Nicolao Merker
Artigo extraído de Marxismo e storia delle idee, pp. 115 a
47, Editori Riuniti, Roma, 1974.
Tradução: Frank Svensson
Nota do tradutor: O interesse
pelo conteúdo do texto aqui apresentado deve-se ao fato de que crítica da
arquitetura na formação de seus profissionais limita-se sobremodo à oferta de
disciplina Teoria e História da Arquitetura limitando o conhecimento da mesma à sua historiografia.
Vinculo histórico-funcional de antecedentes, de consequências, e
circularidade de razio e de fato
Retomando a análise pela qual
havia demonstrado a especificidade histórica da abstração muito geral que o
trabalho representa em Smith, o caráter de abstração determinada que essa
categoria tem, Marx observava que as categorias que exprimem e fazem
compreender as relações complexas e evoluídas da sociedade burguesa permitem
compreender ao mesmo tempo a
estrutura e as relações de produção
de todas as formas de sociedade desaparecidas com as ruinas e os
elementos com os quais ela foi cons-truida.
Certos vestígios, parcialmente ainda não superados, continuam a
subsistir nela, e dos quais certos simples sinais, desenvolvendo-se, assumiram
todo o seu significado.67
Marx recomendava também uma prudência
muito grande no método. Se é verdade que as formações históricas mais desenvolvidas constituem uma
chave para as menos desenvolvidas, isso não
pode ser admitido senão cum grano salis (com um grão de
sal):
1 -- porque a diferença especifica (ou a generalidade maior) das
categorias que expressam as relações mais desenvolvidas não excluem aquelas que
contem também, de maneira mais apagada e
caricatural, etc., as formas precedentes menos desenvolvidas; e
2 --
geralmente a forma posterior considera as
formas passadas como etapas que conduziram ao seu próprio grau de
desenvolvimento e, portanto, ela
concebe-as sempre sob um aspecto unilateral.68
0 alcance dessas observações
reside no fato de incidirem direta, por um lado, na questão da continuidade e/
ou descontinuidade na transmissão de um patrimônio categorial de uma época ou
de uma geração para outra ao nível da estrutura formal interna das próprias
categorias, e por outro lado, no problema do ponto de partida da analise historiográfica.
.
Na realidade, segundo o
paralelismo marxiano entre tipos de abstração e tipos de sociedade, as categorias
determinadas dentro das quais se exprime a ideologia da sociedade mais
desenvolvida, ou sociedade burguesa, constituiriam da mesma forma uma chave
para compreender as diversas formas de
ideologias próprias das sociedades passadas. Mas a chave tem um perfil
duplo: no interior das categorias conceptuais que correspondem à formação
econômico-social mais desenvolvida e mais complexa subsistem, por um lado,
resíduos não superados de ideologias pertencentes a formações econômico-sociais
antigas e historicamente transatas e, apesar disso, numa medida maior ou menor,
transferidas para a nova estrutura ideológica por intermédio do processo de
transmissão do material de pensamento, enquanto que, por outro lado, certos
elementos teóricos já presentes em embrião nas categorias originadas e
utilizadas durante as épocas passadas, não se desenvolvem nem assumem todo o
seu significado senão na época e na sociedade mais moderna ou mais ricamente
articulada, nas quais só então eles se tornam praticamente verdadeiros, isto é, inteiramente correspondentes a um
certo tipo (atual, moderno ou verdadeiramente presente") de práxis humana, social e específica).
No tocante à continuidade na
utilização dos materiais de pensamento anteriores, esta ocorre tecnicamente
graças aos elementos gerais que, nas categorias, são comuns a diversas épocas:
e esse são os elementos que exprimem uma racionalidade ou uma problemática
recorrente e geral devida antes de tudo ao fato de que — empregando as palavras
de Marx -- em cada época o sujeito, a humanidade,
e o objeto, a natureza, são idênticos;69
por outras palavras, em cada época a produção das ideias é uma reprodução
categorial do objeto. Assim, as ideias gerais como ser, devir, identidade e
diferença, particular e universal, unidade dos contrários, unidade e
multiplicidade, essência e fenômeno, necessidade, conteúdo e forma, matéria
etc. representam, como resultados conceptuais, tentativas de estabelecer
relações de coordenação e subordinação entre os objetos, um continuum categorial indubitavelmente
comum a todas as épocas.
Porém, visto que o conjunto das
circunstâncias históricas reais, variáveis e específicas (forças produtivas,
relações sociais etc.), transmitidas por cada época à seguinte, impõe a esta
última suas próprias condições de existência
e imprime-lhe um desenvolvimento determinado, um caráter específico,70 os problemas novos que
são, portanto, específicos dessa época, imporão também, todavia, que no
interior desse continuum sejam pouco
a pouco ultrapassadas à guisa de instrumentos específicos aos quais se referir,
aquelas formulações categoriais que são adaptadas aos problemas determinados a
resolver, ou, em suma, que constituem antecedentes lógico-históricos seus mais
ou menos afastados.
Não é dito que esses instrumentos
ordenam-se segundo uma coincidência mecânica entre a simples sucessão
cronológica das categorias (ou seu continuum
acrônico) e a utilização histórico-funcional destas, ou que, em suma, a ordem
cronológica se identifi-que com a sua ordem lógica de utilização. Pelo
contrário: Platão, por exemplo, não empregou indistintamente todo o patrimônio
conceptual da filosofia grega anterior, mas unicamente, afinal de contas, as
categorias (os gêneros supremos do ser e do não ser) que eram realmente úteis ao seu problema relativo à
tauto-heterologia ou mediação da identidade
da razão com a alteridade ou
multiplicidade das coisas, e que, contudo, aplicadas a esse problema
determinado, a essa fase determinada de desenvolvimento do mundo grego,
receberam o cunho de especificidade que distingue a dialética de Platão da de
Kant ou de Hegel. Da mesma maneira, a problemática mais original e mais viva de
Aristóteles está ligada à maneira específica como ele ultrapassou, interpretou
e empregou criticamente apenas alguns resultados da tradição filosófica
anterior (um certo Platão, mas não Platão todo; uma certa acepção do principio
de não contradição etc.), aqueles portanto, que eram realmente antecedentes
lógico-históricos do seu objeto problematizado (ou presente de maneira
problemática). E assim por diante, o assunto podendo se repetir até Hegel, Marx
e Engels; para estes dois últimos, Hegel inteiro era evidentemente um
precedente cronológico, mas nem todas as partes de sua filosofia eram um
verdadeiro antecedente lógico-histórico.
A perspectiva histórica habitual,
isto é, a sucessão cronológica por assim dizer natural das categorias, surge,
desta forma, invertida. As categorias não se tornam determinantes como
instrumentos de pensamento segundo a morfologia da sua sucessão diacrônica,
mas, ao contrário, segundo a relação na qual se encontram no interior da
filosofia ou da ideologia mais desenvolvida, segundo a ordem de não cronologia
em que as utilizam a filosofia ou a ideologia sempre mais desenvolvida; essa
ordem -- ressalta Marx referindo-se às relações
existentes entre elas na sociedade burguesa moderna -- é exatamente o inverso do que parece ser a sua ordem natural ou
corresponder à sua ordem de sucessão no decorrer da evolução histórica,71 concebida como
estritamente cronológica. Portanto, para as categorias filosóficas também -- à
luz do vínculo dialético, dentro
de um patrimônio ideológico, entre os conseqüentes
específicos atuais e seus antecedentes lógico-históricos --, o que Marx
observou para as categorias econômicas também seria válido: o fato de que é inoportuno e errôneo dispô-las na ordem
diacrônica segundo a qual elas foram historicamente,
isto é, cronologicamente, determinantes. Mas se, considerando tudo o que acabamos
de dizer, em cada época e formação econômico-social, em toda ideologia, em toda
orientação ou todo sistema filosófico, a duração e a funcionalidade histórica
dos instrumentos categoriais são reveladas por um vínculo passado/presente no
qual, de uma vez por outra, é o presente, com suas solicitações problemáticas,
que impõem a escolha de certos antecedentes e não de outros no passado, a
tarefa do historiador da filosofia pareceria articular-se em torno dos
seguintes pontos:
1) um equilíbrio filológico
rigoroso na análise do objeto da pesquisa, a fim de compreender todas as suas
características, sejam gerais, sejam específicas, isto é, o aspecto
gera-abstrato das categorias na especificidade de suas transformações
provocadas pelo presente histórico (pela formação econômico-social
progressivamente presente) tanto
quanto a característica determinada pela qual a abstração categorial em si se
manifesta de uma vez para outra como abstração histórica (a respeito disso,
pense-se outra vez no exemplo marxiano: a categoria trabalho em geral),
2) uma prudência igualmente
rigorosa na distinção, para cada época e cada filosofia examinada, entre as
formas mais desenvolvidas de ideologia e as tendências de desenvolvimento e as
formas atrofiadas ou resíduos que se
mantiveram, distinguindo-as, todavia, segundo a maior ou menor aderência das
formas categoriais às reais estruturas econômico-sociais de fundo. Não com base nas ilusões que as épocas ou os
sistemas filosóficos criam acerca de si mesmos, como quando, por exemplo, à
maneira da síntese historiográfica, especulativa, idealístico-hegeliana, eles
concebem o passado unilateralmente, vendo suas formas como projeções ao avesso
de forma última ou do último sistema, razão pela qual Hegel pôde tranquilamente
concluir que não existe história
verdadeira, já que não tratamos de um
passado, mas do pensamento, no qual o que é histórico, isto é, o passado como
tal, não existe mais, está - morto.72
3) uma escrupulosa elaboração
histórica da articulação formal interna das categorias, a respeito da qual,
como para concluir sua análise da Introdução
de 1857, Galvano Delia Volpe observou: "a ordem histórico-cronológica
ou puramente empírica e analítica das categorias (sistemas) deve ser
substituída pela ordem exatamente inversa, que é a ordem sintético-analítica de
médias hipotéticas de antecedentes e consequentes,
donde todo conceito-médio, sendo a
satisfação de uma solicitação presente ou histórico-material, satisfaz tanto a
solicitação da experiência corno a da razão, mas só a satisfaz e só pode
satisfazê-la experimentalmente: no sentido preciso de que a média de
antecedentes e consequentes, longe de ser absoluta ou definitiva, só é
verdadeira graças à sua corres-pondência
esclarecedora com as solicitações histórico-materiais, ou efetivamente
problemáticas, de que nasceram a pesquisa e o conceito-hipótese.73
Sob esse aspecto, a média de
antecedentes é, portanto, o modo categorial específico segundo o qual um consequente, relacionando-se a uma série
de precedentes específicos (e não a
todos sem distinções, mas aos que correspondem ao concreto a resolver e de uma vez a outra imposto pelas solicitações
problemáticas ou pelas dificuldades da época da pesquisa atual), estabelece uma
ligação funcional concreto-abstrato-concreto, isto é, entre o concreto da
experiência presente da qual parte a pesquisa, as solicitações racionais mais
gerais e mais recorrentes do passado consideradas elas também, entretanto, como
abstrações não meta-históricas e determinadas; e finalmente a convergência das
médias conceptuais -- ou, em suma, do patrimônio ideológico-histórico recebido,
utilizado de maneira crítica e transformado pouco a pouco -- com as
interrogações concretas e progressivamente presentes
da práxis social.
Transfiramos esse círculo concreto-abstrato-concreto
para a esfera de trabalho do historiador da filosofia, que deve analisar
sistemas e orientações ideológicas já estabelecidos historicamente, em que o tema real ou concreto material já está
elaborado pelo pensamento e, portanto, aparece como um resultado do pensamento,
como um concreto de pensamento no
qual o ponto de partida real e material (a sociedade ou tema real, segundo Marx) não é mais diretamente visível.
Como “concreto” inicial, teremos
uma construção ideológica que, na qualidade de concreto de pensamento (qualquer que ele seja: a dialética
descendente de Platão ou a tríada hegeliana, a crítica de Aristóteles a Platão
ou a crítica de Marx a Hegel, as teorias ético-políticas do tempo da Reforma,
ou a ideologia da filosofia das Luzes ou o Estado
de direito kantiano e suas continuações, para enumerar alguns exemplos), já
é por si mesma uma síntese de numerosas determinações conceptuais e, ao mesmo tempo,
na medida em que o historiador trata dela, o objeto inicial da experiência para
o próprio historiador, em suma, o fato a explicar. Esse objeto a analisar, com
suas numerosas determinações, isto é, suas articulações formais particulares
(quer gerais e comuns, quer pontuais e específicas) através das quais a sociedade
ou tema real transparece mesmo assim
ao longo de uma série complexa de anéis ou filtros de mediação, exige, no
entanto, -- precisamente para evidenciar a dialética dessas articulações -- que
se discerne nele os antecedentes lógico-históricos que estão ali por assim
dizer embutidos. Exige, pois, que, do objeto analisado, se remonte ao continuum ou abstrato (histórico) das solicitações racionais do passado que
convergem logicamente para o objeto ou o fato filosófico presentes. Neste ponto, retraça-se de novo a viagem em sentido contrário, para o fato
ou objeto de que partiu a pesquisa, esclarecido doravante como sendo uma
totalidade complexa na qual a síntese-análise categorial de antecedentes e consequentes
lógicos revela a disposição deste numa fase concreta da práxis social. Só então
o historiador da filosofia terá respeitado as indicações do método científico correto de que falava
Marx.
Levando em conta a morfologia
geral histórico-racional das categorias ou produções ideológicas, o historiador
da filosofia teria definitivamente uma chave para avaliar também a estrutura
formal interna de um sistema filosófico, além das ilusões que esse sistema cria
sobre si mesmo. Por exemplo, em Hegel, a ideia da mediação lógica e a idéia,
correlativa, de sistema lógico, não é uma ideia-hipótese, no sentido de que
entre a ideia racional-unitária de sistema
e os dados filosóficos de fato que deviam ser explicados por intermédio dessa ideia
se institui uma circularidade de razão e de fato (fato filosófico, ou seja,
racional-histórico), Os dados de fato, as filosofias historicamente determinadas,
eram vistos, pelo contrário, como manifestações mais ou menos completas da
filosofia, ou seja, do idealismo absoluto, e elas não podiam, pois, sendo
apenas manifestações, reagir sobre a ideia do sistema no sentido de exprimir as
solicitações que eram diferentes deste; solicitações que, de uma ideia de
sistema concebida de maneira problemática, hipotética, poderiam ter sido
recebidas como solicitações suscetíveis (como fatos filosóficos múltiplos) quer
de contribuir, integrando-a ou eventualmente até modificando-a, para a
elaboração dessa idéia, quer mesmo de refutá-la ou de refutar também a idéia da
totalidade especulativa e meta-histórica que está na base desta.
Portanto, a circularidade de que
acabamos de falar é sempre o elemento decisivo que permite avaliar a estrutura
e a funcionalidade formais internas de um sistema. Na realidade a relação entre
a ideia de sistema e os dados filosófico-históricos instaura-se como urna
tensão problemática na qual estes, na qualidade de co-elementos históricos na
formação do sistema lógico, exprimem solicitações autônomas e tais que, em
relação a elas, o sistema possa verificar experimentalmente sua própria
capacidade mediadora e, assim, sua própria validade -- e então a crítica filosófica
também permanece tendencialmente aberta e não condicionada pelo pressuposto de
uma solução absoluta por a priori, realizada e definitiva; ou então a ideia
lógica de sistema reduz a tensão problemática sob o denominador comum
restritivo de sua própria auto mediação e apresenta-se como podendo resolver
tudo -- e então não se pode mais falar dos dados filosófico-históricos corno de
uma experiência (no sentido próprio do termo) em contato com a qual o filósofo
se encontra, visto que, logo que ele se põe em contato com ela, essa experiência perde suas próprias
referências e suas próprias solicitações particulares, para receber a marca da
solução especulativa.
Mas lembramos aqui a crítica de
tipo lógico que Marx teceu contra os processos de hipóstase em Crítica do Direito Político Hegeliano,
de 1843: à superação por especulação dos fatos, de qualquer natureza que sejam,
segue-se por consequência direta a transformação da especulação em empirismo,
de um empirismo que não é mais controlado porque não é mais mediatizado. Disso
resultará que em Hegel, por exemplo, esses elementos lógico-históricos ou fatos
filosóficos particulares que, se bem que constando em sistemas anteriores, não
haviam sido mediatizados por Hegel segundo a sua especificidade, mas
imediatamente ultrapassados, agirão, no seu idealismo, como um resíduo
insuspeito, perturbado filosoficamente, depois recebido acriticamente e por fim
transtornando repetidas vezes o encaminhamento do pensamento hegeliano.
A localização da estrutura econômico-social por meio dos veículos
categoriais
A dupla conversão denunciada por
Marx, do empirismo em especulação e da especulação em empirismo, e as
implicações metodológicas gerais da crítica marxiana sobre o processo de
hipóstase, têm uma incidência direta e ao nível da conclusão sobre a questão
capital da qual partiu toda a nossa exposição: isto é, de que maneira as
relações sociais reais dos homens transparecem na produção das ideologias não
em virtude de seu reflexo mecânico e imediato sobre as ideias, mas, ao
contrário, filtrados pela estruturação completa do caráter formal das representações das categorias etc. As
implicações da crítica marxiana na matéria indicam-nos na realidade também a
complexidade articulada dos filtros formais através dos quais passa
necessariamente uma situação histórica real-material (por outras palavras, uma
fase determinada das relações econômico-sociais com todas as contradições reais
que a caracterizaram) quando ela é registrada conceptualmente. Essas
implicações indicam-nos outrossim que só uma análise atenta da estrutura formal
específica desses filtros permite apreender de modo justo, nem mecanicista nem
determinista, a maneira como a realidade material se reflete sobre e nas
elaborações conceptuais de um filósofo.
Tomamos como exemplo a questão da
origem e da natureza do proverbial conservadorismo de Hegel.
Na crítica feita pelo jovem Hegel
em relação às condições alemãs, Lukács registra oscilações e incertezas que teriam posteriormente engendrado as formas mais diversas de ilusões socialmente
necessárias, mas mais ou menos reacionárias, as quais de-terminaram o
pensamento de Hegel até o fim de sua vida.74
Explicando as
ilusões reacionárias como socialmente
necessárias, isto é, reforçando o apesar de tudo justo critério da miséria alemã em categoria
historiográfica que permitiria esclarecer imediatamente toda uma série de
produções ideológicas, efetuar um salto da estrutura às superestruturas, ainda
não sabemos evidentemente nada sobre a razão lógica do aparecimento destas nem
de sua fenomenologia particular. Pelo contrário, o problema é ver como a conciliação (Lukács) com a sociedade
burguesa que o conservadorismo de Hegel é tem, no interior da filosofia
hegeliana, na sua morfologia, uma força específica que a faz funcionar e a
torna logicamente coerente.
A dificuldade está próxima de sua
solução quando se considera que a realidade histórica, não obstante
ultrapassada por Hegel de maneira especulativa pela mediação ideal, continua a
existir efetivamente com toda a autoridade e a materialidade de seus próprios
conteúdos específicos; e que, nesse duplo tratamento que a realidade sofre no
idealista Hegel (uma vez, de um ponto de vista descritivo, como realidade
histórico-determinada; e outra vez de um ponto de vista interpretativo, como
manifestação da ideia), o fato de tomá-la como uma manifestação da ideia
naturalmente não elimina dela a materialidade manifesta e obstinada. Bem entendido,
pode-se dizer também que, neste sentido, as ilusões chegaram a Hegel por
intermédio do veículo conceptual que é o princípio dialético especulativo: o
qual, dissolvendo a realidade de maneira especulativa (a transformação da
realidade em especulação, segundo a crítica de Marx), mesmo assim deixa
efetivamente subsistir, como antes, essa mesma realidade, cuja determinação
especifica foi ultrapassada apenas pelo princípio, mas cujo conteúdo material
real, tendo permanecido o mesmo, é apresentado corno força -- e, pior, com uma
força agora incontrolada e viciosa: a transformação da especulação em
empirismo, segundo a critica de Marx -- por meio justamente das diversas ilusões reacionárias (as classes como
corporações, o poder legislativo concedido à camada essencial, ou seja, à nobreza de morgado, ao monarca hereditário
etc.).
Em outros termos, o
conservadorismo apresenta-se como uma consequência necessária, como o contra
piso lógico de mediação idealista ou, enfim, como um aspecto do positivismo acrítico que Marx assinalou
como sendo a consequência última da dialética de Hegel.75 Do que resulta
que Hegel foi realmente o primeiro a
expor larga e conscientemente as formas gerais do movimento da dialética;76
é por esse motivo que desse ponto de
vista as categorias da sua filosofia exprimem tendencialmente as rela-ções mais
desenvolvidas da sociedade burguesa; mas muito mais -- e, portanto, sem
privilegiar prematuramente esse aspecto único do pensamento hegeliano -- convém
não esquecer duas coisas.
Em primeiro lugar, Hegel é de
fato um filósofo burguês, mas também um burguês alemão, imerso na miséria de uma classe que,
estruturalmente, já existe com sucesso; mas que, no seu conjunto, ainda é fraca
demais, pouco desenvolvida demais) para travar um embate decisivo com o velho
regime e a caricatura informe sob a qual ele se apresentava nos Estados
absolutistas alemães: daí os pesados compromissos pré-burgueses, como, por
exemplo, as corporações semi-medievais, e as ordens ou Stãnde corporativistas,
que nos trinta primeiros anos do século XIX ainda desempenham um papel
fundamental na organização política da Alemanha.
Em segundo lugar, todavia e
principalmente, é preciso não esquecer que na filosofia hegeliana do direito
esses aspectos antiquados, atrofiados, menos desenvolvidos que as relações
sócio-políticas, depositam-se como escórias em virtude de um mecanismo lógico
irresistível, se bem que sem o conhecimento do filósofo: isto é, que o
empirismo, uma vez superado pela especulação que, em proveito das formas gerais
do movimento da dialética, esquece as particularidades históricas dos
conteúdos, vinga-se, introduzindo-se sub-repticiamente no corpo da especulação
e autorizando, por esse meio, uma legitimação especulativa de instituições
pré-burguesas mesmo. Então o modo específico corno a estrutura econômica e as
relações sociais existentes entram tão frequente e tão massivamente na
filosofia de Hegel, e nela se refletem grosseiramente, não depende tanto da
realidade alemã atrasada, que não
pode ser censurada por existir, quanto, de preferência e antes de tudo, dos
veículos conceptuais e dos instrumentos categoriais de que Hegel lançou mão
para mediatizar essa realidade.
A via que leva estruturas
econômico-sociais à sua reprodução nas superestruturas ideológicas não parece,
portanto, nem curta nem simples. E, paralelamente, os problemas que se propõem
a uma historiografia filosófica marxista não parecem mais fáceis.
Estes resumem-se em:
1) não perder de vista o caráter
superestrutural dos fatos filosóficos; por conseguinte, partir, evidentemente,
de uma análise atenta da estrutura econômico-social de uma época, mas sem por
isso esquecer o modo formal especifico como as ideologias se constituem;
2) avaliar o processo de
transmissão histórica das ideologias de uma época para outra segundo o critério
do alcance prático (no sentido amplo) das próprias ideologias, isto é, do seu
funcionamento quanto à solução das dificuldades que o "presente" histórico
oferece progressivamente;
3) efetuar a elaboração formal,
nas suas características gerais comuns e específicas determinadas, como
aparecem pouco a pouco no continuum
da transmissão;
4) entretanto, não considerar
esse continuum nem como pura sucessão
cronológica ou diacrônica, nem na qualidade de ordem meta-histórica de puras ideias,
mas sim na qualidade de média de antecedentes e de consequentes
lógico-históricos cuja ordem e cuja ligação funcional são provocadas e impostas
de uma vez para outra, em toda época em todo sistema ideológico, por
dificuldades presentes que se devem
resolver; em suma, sempre, por uma práxis social determinada.
Parece-nos que só seguindo esse
caminho, caminho certamente longo e complicado, feito de provas e novas provas,
de constantes cotejos entre a continuidade racional-histórica ou histórico-funcional
das elaborações filosóficas e a experiência dos fatos ideológicos determinados
de que trata o historiador, é que a história da filosofia pode tornar-se uma
ciência. Neste sentido, pelo menos onde ela própria é dominada também por
aquela lógica específica do objeto
específico77 que Marx fazia valer contra as hipóstases
idealistas que consistiam em, em toda
parte reconhecer unicamente as determinações
do puro conceito; lógica que impõe, bem ao contrário, não só reconhecer os
fatos filosóficos como fenômenos superestruturais históricos, mas ainda
analisá-los com um método adaptado justamente à especificidade do modo for-mal
segundo o qual esses fatos ideológicos se relacionam à estrutura.
N o t a s b i b l i o g r á f i
c a s :
66. MARX & ENGELS. O
Capital. Éditions Sociales, tomo I, p. 182.
67. MARX, Karl. Contribuição
à. .. , p. 169. George Wilhelm Friedrich Hegel. Vorlesungen über die
68. Ibidem, p. 151.
69. Ibidem, p. 170.
70. MARX & ENGELS. A
Ideologia Alemã, p. 70.
71. MARX, Karl. Contribuição
à. .. , p. 171.
72. Nas Lições berlinenses de história da filosofia de 1825-1826:
George Wilhelm
Friedrich Hegel. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie (Lições de História da Filosofia). Leipzig, J. Hoffmeister, 1940, p.
133.
73. DELLA VOLPE, Galvano. A
Lógica como Ciência Positiva" (1965), atualmente em Obras , tomo 4, p.
484.
74. LUKÁCS, Gyõrgy. O Jovem
Hegel e os Problemas da Sociedade Capitalista (ainda não traduzido).
75. A respeito do positivismo
acrítico de Hegel; ver Marx, Crítica
do Direito Político Hegeliano. Éditions Sociales, 1975, e Manuscritos de 1844, Éditions Sociales,
1968, pp. 131-140.
76. Marx, no famoso prefácio da 2' edição (1873) do primeiro
volume de O Capital. Éditions
Sociales, p. 29.
77. MARX, Karl. Crítica do
Direito Político Hegeliano.