Nicolao Merker - (1931 – ), ensaísta, comunista militante, filosofo,
historiador e docente universitário
italiano.
Artigo extraído de Marxismo e storia delle idee, pp. 115 a
47, Editori Riuniti, Roma, 1974.
Tradução: Frank Svensson
Tradução: Frank Svensson
Nota do tradutor: O interesse pelo conteúdo do texto aqui
apresentado deve-se ao fato de que crítica da arquitetura na formação de seus
profissionais limita-se sobremodo à oferta de disciplina Teoria e História da Arquitetura, reduzindol o conhecimento da mesma à sua historiografia..
Produção material e produção das idéias
Uma historiografia filosófica de
orientação marxista ou materialista-histórica evidentemente não pode fazer
abstração, como ponto de partida do seu método, das indicações sobre o caráter
superestrutural dos próprios fatos filosóficos. Por outras palavras, dos
problemas e dos sistemas da filosofia sob o seu aspecto de elaborações
ideológicas correspondentes a estruturas econômico-sociais históricas). Indicações
essas dadas por Marx em A Ideologia Alemã
(1845-1846), no prefácio de Contribuição à Critica da Economia Política (1859),
bem como em outras obras. A produção das ideias,
das representações e da consciência -- reza uma passagem célebre de A Ideologia Alemã –
...está de início direta ou indiretamente entressachada com a atividade
material e com as relações materiais dos homens; ela é a linguagem da vida
real.
Esse laço íntimo e direto
significa que
são os homens que são os produtores de suas representações, de suas ideias
etc., mas os homens reais, que agem, tais como são condicionados por um
desenvolvimento dado das suas forças produtivas e das relações a elas
correspondentes, inclusive as formas mais amplas que essas relações podem
assumir.
O desenvolvimento dos reflexos e dos ecos ideológicos desse processo
vital não se explica senão com base no processo real, já que mesmo as fantasmagorias do cérebro humano são
sublimações que resultam necessariamente do processo da sua vida material que
se pode verificar empiricamente e que se assenta em bases materiais.1
A isso acrescenta-se uma carta de Marx a
Annenkov de 28 de dezembro de 1846:
( ) os homens, que produzem as relações sociais de conformidade com a sua
produtividade material, produzem também as ideias, as categorias, isto é, as
expressões abstratas ideais dessas mesmas relações sociais; portanto, as
categorias são tão pouco eternas quanto
as relações que elas exprimem e elas
são produtos históricos e transi-tórios.2
Chegamos enfim às célebres
formulações de 1859 sobre o modo de
produção da vida material, o qual condiciona,
de modo geral, o processo social, político e espiritual da vida; por
conseguinte, na impossibilidade de julgar uma época pela sua consciência de si,
visto que é preciso, ao contrario, explicar essa consciência pelas contradições da vida material, pelo
conflito existente entre as forcas produtivas sociais e as relações de produção;
e chegamos a seguinte constatação:
A humanidade nunca se propõe senão problemas que ela possa resolver; pois
olhando mais de perto, ver-se-á sempre que o próprio problema só surge onde as condições
materiais de resolve-lo já existiam ou
pelo menos estejam em vias de se concretizar.
É absolutamente necessário
insistir, de vários pontos de vista (historiografia filosófica, método de
pesquisa em historia da filosofia) no fato de que as alterações ideológicas
dependem objetivamente das estruturas especificas de uma formação econômico-social.
S6 desta maneira -- citando Marx mais uma vez, o Marx de A Ideologia Alemã -- é possível libertar a historiografia
filosofica dessa maneira de proceder
especulativa em todos os pontos, que consiste em achar que o filosofo
extrai as suas teorias não "das relações
reais existentes entre os outros homens e ele, mas que, em vez disso, as
elabora graças a uma reflexão e uma vontade puras.4 Método em
virtude do qual, transformando as relações reais em especulação, a filosofia liquida
as relações reais, ou seja, as relações
sociais existentes, como a realização imaginaria concreta das categorias que
aparentemente e de forma abstrata haviam sido deduzidas precisamente dessas
mesmas relações empíricas.
O quadro que Marx faz, por
exemplo, da ética kantiana como ponto culminante da elaboração filosófica do século
XVIII alemão é uma ilustração luminosa disso. Enquanto a burguesia francesa se alçava ao poder -- escreveu ele em
A Ideologia Alemã, enquanto a burguesia
inglesa, já emancipada politicamente, revolucionava a industria e dominava
politicamente a Índia e, comercialmente, todo o resto do mundo, os burgueses alemães,
impotentes, só conseguiram chegar a 'boa vontade'. Kant satisfazia-se com a
simples 'boa vontade', mesmo ela não
tendo nenhum resultado, e transferia para mais adiante a realização dessa boa vontade,
a harmonia entre ela e as necessidades, os instintos dos indivíduos.
Essa boa vontade de Kant é o
reflexo exato da impotência, do desanimo e da miséria dos burgueses alemães,
cujos interesses mesquinhos nunca conseguiram se desenvolver para incarnar os
interesses nacionais comuns a uma classe, o que lhes custou serem explorados
continuamente pelos burgueses de todas as outras nações ( ). Foi por isso que
Kant isolou essa expressão te6rica das necessidades que ela exprimia. A vontade
do burguês francês e suas determinantes, que eram motivadas pela situação
material, ele as converteu em autodeterminações puras da vontade livre, da vontade em
si e para si, da vontade humana, transformando-as assim em determinações
conceptuais puramente ideológicas e em postulados morais.5 Portanto, com a conclusão final de
que toda a filosofia alemã moderna, inclusive Hegel e seus epígonos de
esquerda, é uma consequência das relações
pequeno-burguesas alemãs.6
Da mesma maneira, lembrando outro
exemplo de Marx, foi a partir de uma crise real nas relações sociais, a partir
da desagregação do mundo antigo por
conflitos práticos que os filósofos
antigos, os gregos da época de Alexandre, por uma procura que já era um sintoma da decadência interna
desse mundo, foram impelidos a penetrar
na verdade do seu mundo e, naturalmente, descobriram então que ele havia
deixado de ser verdadeiro:7 Portanto, para
apreciar corretamente o verdadeiro significado da última filosofia antiga na
época da desagregação da Antiguidade, bastaria principalmente examinar a situação real imposta a seus
adeptos sob a dominação romana.8
O que existe atrás desses
exemplos dados por Marx é a exigência de efetuar o estudo das produções
filosóficas de qualquer época que seja de modo a, antes de tudo, colocar essa
época sobre o seu suporte econômico,
como disse Mehring a respeito de suas próprias pesquisas sobre o século XVIII
alemão. Sabe-se que, sem ir mais longe, o conceito da miséria alemã, o marasmo econômico-social e político de fundo que
caracterizou a Alemanha durante os séculos XVIII e XIX, elevou-se ao nível de
uma verdadeira categoria historiográfica. Que se pense em Lukács, mas também, bem antes,
em Ludwig Feuerbach, de Engels para explicar, justamente em relação com o
módulo clássico do materialismo histórico, a gênese e as contradições teóricas
da filosofia clássica alemã.
Ora, pôr uma época sobre seu suporte econômico é um ponto
de partida necessário e justo da pesquisa filosófica por dois motivos:
1°) porque toda elaboração
conceptual teórica é de modo geral, em cada época (de fato e abstração feita de
outra coisa por ora), uma maneira de responder a e de ir à frente -- ao plano
formal --- de solicitações histórico-materiais que emergem, em última análise,
da estrutura econômico social dessa época; e
2°) porque, partindo dali, o
historiador da filosofia obtém, para aprender o seu estudo, um ângulo visual
que, pelo menos tendencialmente, subtrai a época ao relativismo subjetivista
daquilo que ela pensa de si mesma.
Obtém-se assim um ponto de vista
que não é forçado a se deter ante a descrição que uma dada época oferece dela
mesma nem a aceitá-la de olhos fechados, quando seus representantes filosóficos
proclamam, por exemplo, que se trataria de uma época determinada pela autoconsciência ou qualquer outra categoria análoga, como se a ideia ou o espírito puro não fossem, na realidade, as formas ideológicas de
que os motivos reais de tal ou tal época se revestiram.9
Precisamente a historiografia
pretensamente objetiva -- que
consiste em conceber as relações
históricas separadas da atividade,10
separadas, portanto, dos homens,
que, desenvolvendo a sua produção material e as suas relações materiais, ao mesmo tempo transformam a sua realidade
bem como seu pensamento e os produtos do seu pensamento11 -- acredita
piamente no que cada época diz de si mesma e nas ilusões que entretém sobre si,12 toma ao pé da letra todas as ilusões dessas épocas e as ilusões filosóficas acerca dessas
ilusões.13 Assim sendo, se a forma rudimentar como se apresenta a divisão do trabalho entre os
indianos e entre os egípcios origina entre esses povos um regime de castas no
seu Estado e na sua religião, o historiador objetivo, que efetuou a separação idealista entre os homens reais e
suas representações, acredita que o
sistema de castas foi a potência que engendrou essa forma social rudimentar,14 como também, em épocas
menos recuadas, se esses historiadores da teoria pura se fundamentam com os temas históricos reais, como, por
exemplo, o século XVIII tratado à maneira de Bruno Bauer, sucede-lhes dar apenas a história das representações, isolada
dos fatos e dos desenvolvimentos práticos que constituem sua base.15
Assim, observará mais tarde
Engels, o ideólogo que trabalha com um
material puramente intelectual possui em todos os domínios superestruturais
uma matéria que, segundo ele,
formou-se de maneira independente no
pensamento das gerações anterio-res e que sofreu sua própria série independente
de desenvolvimentos nos cérebros dessas gerações sucessivas,16
razão pela qual, como Marx já
observava em A Ideologia Alemã, uma
vez admitido que só as ideias e os pensamentos dominaram a história
passada, depois de transformada "a história real dos homens",
torna-se muito fácil denominar história
do 'homem' a história da consciência, das ideias ( ), das representações
estereotipadas, e substituir a história real por ela,17 separar o reflexo ideal dos conflitos reais dos
próprios conflitos18 e torná-lo independente; numa palavra, descrever
um desenvolvimento e uma história das ideias,
um puro encadeamento de ideias e ideias, depois de as haver separado dos indivíduos e de suas condições
empíricas, que lhes servem de base.19
Pôr tudo sobre um suporte
econômico ?
E apesar disso, assentar tudo sobre uma base econômica
não constitui um critério mais justo, nem um critério suficiente; ao contrário,
é um critério perigosamente restritivo para urna historiografia filosófica
marxista, que com isso seria reduzida a um esquematismo simplista, no caso em
que as teorias filosóficas de uma época teriam de ser interpretadas como sendo
condicionadas pela estrutura econômico-social de modo imediato, como se entre a
base econômico-social e as elaborações conceituais (super-estruturais)
existisse uma correspondência pontual mecânica e determinista. Se nos
limitássemos a isso, o método teria precisamente as mesmas carências do
materialismo do objeto, carências
assinaladas por Marx em Teses sobre
Feuerbach. de 1845; por outras palavras, tratar-se-ia (terceira tese) da
simples doutrina materialista da
transformação das circunstâncias e da educação, que, esquecendo que são precisos homens para modificar as
circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado,20 detém-se na recepção teórica das circunstâncias materiais, no seu
protocolo, sem chegar a propor os instrumentos conceptuais como outros meios
formais graças aos quais, conscientemente ou não, e mesmo quando ele exclui
isso em teoria, o filósofo exerce de fato uma intervenção prática nas próprias
circunstâncias.
Todos nós -- escreveu Engels a Mehring em julho de 1893, preocupado
como estava com a possibilidade de o critério metodológico marxiano se
desnaturar em conclusões prematuras e unilaterais –
em primeiro lugar temos chamado atenção, e devemos ter chamado atenção
principalmente para a necessidade de que as representações políticas, jurídicas
e ideológicas em geral, assim como as ações mediatas dessas representações,
sejam deduzidas dos fatos econômicos fundamentais. Todavia, assim fazendo,
negligenciamos em seguida, em proveito do lado do conteúdo, o da forma, por
outras palavras, o modo específico, segundo o qual essas representações etc. se
constituam.21
Essa exortação a uma escrupulosa
prudência de método, em proveito da qual — apesar da dependência do pensamento
(do lado do conteúdo) da realidade
material (histórica, econômica) -- não se deveria abandonar apesar de tudo o
estudo do lado da forma, isto é, a procura dos processos específicos de
mediação pelos quais a realidade se traduz em pensamento, e o pensamento, em
ação prática, essa exortação já estava implícita em outra carta célebre de
Engels, esta dirigida a Joseph Bloch, de 21 de setembro de 1890, na qual Engels
declarava:
... diante dos nossos adversários, deveríamos ter salientado o princípio
essencial que eles negavam o (fator econômico, a produção etc.) e, naquela
época, nem sempre achá-vamos o tempo, o lugar nem a ocasião de dar aos outros
fatores que participavam da ação recíproca o seu lugar,22, ou seja, aos diferentes momentos da superestrutura que também exercem a sua ação no decorrer das lutas históricas e, em muitos
casos, determinam a sua forma de uma maneira preponderante. 23
Finalmente, numa carta a Conrad
Schmidt de 27 de outubro de 1890, depois de observar que no século XVIII a
filosofia e a literatura na França e na Alemanha certamente também foram
resultado de um desenvolvimento econômico,
Engels, todavia, particularizava logo que nesse domínio das superestruturas
a economia não cria nada diretamente dela mesma, mas determina a espécie de modificação e de desenvolvimento da matéria intelectual
existente, transmitida pelos
predecessores, e quase sempre de
maneira indireta, pois são os reflexos políticos, jurídicos e morais que
exercem a maior ação direta sobre a filosofia.24
Em 1892, no prefácio da edição
inglesa de Socialismo Utópico e
Socialismo Cientifico, Engels repetia ainda que as ideias jurídicas,
filosóficas e religiosas não são derivações mecânicas e diretas da economia,
mas os produtos mais ou menos distantes
das relações econômicas dominantes numa dada sociedade.25
Consideremos ainda as passagens
de A Ideologia Alemã referentes à
maneira como cada geração utiliza para seus próprios fins e em situações
modificadas o patrimônio ideológico do passado, e teremos uma ideia
suficientemente completa das indicações que o historiador da filosofia pode
encontrar na teoria geral do materialismo histórico. Em cada época da história,
o mundo é
um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de
gerações cada uma das quais se erguia sobre os ombros da anterior, aperfeiçoava
sua indústria e seu comércio e modificava seu regime social em função da
transformação das necessidades.26
Por conseguinte, a história não é
outra coisa senão a
sucessão das diferentes gerações, cada uma explorando os materiais ( )
que lhe foram transmitidos pelas anteriores, e por isso mesmo, cada geração
continua, pois, por um lado, o modo de atividade que lhe é transmitido, mas em
circunstâncias radicalmente transformadas e, por outro lado, essa geração
modifica as antigas circunstâncias entregando-se a uma atividade radicalmente
diferente.27
De modo que as gerações posteriores são condicionadas na sua existência ( ) pelas
que as precederam, recebem destas as forças produtivas que acumularam e seus
métodos de permutas, o que condiciona a estrutura das relações que se
estabelecem entre as gerações atuais.28
N o t a s b i b l i o g r á f i
c a s :
01. MARX & ENGELS. A
Ideologia Alemã. Paris, Editions Sociales, 1968,p. 51.
02. MARX, Karl. Estudos Filosóficos. Paris, Editions Sociales, 1968,
p.149.
03.-. Prefácio de 1859 a Contribuição
à Critica da Economia Política. Paris, Éditions Sociales, p. 5.
04. MARX & ENGELS. A
Ideologia Alemã, p. 78.
05. Ibidem, pp. 220-222
.
06. Ibidem, p. 223.
07. Ibidem, p. 159.
08. Ibidem, p. 165.
09. Ibidem, p. 71.
10. Ibidem, p. 71 (nota de Marx à margem).
11. Ibidem, p. 51.
12 Ibidem, p. 79.
13. Ibidem, p. 167.
14. Ibidem, p. 71.
15. Ibidem, p. 73. Marx faz referência a Geschichte der Politik, Kultur und Aufklãrung das achtzehnten
Jahrhunderts (História da Política, da Cultura e do Iluminismo do Século
XVIII), de Bruno Bauer. 2 vols.,Charlottenburg, 1843-1845.
16. MARX & ENGELS. "Carta a Franz Mehring de 14 de julho
de 1893", in Estudos Filosóficos. Éditons Sociales, Paris, 1974, p. 249.
17. A Ideologia Alemã, p. 211.
18. Ibidem, p. 212.
19. lidem, p. 363.
20. MARX & ENGELS. Estudos
Filosóficos, p. 48.
21. Obras Completas. Berlim, 1968, tomo XXXIX, p. 96
.
22. Estudos Filosóficos, p. 240.
23. Ibidem, p. 238.
24. Ibidem, p. 246.
25. Socialismo Utópico e Socialismo
Científico. Éditions
Sociales, 1969, 68. Ibidem, p. 170.
26. MARX & ENGELS. A Ideologia
Alemã, p. 55.
27. Ibidem, p. 65.
28. Ibidem, p. 481.
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