Edmilson Carvalho - Arquiteto de formação, trabalhou sempre em planejamento econômico, área em que se especializou na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina). Teve destacada atuação na SUDENE, em Recife (1962 a 1973) e na Secretaria de Planejamento da Bahia. Professor de Economia Política e Teoria Política. Há cerca de 20 anos participa da Oposição Operária (Opop), grupo que edita a revista Germinal. De sua autoria neste blog: “Gramsci e a produção das categorias do conhecimento”, e “A cidade do capital”.
Uma das
categorias mais fundamentais no processo de produção dialética do conhecimento
é a totalidade. Num escrito elaborado na década de 1940, Lukács (1967, p. 240)
assim a definia:
A categoria de totalidade significa ..., de um lado, que a realidade objetiva é um
todo coerente em que cada elemento está, de uma maneira ou de outra, em relação
com cada elemento e, de outro lado, que essas relações formam, na própria
realidade objetiva, correlações concretas, conjuntos, unidades, ligados entre
si de maneiras completamente diversas, mas sempre determinadas.1
A
propósito, lembrava o próprio Lukács que Marx se referia a essa mesma categoria
quando afirmou que as condições de produção de toda sociedade formam um todo.
Apesar do desuso — cada vez maior, mais sistemático e crescentemente
condicionado por motivos ideológicos — que filósofos, sociólogos, antropólogos,
historiadores e até artistas fazem dessa categoria, mais cabalmente nos atuais
tempos de descostura e dos
pós-modernismos, nunca é demais lembrar e confirmar o estatuto ontognosiológico
e o valor lógico intrínseco dessa importante categoria, sem a qual qualquer
interpretação teórica do mundo fica reduzida a um amontoado incoerente, amorfo
e desarticulado de fragmentos, do que não pode resultar qualquer processo de
efetiva produção do conhecimento (LUKÁCS, 1967).2
Contudo,
a categoria totalidade não pode ser compreendida, construída ou empregada sem
que se tomem alguns cuidados filosóficos especiais, sob pena de não ser
possível obter a apropriação, no decurso da análise, de nada mais do que uma
aparência, dentre todas as demais, quando então, ao invés de contribuir para
revelar o âmago concreto e explicativo da realidade, a categoria venha a se colocar como um obstáculo intransponível ao
alcance do verdadeiro conhecimento dessa mesma realidade.3
Com
efeito, para que a totalidade seja uma categoria dialética, para que possa
estar em condições de oferecer a máxima eficácia científica que lhe é inerente,
sua constituição passa, durante cada efetivo exercício da análise, por alguns
procedimentos filosóficos que se apresentam como pressupostos imprescindíveis
para o alcance do seu pleno e rico significado. Isto significa dizer que o todo
pode não passar de mera aparência se for utilizado sem determinado trajeto
filosófico de constituição. Este trajeto teórico (dialético) é o único
procedimento capaz de proporcionar estatuto rigorosamente científico à referida
categoria.
De
início pode ser adiantado que, se determinado fato é um todo composto de
partes, leis e relações conectadas entre si e em movimento, resulta que a
desarticulação e a fragmentação desse todo operam nele uma amputação e eliminam
a possibilidade de conhecê-lo como tal. O conhecimento de uma região do todo
não é, ainda, conhecimento do todo, porque o conhecimento de partes isoladas
do conjunto não é conhecimento nem das partes nem do conjunto. Em outras
palavras, numa totalidade o conhecimento das partes e do todo pressupõe uma
reciprocidade. Isto porque o que confere significado tanto ao todo quanto às
diversas partes que o formam são determinações, dispostas em relações, que perpassam
e completam a transversalidade do todo, de modo que não pode haver conhecimento
de um todo ou de partes dele se, amputada a totalidade, isolados os seus
elementos entre si e em relação com a totalidade e desconhecidas suas leis, não
for possível captar a amplitude de determinações ontológicas das partes e da
totalidade -- determinações que só podem ser apreendidas se a análise percorre
a transversalidade essencial do todo.
Ademais,
toda totalidade é formada de categorias e relações simples, entre as quais
algumas mais fundamentais, que devem ser conhecidas e descortinadas para
exatamente dar passagem à reconstituição abstrata do todo; o todo é, portanto,
estruturado4 e hierarquizado e, sem que se
tenha percorrido essa estrutura e essa hierarquia, no ato de sua constituição,
a partir do que ela possui de essencial, a categoria permanece indeterminada e,
por isso mesmo, indefinida -- o que conduziria a uma forma empirista de encarar
(e apenas descrever) a realidade concreta (deve ficar claro que a estruturação
teórica -- dialética -- da totalidade não é um atributo só do discurso, mas a
representação conceituai que parte de uma objetivação que antecede o discurso
porque já está na totalidade como real concreto). Como resultado, não se teria
conhecimento, mas ideologia.
Para se
conhecer a transversalidade conectiva do todo não se faz necessário -- nem é
possível -- percorrer, como uma listagem, todas as inumeráveis partes,
elementos, momentos e relações do todo, pois de que se trata é de conhecer a
lógica que preside a sua conexão. Com efeito, a apreensão da conexão dialética
essencial de uma totalidade pode ser descoberta mesmo antes de se ter alcançado
o grau máximo de concretude da totalidade. É, com efeito, o que ocorre quando
se procede à análise de uma dada totalidade por necessárias aproximações, de
degrau em degrau, cobrindo, revelando e completando cada conceito, cada
relação, cada conexão e cada categoria desde sua apreensão mais abstrata (e
mais simples) à mais concreta (e mais complexa), no curso da qual análise a
lógica essencial que preside a conexão do todo pode ser captada em algum
estágio intermediário. O próprio Marx dá inúmeros exemplos da justeza dessa
assertiva, que revela uma questão de método, e é esse o procedimento que ele
emprega, em O Capital, na construção
do próprio conceito de capital.5
Com
efeito, o conceito de capital (entre outros) construído no Livro I de O Capital só serve para elucidar toda a
análise teórica intermediária e que, num crescendo, vai atingir sua concretude
máxima no Livro III, quando aquele conceito inicial deve dar lugar ao conceito
de capital finalmente entendido no âmbito das determinações mais concretas --
de modo que os dois primeiros tornos não
ultrapassam a análise do 'capital em geral', enquanto o terceiro supera esse
limite, fazendo a passagem para a análise da 'pluralidade de capitais' e de
suas inter-relações, ou seja, do capital que existe 'na realidade'
(ROSDOLSKY, 2001, p. 69, grifo do autor).
Assim,
nesse caso, que evidencia uma necessidade imanente do método (em Marx), a
revelação parcial do conceito, de acordo com cada degrau alcançado, nunca é
tomada como um conceito acabado e definitivo, senão no final da análise, quando
a totalidade foi teórica e completamente alcançada. Aqui, sim, a totalidade e
cada parte estão completadas e a exigência ontognosiológica se impõe: o
conhecimento concreto das partes e do todo se pressupõem e aparecem em seu grau
conectivo máximo. Porém, e isto deve ser destacado, o alcance da plenitude
conectiva da totalidade, que se faz, no plano teórico, por aproximações dos
aspectos mais simples e unilaterais aos mais concretos e completos, já revela,
em determinados estágios da aproximação, o essencial do todo, de maneira que, a
partir de certo ponto, as conexões internas do todo já podem ser percebidas.
Isto também significa, corno já foi afirmado mais atrás, que o alcance da compreensão
da lógica do todo não implica a consideração e o conhecimento extensivo de
todos os seus fatos, momentos e relações, mas a compreensão da sua estrutura
dialética, vale dizer, aquela essencialidade que, alcançada a meio caminho do
conceito acabado, já caracteriza o todo. Para recorrer ao mesmo exemplo
sugerido antes, o conceito de capital (que só se completa no Livro III, quando
o capital em geral é situado na pluralidade dos capitais, portanto no
âmbito da concorrência, etc.) já está essencialmente formulado quando, no Livro
I, sua gênese já está compreendida: a
valorização do valor mediante a reconversão da mais-valia.
Outra
questão na análise da totalidade é a que se refere ao papel fundante e decisivo
da contradição nas conexões da totalidade. É óbvio que nem todas as conexões
que se espalham através de toda a transversalidade de uma dada totalidade são
conexões de forças que se colocam em relação de contradição; mas, por outro
lado, as conexões que implicam contradições ou antagonismos são as mais
decisivas na definição do caráter e na eclosão de momentos de unidade e ruptura
das totalidades em geral. É por demais sabido que o próprio modo de produção
capitalista conecta, em um momento para o seu desenvolvimento, em outro, para a
sua ruptura, duas categorias fundamentais: trabalho e capital no plano
objetivo, proletariado e burguesia no plano de suas respectivas subjetividades.
Essa contradição, presente no topo da totalidade abrangente modo de produção,
também está presente na outra ponta - a da categoria mais simples (molecular),
a mercadoria - desse modo de produção.
Também a mercadoria é uma totalidade e,
como tal, encerra, em sua objetivação, por meio da produção capitalista, conexões
de outras categorias que se revelam como relações de oposição, tais como: valor
de uso e valor de troca, trabalho concreto e trabalho abstrato, salário e
mais-valia, visibilidade e fetiche, etc. No caso da totalidade modo de produção
capitalista, são incontáveis as conexões que encerram também incontáveis
contradições, que se estendem e se multiplicam desde a imediata produção da
mercadoria, passando por todos os processos (e totalidades) intermediários
(troca, circulação simples, circulação do capital, etc.), até o momento mais
amplo da concorrência e das crises do sistema. Tais contradições combinam-se
para assegurar o desenvolvimento do capital; mas, em épocas de crise, quando
explodem rompendo as respectivas unidades (combinação do salário com a
mais-valia para a valorização do valor, etc.), podem-se manifestar revelando,
tanto na teoria quanto na prática, o desacordo interno e imanente desse modo de
produção, potência que se coloca como pressuposto objetivo da possibilidade de
sua ruptura.
Em
adendo, é exatamente a apreensão da lógica que preside as conexões da
totalidade -- que constitui, portanto, a sua essência, sua lei --, e que está
presente em toda a transversalidade conectiva do todo, que permite a
possibilidade de conhecimento, portanto, também, de uma relativa predição do
movimento do todo. Essa lógica, essa essência, perpassa o passado, o presente e
também o futuro da totalidade em movi-mento. Ao lado do núcleo essencial de um
todo, daquilo que constitui o seu leito
remoto, encontra-se uma infinidade de acidentes, contingências e
circunstâncias que também participam da totalidade e do seu movimento. Aqui
existem duas ordens e dois ritmos de movimento: o do leito remoto e o dos acidentes -- o primeiro, lento, o segundo,
muito mais rápido. A essência do movimento do todo é o que o unifica e que,
portanto, articula as contingências, as circunstâncias e os acidentes ao todo.
Enquanto o leito remoto do todo, aquilo que constitui a sua lei, sua lógica,
sua necessidade, sua estrutura, permanece por um tempo maior, as
circunstâncias, os acidentes e as contingências mudam, aparecem e desaparecem,
muito rapidamente.
É
exatamente esse leito remoto - que antecede e que sucede o estágio presente do
movimento do todo - que confere a possibilidade do conhecimento e do
reconhecimento do todo na sua constituição pretérita e de uma relativa
possibilidade de conhecimento dos desdobramentos futuros (portanto também de
predição) da totalidade. Quando uma crise cíclica do sistema do capital
acontece, a sua constituição não se dá por força de elementos acidentais ou
circunstanciais de uma dada conjuntura, mas por efeito de uma lei - a lei da
queda tendencial da taxa de lucro, etc., etc. É pelo reconhecimento e pelo
conhecimento dessa lei que se podem prever certos desdobramentos - sempre em
certa medida -- essenciais da ordem do capital em crise. Fenômenos acidentais,
circunstanciais, contingenciais podem até precipitar, num momento dado, um
processo de crise de superprodução, mas jamais dar origem a esse tipo de crise.
A análise da lei da crise garante previsões aproximadas de sua duração cíclica,
da possibilidade de uma depressão ou de um crash, de uma certa dimensão do
desemprego, da ruína e sucateamento de certos segmentos de capitais, etc. O
grau de acerto em tal tipo de predição .vai depender da capacidade de apropriação
do máximo de mediações existentes nas relações entre a lei e as circunstâncias
presentes no processo de crise. 6
De todo
o exposto, o problema consiste, pois, em saber quais são, em cada caso, as
categorias e relações centrais que constituem a essência de uma totalidade (uma
realidade concreta e complexa). Era exatamente o que Marx (1973, p. 20-21)
tinha em mente quando escreveu estas palavras nos Grundrisse:
Quando consideramos um pais
dado do ponto de vista econômico-político, começamos por sua população, a
divisão desta em classes, a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos da
produção, a exportação e a importação, a produção e o consumo anuais, os preços
das mercadorias, etc. Parece justo começar pelo real e o concreto, pela
verdadeira suposição; assim, por exemplo, na economia, pela população, que é a
base e o sujeito do ato social da produção em seu conjunto. Contudo, se se
examina com maior atenção, isto se revela [como 1 falso. A população é uma
abstração se deixo de lado, por exemplo, as classes de que se compõe. Estas
classes são, por sua vez, uma palavra oca se desconheço os elementos sobre os
quais repousam, p. ex., o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes últimos
supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo,
não é nada sem trabalho assalariado, sem valor, dinheiro, preços, etc. Se
começasse, pois, pela população, teria uma representação caótica do conjunto e,
precisando cada vez mais, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mas
simples. Tendo chegado a este ponto,
haveria que fazer a viagem de retomo, até chegar de novo à população, porém
desta vez não teria uma representação caótica de um conjunto, senão uma rica
totalidade com múltiplas determinações e relações.
Colocando
a questão nos termos mais gerais dedutíveis do texto, pode-se dizer que Marx se
refere, como ele próprio enuncia, à abordagem de um país dado do ponto de vista econômico-político; por outro lado,
é óbvio que o procedimento se enquadra perfeitamente na conceituação do modo de
produção capitalista, que é, de resto, o que ele de fato tinha em mente quando
tentava, com essas notas (o método da economia política), encontrar caminhos de
acesso a tal conceituação. O autor levaria tal empreendimento a efeito na obra O Capital, para cuja elaboração os
Grundrisse constituíram parte essencial dos estudos preliminares.
Num
caso, o teórico -- conceituação de modo de produção capitalista --, ou no
outro, o empírico -- o estudo de um determinado pais, etc. --, não é pela
população que a investigação deve começar, mas pelas determinações mais
simples, constitutivas e fundantes dessa totalidade. Marx argumenta que não se
pode ceder à tentação, como de fato acontecia com a economia política nascente,
de começar pela população, porque começar a análise por tal ponto de partida
levaria o analista a incorrer no erro de tomá-la por um todo homogêneo,
indiferenciado, não-estruturado, ilógico, procedimento que o conduziria a erros
cumulativos em toda a investigação subsequente. É óbvio que se poderia aduzir
que a divisão da população em classes poderia ser feita depois; todavia, Marx
argumenta com perspicácia que o correto e fecundo para a análise -- do dado país ou do modo de produção
capitalista, que são duas totalidades em si mesmas -- seria tomar a população
tal como de fato ela é, vale dizer, em sua estrutura não apenas natural, mas em
suas determinações sociais; em suma, na sua constituição em classes sociais.
Se a
questão deve ser posta nesses termos, uma tentativa de caracterizar a população
-- e agora não mais tão-somente a população, mas a própria formação social
capitalista como um todo -- passa por um estágio que deve anteceder à sua
abordagem especifica e direta, e a questão passa a ser exatamente o problema
posto em seus termos mais ge-rais: o de saber por quais categorias simples e
fundantes se deve começar para alcançar uma dada realidade (totalidade)
concreta. Assim, muito antes de se chegar à população ou ao conceito de modo de
produção (o capitalista, no caso), o itinerário está cheio de paradas
obrigatórias que vão desaguar não só na população (dividida e formada por
classes sociais) como na totalidade que a contém e a reproduz em sua
especificidade histórica. Trata-se, portanto, de cindir (não, obviamente, como se
faz com o método cartesiano) o objeto até chegar a seus elementos mais simples
e centrais -- noções, conceitos, categorias, leis e relações. Por exemplo: a
mercadoria e, dentro dela, trabalho, valor, mais-valia, etc., são os elementos
simples decisivos, sem os quais, todavia, sem viagem de retomo jamais o
analista lograria caracterizar o todo (população, sociedade, etc.) como uma
síntese verdadeiramente dialética. Só desta maneira a categoria totalidade
estará pronta e apta para uso científico e, naturalmente, para as exigências da
práxis social,7 porque só desta forma pode-se evitar uma visão caótica do todo, o
que só é possível se se descobre as relações, leis e categorias-chave -- e,
como pressuposto, uma hierarquia de determinações, em processo, entre elas --
capazes de dar acesso científico ao entendimento da população e do todo social
como uma totalidade una e articulada, embora contraditória em sua essência. De
resto, esta articulação, que se desencadeia por todo o edifício social numa
movimentação que não é funcional,
linear, mecânica, natural, mas
dialética, tem em alguns pon-tos nodais suas principais determinações.
Quando a
totalidade está assim posta ou reposta, ficam devidamente ressaltados alguns de
seus traços constitutivos universais: em primeiro lugar, ela aparece como uma
rede de relações, as fundantes e as demais, a partir de uma determinada
centralidade; em segundo, ela simultaneamente aparece como uma unidade concreta
das contradições que se chocam no seu interior e que exatamente expressam seu
conteúdo e seu movimento; em terceiro, fica evidenciado o fato de que qualquer
totalidade contém totalidades a ela subordinadas -- totalidades internas e
inferiores -- e está contida em totalidades mais abrangentes, mais complexas e
situadas numa escala superior; em quarto, e por último, fica também evidenciado
o caráter histórico, portanto transitório, da totalidade, de qualquer
totalidade dada. Nisso reside, finalmente, a categoria totalidade do ponto de
vista da dialética materialista. É essa categoria que o método de Marx revela:
uma totalidade jamais idealizada, porque esse método não finge que constrói o
conhecimento, como fazem as grandes formulações idealistas, por meio de um
seriado de associações de ideias total ou parcialmente arbitrárias -- porque
descoladas dos aspectos decisivos do real concreto, em cuja transformação o
sujeito que a pensa age direta e ativamente.
Mas, por
onde se deve abordar analiticamente determinada totalidade? Esta é uma questão
da maior importância para todos os que realizam investigações de caráter
científico, mormente quando se trata da análise de totalidades sociais. No que
se refere à questão, Karel Kosik (1976, p. 31) tem a seguinte opinião:
Aquilo de onde a ciência
inicia a própria exposição já é resultado de uma investigação e de uma
apropriação crítico-científica da matéria. O início da exposição já é um início
mediato, que contém em embrião a estrutura de toda a obra. Todavia, aquilo que
pode, ou melhor, deve constituir o início da exposição, isto é, do
desenvolvimento científico (exegese) da problemática ainda não é conhecido, no
início da investigação. O início da exposição e o início da investigação são
coisas diferentes. O início da investigação é casual e arbitrário, ao passo que
o início da exposição é necessário.
E, mais
adiante, na mesma obra, ele conclui:
O Capital, de Marx, começa ...
com a análise da mercadoria. Mas, como a mercadoria é uma célula da sociedade
capitalista, como é o início abstrato cujo desenvolvimento reproduz a estrutura
interna da sociedade capitalista, tal início da interpretação do resultado de
uma investigação, o resultado da apropriação científica da matéria. Para a
sociedade capitalista a mercadoria é a realidade absoluta, visto que ela é a
unidade de todas as determinações, o embrião de todas as contradições ....
Todas as determinações ulteriores constituem mais ricas definições ou
concretizações deste ‘absoluto’ da sociedade capitalista .... Na investigação o
início é arbitrário... (KOSIK, 1976, p. 31)
Já da
afirmação feita pelo mesmo Kosik (1976), de que a mercadoria é a realidade
absoluta da sociedade capitalista, e, complementarmente, de que todas as determinações ulteriores constituem
mais ricas definições ou concretizações deste 'absoluto' da sociedade capitalista,
pode-se deduzir que a assertiva de Kosik acerca da casualidade da investigação
científica de uma totalidade deve ser relativizada.
Toda
totalidade tem suas categorias-resumo, suas unidades
de todas as determinações, categorias mais densas e que, por isso mesmo,
devem ser colocadas como chaves da própria investigação e não só da exposição.
Em tese, toda absoluta primeira investigação tem, de fato, algo de arbitrário,
mas é preciso dar-se conta de que toda verdadeira investigação científica não
constitui nem um ato nem um inicio isolado e absoluto: antes é também um
processo social e histórico de produção do conhecimento, ou seja, quase nunca é
uma investigação totalmente nova e sem antecedentes que legaram patamares e
pontos de partida criticamente abordáveis -- com continuidades e rupturas.
Assim, à medida que a própria investigação avança -- e que, portanto, as descobertas
de categorias sucessivas vão sendo feitas --, as categorias-chave vão
aparecendo, revelando as suas potencialidades no sentido atrás apontado e vão
dando ordem à investigação à medida que vão revelando o caráter totalizante que
possuem, de tal maneira que, depois de certo desenvolvimento da própria
investigação, a casualidade vai sendo substituída pela necessidade no mesmo
passo em que vão avançando, sucessivamente, as novas conexões entre categorias.
-- Tal fato, se é verdadeiro para a continuidade de uma mesma investigação,
passa a ser mais verdadeiro ainda para investigações futuras iniciais, nas quais aquelas categorias
tomam-se pontos de partida necessários para os novos esforços e seus
respectivos avanços.
Seria,
de fato, um contrassenso e uma concessão ao empirismo manter uma investigação
em eterno compasso de casualidade e arbitrariedade, não só depois da descoberta
das categorias-chave dentro de um mesmo processo de investigação como entre
vários e sucessivos processos de investigação posteriormente iniciados, nos
quais aquelas mesmas categorias podem e devem ocupar destaque gnosiológico e
lógico -- da mesma forma como seria um contrassenso (uma atitude dogmática) não
considerar tais categorias passíveis de crítica e, portanto, de possíveis
revisões de alcance variável.
A
considerar como legítima a assertiva absoluta de Kosik de que todo processo de
investigação é necessariamente casual - e não só, como pensamos, apenas os
processos absolutamente pioneiros e iniciais de investigação e, assim mesmo,
não de maneira absoluta --, imputa-se à investigação, vista como um processo
que une esforços de várias procedências e, inclusive, de várias gerações, uma
circularidade que se estaria reproduzindo quase sempre do mesmo ponto de
partida. No conjunto do processo histórico geral de produção do conhecimento,
esses inícios absolutos das investigações constituem a exceção, não a regra.
Cada todo exposto constitui, a nosso ver, uma sequência de categorias dispostas
que deve ser tomada como um ponto de partida necessário a cada nova
investigação. E nem é por mero acaso que Marx, no texto que temos diante de
nossa vista, insiste em dois métodos de estudo, não só de exposição, da
economia política: aquele que ele atribui à nascente
economia (que, a seu juízo, constitui o método falso), e o outro que ele
reivindica como o certo, o que parte das categorias simples que constituem
chave para o êxito do processo de totalização teórica.
A longo
prazo, no plano do desenvolvimento histórico de toda e qualquer ordem de
investigação rigorosamente científica, toda investigação tende a coincidir numa
mesma ordem categorial, até mesmo quando a análise revela a necessidade de
ultrapassagem, parcial ou total, desta ou daquela categoria ou mesmo de
eventuais conjuntos de categorias. Destarte, podemos concluir que toda
totalidade possui suas categorias-chave e que, no processo de investigação de
cada uma delas, devem-se tomar categorias já comprovadamente eficazes para resultados
rigorosamente científicos ou, em se tratando da primeira vez e do primeiro
esforço de teorização/investigação, devem-se pinçar as categorias-chave à testa
da análise tão logo sejam descobertas e identificadas como tais.
Desta forma, o empirismo vai sendo ultrapassado
no próprio curso da investigação, à medida que a necessidade vai ultrapassando,
nela e com ela, a casualidade aludida. Deve-se notar, de resto, que, no texto
aqui analisado, Marx já está definitivamente rompido, distante e diferenciado
de Hegel, no que diz respeito às relações entre o ser e o pensamento: o
pensamento agora não sai em busca de ideias em
si mesmas, mas de ideias (noções, categorias, conceitos, leis, etc.) que
são capazes de expressar o mecanismo central de constituição e articulação do
real concreto, a essência desse real concreto. Já as duas buscas mais
fundamentais estão aqui combinadas numa mesma perspectiva, num mesmo movimento:
a dos elementos simples e decisivos do concreto e a do uso abstrato do conceito,
dois dos pilares centrais do método dialético de Marx. Cai por terra o
princípio hegeliano de que é na ideia que reside esse mecanismo e seu impulso
primário. A inversão gnosiológica -- que está inteiramente montada sobre
rigorosos fundamentos ontológicos -- está definitivamente feita (HEGEL, 1968). O método dialético e materialista já
está posto e, embora não totalmente desenvolvido, na sua idade maior -- e, para
concluir, já está colocada, no plano teórico, a questão proposta, a do início
da abordagem analítica de determinada totalidade.
N o t a s :
1 - Mais
adiante será visto por que a afirmação de Lukács de que as relações objetivas
são sempre determinadas não implica - ou não expressa - um
determinismo objetivo (absoluto) no qual o elemento subjetivo não
esteja presente com sua eficácia específica.
2 - A
propósito do impacto altamente negativo causado pelo abandono dessa categoria
dialética nos domínios de importantes segmentos da historiografia
contemporânea, consultar a obra de François Dosse (1994).
3 - Alguns
autores e algumas concepções, notadamente no âmbito da sociologia e fora da
esfera teórica do marxismo, empregam o conceito de todo ou totalidade sem a
observância dos pressupostos de que se fala mais acima, A propósito, escreve
Kosik: ... a categoria da totalidade atingiu no
século XX uma ressonância e notoriedade, mas ao mesmo tempo se viu
continuamente exposta ao perigo de ser entendida unilateralmente ou de se
transformar no seu oposto, isto é, de deixar de ser um conceito dialético. O
sentido principal das modificações introduzidas no conceito de totalidade
durante os últimos decênios foi a sua redução a uma exigência metodológica e a
uma regra metodológica na investigação da realidade. Esta degeneração do
conceito resultava em duas banalidades: que tudo está em conexão com tudo, e
que o todo é mais do que as partes. (KOS1K, 1976, p. 34)
4 -
Corno se verá em todo este escrito, o termo estrutura não comporta qualquer
identificação com o significado que recebe em tendências ou escolas que, ao
atribuir uma conotação de determinismo absoluto ou da mais completa ausência da
ação social ao conceito, na verdade não fazem mais do que proceder a uma
inaceitável hipóstase deste.
5 - A esse
respeito, o leitor pode consultar o excelente livro de Roman Rosdolsky (2001),
Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx, nomeadamente o Apêndice II.
6 - A
dificuldade de captar todo um conjunto representativo de mediações num dado
processo social sempre foi um grande obstáculo às predições de movimentos, ora
para mais, ora para menos, mesmo por parte de leitores de conjunturas em
perspectiva do porte de Marx, Engels, Lenin e Trotski. A análise desse tipo de
dificuldade a saber: a questão do tratamento que deve ser dado às mediações nas
análises e predições, pelo método marxista, das análises de conjunturas — será
abordada em capítulo próprio neste mesmo estudo.
7 - Esta
afirmação não supõe, como já foi visto em capítulo anterior, que a elaboração
dessas categorias seja um ato que anteceda ou que esteja acima ou fora da
práxis social, como uma postura meramente contemplativa — no estilo platônico,
por exemplo — da produção do conhecimento, mas, ao contrário, simultaneamente
nela e com ela. Nos termos de marxismo não
existe coisa mais estranha ou inútil do que um pensamento que elabora distante
de uma inserção prática no ato de transformação da realidade que é,
simultaneamente, compreendida para ser transformada e transformada para ser
continuamente compreendida.