Freiburg, 1968, p. 30.
23.
Marx-Engels: A ideologia alemã,
Paris, Editions Sociales, 1968, p. 44.
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