Nicolao Merker - (1931 – ), ensaísta, comunista militante, filosofo, historiador e docente universitário italiano.
Artigo extraído de Marxismo e storia delle idee, pp. 115 a 47, Editori Riuniti, Roma, 1974.
Tradução: Frank Svensson
Nota do tradutor: O interesse pelo conteúdo do texto aqui
apresentado deve-se ao fato de que crítica da arquitetura na formação de seus
profissionais limita-se sobremodo à oferta de disciplina Teoria e História da
Arquitetura limitando o conhecimento da mesma a sua historiografia.
A natureza especifica das ideologias filosóficas
Vejamos o que esses textos de
Marx e de Engels apresentam de específico para uma situação marxista da
historiografia filosófica. Ainda não temos indicações sobre a estrutura formal
particular das categorias filosóficas, sobre a maneira conceptual e técnica
como as categorias transmitem os conteúdos históricos, indicações que acreditamos
poder extrair de outro texto de Marx no qual nos deteremos mais adiante. Não
parece haver sido suficientemente analisado pela filologia marxista como fonte
de um método válido também para a historiografia filosófica.
Primeiramente concluamos sobre os
textos de que acabamos de falar. Eles nos dizem:
1° - que a economia determinando
os eventos filosóficos somente de maneira muito mediata, não basta, para
explicar a problemática de uma época, considerar exclusivamente o seu
desenvolvimento econômico;
2º - que o material conceptual
pré-existente exerce uma influência decisiva na maneira específica como cada
época elabora seus próprios problemas filosóficos, quer dizer, que cada época
não pode tomar consciência das solicitações objetivas histórico-materiais (ou
das realidades concretas) senão graças a um veículo cultural bem determinado,
constituído antes de tudo pela soma das ideias e das mediações conceptuais que
cada geração recebeu das gerações passadas; e,
3º - que, cada geração utilizando essa herança de
mediações conceptuais num contexto de circunstâncias históricas diferentes, o
ponto em que cada época atinge a mais alta consciência de suas próprias
solicitações histórico-materiais coincide com o momento em que, para poder agir
praticamente no contexto das circunstâncias históricas diferentes, a
consciência da época rompe parcial ou completamente o esquema de mediações que
herdou, superpondo ou mesmo substituindo esse esquema por novas elaborações
teóricas, novas mediações, adaptadas em maior ou menor medida aos problemas que
a nova práxis impõe.
Nem tudo é utilizado ou retomado
da mesma maneira. Engels, por exemplo,
falando das relações suas e de Marx com o método lógico de Hegel, observava que
esse método idealista não podia, bem entendido, ser empregado para tratar dos fatos obstinados da economia política. Para desenvolver uma concepção de mundo que fosse mais materialista que todas as
concepções anteriores, mas que, apesar
disso, dentre todo o material lógico existente, era o único elemento ao qual se pudesse pelo menos ligar alguma coisa.29
Isso significa que o
conjunto do material conceptual pré-existente, o conjunto das elaborações
metodológicas anteriores foram essencialmente discriminados no sentido de que
se afastaram deles os aspectos (Engels faz referência ao velho racionalismo
metafísico de Wolff, que havia voltado à moda então), que não eram em nenhum
caso adaptados aos problemas novos (a economia política, a concepção
materialista da história).
Pelo contrário, tornam-se objeto
de urna apreciação crítica os aspectos que, na forma que se apresentam
(dialética hegeliana radicalmente
abstrata, especulativa), estão absolutamente
deslocados;30 por outras palavras, nem sequer estão por si
mesmos adaptados às novas exigências histórico-materiais. Podem contudo, da crítica profunda a que são submetidas -- como de fato, depois da
crítica, apareceram na Introdução de 1857
à Crítica da Economia Política, de Marx -- as linhas de um método dialético
novo, isto é, de uma maneira de compreender as abstrações adaptada às novas
exigências histórico-materiais impostas pelo presente.
Numa passagem célebre do Prefácio
da Contribuição à Crítica de Economia
Política, Marx salientava que quando se quer estudar uma época de
perturbações econômicas e sociais,
é preciso distinguir sempre entre a perturbação material (que se pode
verificar de uma maneira cientificamente rigorosa) das condições econômicas da
produção, e as formas ideológicas sob as quais os homens tomam consciência
desse conflito e o levam até o fim,
31
está implícito que o estudo das
transformações das formas ideológicas
não pode ter uma precisão da ciência natural, e isso justamente por
causa da ação que todo o complexo material de pensamento das mediações
conceptuais pré-existentes exerce ao nível das formas ideológicas, influenciando-as de forma variada. Por outras
palavras, a distância entre a possibilidade da reconstrução exata da base
histórico-material e a dificuldade, por outro lado, de controlar a
correspondência que as elaborações histórico-conceptuais têm com a própria base
depende do fato de não ser dito que, em regra geral, os instrumentos
categoriais que os homens utilizam tenham, falando com propriedade, contido os
interesses concretos da época. Esses interesses, por outras palavras, o ser social real de uma época,
retratam-se na consciência do filósofo de preferência segundo módulos
conceptuais pré-existentes. Segundo um patrimônio ideológico de mediações, por
um lado, já fixado na esfera mais ampla da consciência social31 dessa época, e por outro lado, registrado em
seguida de acordo com as diferentes combinações que se apresentam no quadro
mais restrito da formação pessoal do indivíduo.
Na realidade o modo de transmissão
do material pré-existente é tornado muito complicado pela morfologia específica
das ideologias em geral e das construções filosóficas em particular. Essa foi a
dificuldade posta em evidência por Gramsci quando observara que uma das características dos intelectuais
como categoria social cristalizada, em outros termos, como categoria que se
concebe ela própria como uma continuação ininterrupta no decorrer da história, é em primeiro lugar, ligar-se, na esfera
ideológica, a uma categoria intelectual anterior por meio de urna mesma
nomenclatura de conceitos.32
O problema torna-se então o de examinar se realmente a identidade de termos assim constituida é também uma identidade de conceitos; examinar em que medida uma terminologia idêntica seria na realidade, eventualmente, empregada para designar conteúdos sociais realmente novos. Por fim, procurar quais grupos sociais, mesmo na situação nova, ainda estão no plano ideológico, imersos na cultura de situações históricas que precedem algumas vezes mesmo a ultrapassada mais recen-temente.33
O problema torna-se então o de examinar se realmente a identidade de termos assim constituida é também uma identidade de conceitos; examinar em que medida uma terminologia idêntica seria na realidade, eventualmente, empregada para designar conteúdos sociais realmente novos. Por fim, procurar quais grupos sociais, mesmo na situação nova, ainda estão no plano ideológico, imersos na cultura de situações históricas que precedem algumas vezes mesmo a ultrapassada mais recen-temente.33
Num segundo tempo, observava
ainda Gramsci, as filosofias, na qualidade de construções sistemáticas, são expressões puramente (ou quase) individuais,34 nas quais, ao
lado do aspecto historicamente atual, isto é, correspondente às condições de vida contemporâneas. Estando em
presença de uma ideologia historicamente orgânica, logo necessária a uma dada
estrutura econômico-social, existe sempre uma parte que, seja por estar ligada
às filosofias anteriores por puras necessidades
exteriores e pedantes de arquitetura do sistema, seja simplesmente por
refletir as idiosincrasias pessoais do
filósofo,35 é abstrata, no sentido pejorativo do termo. É por isso que, a fim de não con-fundir essas
deformações individuais e arbitrárias do material de pensamento pré-existente
com a ideologia como superestrutura organicamente necessária, Gramsci
salientava o risco que existe em pensar que a filosofia de uma época se
identifica com tal ou tal sistema individual: Ela é o conjunto de todas as filosofias individuais e de tendência,
mais as opiniões científicas, mais a religião, mais o senso comum,36 ou
ainda: ela não é a filosofia de tal ou
tal filosofo, nem de tal ou tal outro grupo de intelectuais, nem de tal ou tal
grande parte das massas populares, mas uma
combinação de todos esses elementos que culmina numa direção determinada.37
Tendo em conta todas essas
indicações, a filosofia de uma época aparece como um conjunto lógico-histórico
constituído de uma espécie de média composta
a) das solicitações
histórico-materiais que emergem como dificuldades históricas e exigências
objetivas, ligadas so ser social, que os filósofos equacionam como
problema e resolvem; e
b) das formas ideológicas ou de
uma atividade histórico-racional que a consciência da época utiliza como função
operacional (conscientemente ou não) para produzir as mediações e as soluções
dessas solicitações e dessas dificuldades.
A validade ou o alcance histórico das filosofias
A partir de qual perspectiva uma
historiografia filosófica marxista pode iniciar concretamente um reconhecimento
e uma reconstrução dos dados de fato, isto é, daqueles fatos ideológicos
circunstanciados e determinados constituídos pelas orientações, os métodos e
os sistemas filosóficos (combinados
com as opiniões científicas, a religião, o senso comum etc., conforme as observações de Gramsci)?
Será preciso antes de tudo, com
escrúpulos filosóficos rigorosos, joeirando os documentos, ou seja, os textos,
determinar o que os filósofos de uma época realmente quiseram dizer propondo
suas soluções: dado que estas não representam outra coisa senão a maneira
particular, histórico-racional, pela qual a consciência de uma época tentou
transmitir certas solicitações histórico-materiais determinadas do seu tempo. Uma primeira indicação sobre o grau de
validade objetiva e de verdade das elaborações conceptuais -- por conseguinte,
sobre o fato de que elas não são elucubrações individuais e arbitrárias -- é
constituída pela medida segundo a qual elas apresentam uma certa homogeneidade
e uma certa congruência funcional com as suas solicitações histórico-materiais,
isto é, com os problemas reais (dessa época, dessa sociedade, dessas classes). O processo de mediação devia esclarecer e
conduzir a uma solução; por conseguinte, no plano teórico.
A eficácia das elaborações
individuais é diretamente proporcional à possibilidade e à capacidade, por
parte dos intelectuais que as produzem, de coordená-las no âmbito de uma teoria
geral, de um sistema orgânico de mediações conceptuais que sirva para consolidar
as conquistas reais realizadas por toda a sociedade ou por uma nova classe
histórica, e para atingir objetivos ulteriores (pensa-se, por exemplo, na
filosofia dos Lumières como expressão
filosófica da burguesia, que se estava tornando uma classe hegemônica).
Definitivamente, e aqui
recorremos ainda a Gramsci, pode-se dizer
que o valor histórico de uma filosofia pode ser 'calculado' pela eficiência
'prática' que ela adquiriu. Se de fato toda
filosofia é a expressão de uma sociedade, essa filosofia deveria também reagir sobre a sociedade,
ocasionar certos efeitos, positivos e negativos,38 e a medida
segundo a qual ele é um fato histórico
e não uma elucubração individual (tem, pois, um alcance histórico) é a medida
precisa segundo a qual a filosofia superestrutural (ideo-logia) reage sobre a
estrutura. Em suma -- ainda Gramsci --, a elaboração teórica é válida quando,
construída sobre uma prática determinada,
é uma teoria que, coincidindo e
identificando-se com os elementos decisivos da própria prática, acelera o
processo histórico em marcha, tornando a prática mais homogênea, mais coerente
e mais eficaz em todos os seus elementos, quer dizer, potencializando-a ao
máximo, ou então também quando, inversamente, uma posição teórica determinada tem a capacidade de organizar o
elemento prático indispensável à sua utilização.39
Sob esse aspecto, os problemas
que uma época deixa propostos e, por conseguinte, transmite e difere para
posteriores problematizações e elaborações, são localizáveis e surgem, no plano
teórico, no momento em que a mediação histórico-racional tentada diverge e afasta-se das solicitações histórico-materiais, evitando-se por eliminação na
heterogeneidade ou por falta de congruência com elas. Nesse caso, então, as
soluções propostas são ineficazes, mesmo colocadas do simples ponto de vista do
seu funcionamento lógico, pois são metabases
de outra espécie. Na realidade soluções de acomodação (ou de compromisso,
de um ponto de vista ideológico) toda vez que, diante de situações
problemáticas novas, as mediações conceptuais propostas tomam o caminho da
menor resistência e pretendem resolver os problemas especificamente novos
servindo-se de critérios metodológicos e de coordenadas aciológicas carregadas
de peso pela tradição. Ou então quando as mediações categoriais, embora novas
na sua forma, chegam a ter uma incidência apenas parcial sobre os conteúdos,
visto que estes, como é o caso, por exemplo, em Hegel, são superados por
aquelas e situados numa dimensão que afasta deles a especificidade material. Ao
mesmo tempo que as soluções falhas porque não pertinentes, a filosofia de uma
época (ou mesmo de um único filósofo)
transmite então o inventário de um conjunto de solicitações histórico-materiais
detectadas mas mal dominadas, cuja permanência na qualidade de resíduo não
mediatizado exerce uma ação perturbadora sobre todo o curso do pensamento
ulterior. E no entanto, cada dificuldade objetiva que a permanência de resíduos
não mediatizados representa constitui aqui, por sua vez, para o pensamento sucessivo,
um estímulo para problematizar de novo esses resíduos e para elaborar
instrumentos conceptuais mais funcionais em relação à sua mediação e à sua
solução em perspectiva.
Em contrapartida, aqui está uma
segunda indicação sobre a verdade ou a validade lógico-histórica das conclusões
a que chegam uma época ou um filósofo: nos é dada pela medida em que as
soluções das interrogações e dos problemas suscitados pelas solicitações
histórico-materiais da época contribuíram com mais do que se lhes pedia. Apresentando
mediações que esclarecem não só os aspectos particulares contingentes, mas
englobam também os componentes mais gerais e tendentes ao universal. Ao mesmo
tempo que as soluções particulares e bem sucedidas, a filosofia de uma época
(ou mesmo um único filósofo) transmite neste caso um patrimônio de médias
conceptuais que, em virtude da sua generalidade histórico-racional, contêm
indicações de alguma maneira adequadas sobre a experiência das gerações
sucessivas. O presente atual pode,
assim, utilizar ou escolher como antecedentes lógico-históricos de sua própria
problemática: em suma, como soluções parciais, apresentadas pela história, de
problemas recorrentes da práxis humana.
As recepções e as interpretações
sucessivas de um patrimônio histórico representam na realidade, em sentido
amplo, o índice da sua eficiência ou do seu alcance prático, isto é, da sua
capacidade de atuar sobre os homens (ao nível da influência ideológica) bem
mais longe que e além das realizações contingentes que esse patrimônio conceptual
pode ter tido na práxis imediata, na sociedade e na ideologia do período
durante o qual ele se constituía. Mas as maneiras particulares como a herança
de uma época é acolhida ou repelida, a transcrição e a transformação ou ainda a
intensificação diferente que essas solicitações problemáticas sofrem, a
permanência de lugares comuns na sua avaliação ou a repetição de equívocos e
deformações relativas à função do seu patrimônio concep-tual: toda a
fenomenologia do processo de mediação graças ao qual as ideias de uma época
passam às gerações sucessivas é um aspecto que tem uma incidência fundamental
se quiser tentar determinar quais componentes de um patrimônio historicamente
delimitado por solicitações, problemas e soluções estão historicamente esgotados.
Por outras palavras, iniciaram e terminaram a sua função de ideias operativas
(de ideologia) no âmbito circunscrito dessa época, e quais componentes,
contrariamente, ainda têm algo a dizer numa transcrição ou avaliação moderna.
A recepção seletiva que as épocas
sucessivas reservaram a um patrimônio anterior pode oferecer, desse ponto de
vista, uma indicação que não é despresível no âmago do problema de saber quais
são, numa época dada, as solicitações, os problemas e as soluções que, em
relação à experiência e às necessidades do presente, devem ser considerados
como precedentes puramente cronológicos, como acidentalidades históricas não essenciais e sem desenvolvimento
possível, porque esgotadas de solicitações, problemas e soluções daquela época
somente, e .que constituem, ao contrário, um a mais diacrônico, no sentido de que são antecedentes que o
presente ainda pode escolher e utilizar para resolver suas próprias
dificuldades.
Pode-se supor que esses
antecedentes (justamente na medida em que são os antecedentes de um cronológico
consecutivo, que é entendido, pouco a
pouco, como um presente em relação a seu próprio passado). Contudo, devem ter necessariamente uma
conotação diagnostica específica, que é na realidade a que os distingue dos
puros momentos do passado. Por outras
palavras, que elas sejam, apesar da sua historicidade, isto é, na sua vinculação
ao passado, elementos que correspondem de certa forma aos problemas que o
presente apresenta. Pelo menos tendencialmente homogêneos nas estruturas problemáticas
e nas soluções propostas e projetadas pelo presente. Em outros termos, o
patrimônio das médias conceptuais (histórico-racionais), elaboradas por uma
época do passado, pode servir, isto
é, ser funcional no que se refere à experiência do presente ou ainda
(concretamente) no que diz respeito aos problemas e interrogações que o
presente deve resolver com sua própria práxis
.
Unicamente na medida em que a
experiência atual do presente saiba
localizar e escolher, nesse patrimônio, os antecedentes que não são negativos em relação às solicitações
histórico-materiais com as quais, na práxis e em teoria, o presente deve
acertar contas com os antecedentes que, em suma, não revelam uma orientação
contrária à tendência ou à direção do progresso humano. A um antecedente dessa espécie aconteceria
faltar, na realidade, a única conotação essencial que o transforma em
antecedente lógico-histórico (no passado) de um consecutivo (isto é, precisamente do presente, que se desenvolveu a
partir desse passado e não de outro qualquer).
Uma conotação como essa consistindo nesse a mais da universalidade (histórica) graças ao qual uma solução ou
uma mediação de problemas -- ou mesmo apenas uma tentativa de solução ou de
mediação -- efetuada numa dada época passada não se esgotou nessa época, mas
encerra elementos e sugestões que se projetam no futuro.
A morfologia das abstrações filosóficas
As ideias filosóficas são
abstrações, no estilo bom ou mau desse termo: um concreto de pensamento; por outro lado, no entanto, a maneira
particular como o real se deposita nos módulos categoriais faz correr o risco
de que a autonomia relativa destes -- isto é, o fato de que eles estão, de um
ponto de vista formal, ligados à realidade por intermédio do veículo
ideológico-conceptual do patrimônio das abstrações transmitido pelas gerações
anteriores -- seja considerada como uma autonomia absoluta, ou, em suma, que
nasça a ilusão segundo a qual as ideias são puras e o pensamento é criador até
mesmo do concreto, além do abstrato.
Depois de as ideias que dominam
uma época serem separadas (...) das
relações que decorrem de um estágio dado do modo de produção, torna-se
fácil, observa Marx, estabelecer um laço
místico entre as idéias dominantes sucessivas,40 apresentá-las
como uma pura proliferação de ideias a ideias (como se, dirá Gramsci
ironicamente, a história da filosofia tivesse um desenvolvimento porque a um
grande filósofo sucede um filósofo maior41
), e ao mesmo tempo considerar os
pensamentos, as ideias, a expressão conceptual, tornada autônoma, do mundo
existente, como o fundamento desse mundo existente. 42
Contudo, as ideias filosóficas --
e não só estas, mas também as abstrações conceptuais em geral -- são também
produções humanas no sentido próprio do termo, produtos dos homens no campo da
atividade mental da mesma forma como, na esfera da estrutura, são produtos dos
homens o tecido de lã e o morim, bem como as relações sociais dentro das quais
eles elabora o morim e a lã.
Isto representa, a partir de A Ideologia Alemã, uma aquisição
definitiva nos escritos marxianos que, de um ponto de vista metodológico geral,
alimenta também o discurso de Marx em Contribuição
à Crítica da Economia Política. Assim,
a Introdução de 1857 parece-nos o
texto do qual uma historiografia filosófica pode extrair indicações essenciais.
Se é certo que a tarefa do historiador marxista da filosofia não é unicamente
localizar o verdadeiro vinculo que liga as elaborações filosóficas
(ideológicas) às relações subjacentes da produção material de uma dada formação
econômico-social, mas principalmente explicar:
a) as mediações formais entre
estas e aquelas ao nível de categorias ou de abstrações mentais. Seja, o lado formal, o modo especifico segundo o qual as representações ideológicas se
constituem, Engels;
b) o processo de transmissão --
tecnicamente ligado a esse lado formal
-- no decorrer do qual um patrimônio ideológico precedente passa à época
sucessiva e, finalmente, a ação reciproca e de retorno que a ideologia (aqui
sob a aparência de elaborações filosóficas) exerce sobre o terreno da estrutura
econômico-social da qual ela nasceu.
Falando desses produtos da
abstração que são as categorias da economia política, Marx as compara
explicitamente aos produtos da consciência
filosófica, ao ponto de incluir na lista que, no final da Introdução,
enumera as questões ainda propostas e a desenvolver com base nos critérios de
método estabelecidos para tratar das abstrações econômicas, mesmo o problema da
historiografia filosófica. Entre os pontos a
mencionar e que não devem ser
esquecidos, há, com efeito, o que trata das relações entre a história idealista tal como foi descrita até aqui e a
história real, e das diferentes
espécies de história escrita até agora, inclusive a história dita objetiva, já fustigada por Marx em A Ideologia Alemã,
e semelhante a ela, a história filosófica.43
Portanto, não parece arbitrário,
pelo menos como hipótese de trabalho, tentar estender às categorias filosóficas
e à sua história os enunciados de método estabelecidos por Marx para as
categorias econômicas e seu desenvolvimento histórico.
A consciência filosófica -- escreve Marx na terceira secção (O
método da economia política) da Introdução
de 1857 -- é feita de tal modo que para
ela o pensamento que concebe constitui o homem real e, em consequência, o mundo
só aparece como real depois de concebido. Do ponto de vista da consciência, o movimento das categorias aparece
como o ato da produção real (...) cujo resultado é o mundo. Do ponto de
vista da consciência -- portanto, também do ponto de vista da consciência
filosófica --, isso é tautológica mente exato,
na medida em que a totalidade concreta como totalidade pensada, como
representação mental do concreto, é na realidade um produto do pensamento;44
por outras palavras, o conjunto da elaboração de conceitos a partir da
visão imediata da representação (...) tal como aparece no espirito como uma
totalidade pensada é um produto do cérebro pensante, que se apropria do mundo
da única maneira que lhe seja possível.45
O fato de servir-se de abstrações
para explicar o concreto -- e o espírito não tem outros meios -- é a maneira
particular como o pensamento, não cria o concreto material (contra a ilusão
idealista de Hegel!), mas simplesmente o
reproduz sob a forma de um concreto pensado, como uma síntese de múltiplas
determinações, logo unidade da diversidade.46
O verdadeiro ponto de partida de
que se formam as categorias, a partir da visão e da representação (Marx já
havia dito isso claramente em A Ideologia
Alemã) é o real material, a economia, os modos de produção e as relações
sociais, mas este é um ponto de partida que não é diretamente visível nas
categorias, pois aparece nelas sob as formas como foi mediatizado pelo
pensamento, pela reprodução mental do concreto material. Os filósofos também,
assim como os economistas, de que Marx trata especificamente, passando da
intuição e da representação do concreto a
abstrações cada vez mais finas,47
a categorias mais gerais e mais simples, acabam
sempre extraindo pela análise algumas relações gerais abstratas determinantes48 que constituem em seguida
as estruturas conceptuais que são o arcabouço dos sistemas filosóficos.
Lemos em Marx que logo que esses fatores isolados, isto é,
as relações gerais, se tornaram mais ou
menos fixados e abstraídos, os sistemas econômicos tiveram início: mas não
pode haver dúvida sobre a analogia entre o processo de formação dos dois tipos
de categorias, econômicas e filosóficas, e dos sistemas que a elas se
relacionam, pois o texto de Marx o destaca intencionalmente.
Os materiais de que trata o
historiador da filosofia não são, pois, o concreto real, o ponto de partida
verdadeiro, mas o abstrato, as categorias, as formas conceptuais, as abstrações
já estabelecidas, o concreto já mediatizado e elaborado pelo pensamento numa síntese de múltiplas determinações em
que ele aparece (... ) como resultado,
não como ponto de partida, se bem que na realidade, na qualidade de
concreto material do qual partiu o processo todo inteiro, ele seja o verdadeiro ponto de partida e, em
consequência, também o ponto de partida da visão imediata e da representação.49
Portanto, mesmo a mais simples e
a mais geral das categorias jamais pode
existir sob outra forma que não seja a de relação unilateral e abstrata de um
todo concreto, vivo, já dado.50
A unilateralidade e a
abstração provêm do fato de que, se o processo se interrompe neste momento,
isto é, no momento em que, da intuição e da representação do concreto, se
passou às abstrações categoriais, a plenitude do concreto representado é
reduzida a uma abstrata determinação,51 quer dizer, perde seu próprio valor
de co-elemento gnóstico na síntese cognitiva, e a representação em si, superada
na pura abstração, adquire, ao contrário, um conteúdo caótico que é
inteiramente empírico não mediatizada, isto é controlada. Só fazendo novamente
a viagem em sentido contrário a partir das formas categoriais gerais
abstratas, para chegar de novo aos pontos de partida reais, ao concreto real já
dado (ou tema real), mas não, desta vez, a representação caótica
de um todo, mas urna rica totalidade de determinações e de relações numerosas,52 se chega ao método científico correto e se obtém a justa e correta reprodução do concreto pela via do
pensamento,53 ajusta e correta síntese de múltiplas
determinações, nem abstrata nem unilateral, isto é, justamente, não forçada
indevidamente, mas na qual -- como em todo método teórico, e o método
historiográfico é indubitavelmente teórico -- o tema, a sociedade, permanece constantemente presente no espírito como
dado primordial.54
Examinamos assim, seguindo o texto
da Introdução de 1857, que círculo
complicado as produções humanas que as categorias são (exprimindo formas de existência, condições de
existência determinadas de uma sociedade
dada55 ) descrevem,
reproduzindo, bem ou mal, corretamente ou não, o concreto material, que papel
determinante assume, nesse processo de reprodução, o lado formal específico
dessas categorias, de que falava Engels.
É a esse lado formal que
precisamos voltar agora, seus diferentes aspectos permitindo-nos conduzir para
uma solução a dificuldade principal de uma historiografia marxista da
filosofia, isto é, dar sucessão histórica do patrimônio categorial, da
transmissão deste de uma época para outra ao nível de formas ideológicas, uma
explicação que não seja nem mítica nem mística (o vínculo místico entre ideias dominantes sucessivas: Marx), mas
materialístico-histórica sem, contudo, recair nos esquemas mecanicistas
legitimamente denunciados pelo marxista Galvano Delia Volpe pelo que eles são,
ou seja, junções empíricas, extrínsecas,
entre superestrutura e estrutura, com, por exemplo, Plekhánov tinha o costume
de fazer.56
Características comuns gerais e específicas determinadas das categorias
Comecemos perguntando-nos, com
Marx, o que torna gerais as
categorias gerais, isto é, as abstrações mais simples cuja ligação com seus
próprios dados primeiros reais não é imediatamente visível.
Aplicando a essas produções
humanas que são as categorias (abstrações) filosóficas o que Marx diz das
categorias (abstrações) econômicas, diremos que todas as épocas da produção, portanto, da produção filosófica
também, têm certas características
comuns, certas determinações comuns. A
abstração em geral é uma abstração racional na medida em que, salientando e precisando bem os traços comuns, ela
nos evita a repetição do processo mental em virtude do qual esse elemento
comum foi, pouco a pouco, no decorrer da história do pensamento, destacado graças à comparação dos outros
elementos colaterais do objeto de análise em questão. Isso significa que,
dentre as características de uma categoria, algumas
pertencem a todas as épocas, outras são comuns a algumas apenas; e certas
dessas determinações categoriais aparecerão
comuns tanto à época mais moderna como à mais antiga, e, sem elas, não se pode conceber nenhuma
produção, inclusive, por conseguinte, a produção das ideologias também. Mas
"esse geral, isto é, o elemento comum abstrato, requer em si, para
poder aparecer, dados primordiais históricos reais concretos; veremos isso mais
adiante.
Nessa passagem, Marx ilustra a
estrutura das abstrações gerais, com o exemplo das línguas, exemplo muito claro
para mos-trar que aqui também se trata do movimento das categorias filosóficas;
da mesma forma, em A Ideologia Alemã
ele havia evidenciado o vínculo estreito que liga a linguagem e a filosofia: a realidade imediata do pensamento é a
linguagem ; não obstante, na linguagem filosófica, os pensamentos, na qualidade de palavras, têm um conteúdo próprio.58 Esse conteúdo particular, isto é, o material
categorial diversificado e diversamente articulado que a filosofia utiliza, compreende
também, no entanto, justamente, as abstrações gerais.
A Ideologia Alemã havia dado uma apreciação fortemente restritiva
dessas abstrações gerais. Visto que, destacadas
da história real, essas abstrações não têm absolutamente nenhum valor, sua
função historiográfica é, no máximo, servir
para classificar mais facilmente a matéria histórica, isto é, muito
simplesmente, indicar a sucessão de suas
estratificações particulares, fornecer uma
síntese dos resultados mais gerais que é possível abstrair do estudo do
desenvolvimento histórico dos homens.59
A verdadeira dificuldade, a saber, a
utilização das categorias no contexto determinado, diz-nos ainda Marx logo
depois, começa quando nos pomos a estudar e a classificar uma matéria concreta
e circunstanciada; e só superamos essa dificuldade partindo de premissas que resultem do estudo do processo de vida real e da ação dos indivíduos de
cada época60'. A dificuldade deixada em aberto aqui, que
é simultaneamente de natureza lógica e histórico-metodológica, chega a uma
solução, na Introdução de 1857, com a
localiza-ção: a) dos aspectos gerais
e comuns a diversas épocas das categorias; b) de suas diferenças específicas ou determinadas conforme
cada época, c) do fato de que as mesmas abstrações muito gerais, em virtude das
premissas reais que as provocaram, são, por sua vez, indício de condições
históricas particulares e mesmo só são práti-camente
verdadeiras no contexto destas.
Voltando ao exemplo das línguas,
no qual a exposição anterior de A
Ideologia Alemã nos autoriza a substituir o termo línguas pelos de filosofias
ou ideologias: daí resulta que de
certa forma as filosofias ou as ideologias mais
desenvolvidas têm leis e determinações comuns com as que são menos
desenvolvidas; enquanto que, por outro lado, elas são dessemelhantes em relação
a esse elemento geral, justamente em virtude dessa especificidade que constitui seu desenvolvimento,
histórico, evidentemente.
O método correto da análise
historiográfica faz então com que, nas
determinações que valem para a produção em geral, portanto, também para a
produção das filosofias e das ideologias, se isole o aspecto da sua unidade
ou da sua comunidade durante várias épocas61 (aliás uma unidade e uma comunidade de fato,
impostas pelo fato material, já assinalado por Marx em A Ideologia Alemã, de
que esses pensamentos estão realmente
ligados entre si pela base empírica 62);
mas que, em proveito do lado comum, que, sem o que seria apenas uma má
abstração unilateral, não se esqueça a
diferença essencial,63 neste
caso a conotação histórica específica com que se apresentam as categorias
filosóficas no decorrer das diversas épocas .e que lhes confere a sua validade
e a sua verdade prática; ao nível das ideologias.
Entretanto, por outro lado -- e
isto é descoberta de Marx na Introdução
de 1857 o caráter de maior abstração formal que as categorias mais simples
e muito gerais têm é, ele mesmo, um lado formal historicamente determinado, no
sentido de que corresponde a (e de que é provocado por) relações reais que são
próprias de uma sociedade desenvolvida.
Da análise da categoria de Smith
sobre o trabalho em geral, Marx
conclui de fato que essa abstração mais
simples, que a economia política moderna coloca em primeira ordem e que
exprime uma relação muito antiga e válida
para todas as formas de sociedade, não aparece, contudo, sob essa forma abstrata como verdade prática, isto é, sob seu aspecto histórico, especifico,
determinado de abstração, senão na
qualidade de categoria da sociedade mais moderna,64 neste caso a
sociedade industrial no que se refere à categoria do trabalho em geral. Mas um pouco mais acima, no texto da Introdução de 1856, Marx havia aplicado
sua formulação às abstrações em todos os domínios, e não unicamente às da
economia política: as abstrações gerais,
quaisquer que sejam, no fim de contas só
têm nascimento com o desenvolvimento concreto mais rico, em que uma característica
surge como comum a muitos, como comum a todos. Deixa-se então de poder penar
isso apenas sob uma forma particular.65
O que Marx dirá mais tarde em O Capital acerca das épocas econômicas --
é menos o que se fabrica que a maneira de fabricar, os meios pelos quais se
fabrica" -- parece, portanto, convir também à produção das ideologias, no
interior da qual a característica distintiva certamente não é o produto, isto
é, a ideologia como tal, mas mesmo o modo como é produzido. Por outras palavras, é a articulação
diversificada e específica dos instrumentos categoriais de que se serve o
pensamento que nos permite decididamente distinguir, mesmo ao nível formal, as
diferentes épocas filosóficas.
Neste ponto da análise do texto
de Marx, parece-nos que os critérios metodológicos para uma historiografia
marxista da filosofia começam, a se delinear cada vez melhor.
O objeto da análise é constituído
pelas superestruturas filosóficas e sua morfologia
histórica. Esta é caracterizada por uma sucessão histórica de elaborações
categoriais, pela transmissão e a recepção ou pela transformação -- de uma
época para outra -- de um patrimônio ideológico. Porém transmissão, recepção e
transformação se fazem precisamente por intermédio dos veículos que são não as
categorias como entidades mentais indiferenciadas (ou, pior ainda, como
hipótese em relações conceptuais eternas e válidas para todos os contextos
históricos), mas na verdade as categorias articuladas conforme as suas características comuns a várias épocas e especificas de uma
época determinada; portanto, é através do jogo e da ligação dialética das duas
características desse elemento conotativo formal
que transparecem, através do filtro das categorias sob a ótica do seu emprego histórico, os condicionamentos materiais.
.
Se este é o resultado
metodológico que parece legítimo deduzir da Introdução
de 1857, resultado que influencia diretamente o trabalho do historiador da
filosofia, isto é, daquele que trabalha no campo muito particular das produções
ideológicas, é preciso salientar enfim que, justamente sob essa ótica, a Introdução, estabelece uma ponte entre
as formulações marxianas clássicas do materialismo histórico e as observações
de certo modo autocriticas de Engels a esse respeito. Oferecem ao problema das relações estrutura/superestrutura
a indispensável solução integrativa ao nível da analise técnico-formal das
categorias. A Introdução, por
conseguinte, representa realmente um texto-chave que não se pode ignorar, uma
metodologia marxista da historiografia filosófica.
N o t a s b i b l i o g r à f i
c a s :
29. “Apreciação da Contribuição à Crítica da Economia Política”,
in Das Volk, 6 e 20 de agosto de 1859, in Estudos
Filosóficos, pp. 127.
30. Ibidem.
31. Marx, Karl Contribuição
... pp 4, 5.
32. Gramsci, Antonio: O
Materialismo Histórico e a Filosofia de Benedetto Croce, Roma, 1971. p. 175..
33. Ibidem.
34. Ibidem.
35. Ibidem.
36. Ibidem.
37. Ibidem.
38. Ibidem.
39. Ibidem
40. MARX & ENGELS. A Ideologia Alemã. pp. 77-78.
41. GRAMSCI, Antonio. O Materialismo Histórico e a Filosofia de
Benedetto Croce.
42. MARX & ENGELS. A Ideologia Alemã, pp. 77-78.
43. MARX, Karl. Contribuição à Critica da Economia Política, pp.
172-173.
44. Ibidem, p. 165.
45. Ibidem, p. 166.
46. Ibidem, p. 165.
47. Ibidem, p. 164.
48. Ibidem, p. 165.
49. Ibidem, p. 165 (grifos em itálico de Nicolao Merker).
50. Ibidem, p. 165.
51. Ibidem, p. 165
.
52. Ibidem, p. 165.
53. Ibidem, p. 165
.
54. Ibidem, p. 166.
55. Ibidem, p. 170.
56. DELLA VOLPE, Galvano. A
Lógica como Ciência Positiva", 1950; atualmente em Obras, sob a
direção de I. Ambrogio. Roma, 1972-1973, tomo 4, p.590.
57. MARX, Karl. Contribuição
à Critica da Economia Política, pp. 150-151.
58. MARX & ENGELS. A
Ideologia Alemã, p. 489.
59. Ibidem, pp. 51-52.
60. Ibidem, p. 52.
61. MARX, Karl. Contribuição
à. , p. 151.
62. MARX & ENGELS. A
Ideologia Alemã, p. 80
63. MARX, Karl. Contribuição
à. , p. 151.
64. Ibidem, p. 169 (grifos em itálico de Nicolao Merker).
65. Ibidem, p. 168.
Nenhum comentário:
Postar um comentário