Roberta Marx Delson
Tradução Fernando de Vasconcelos Pinto
Roberta Marx Delson, nascida na cidade de Nova York, recebeu o seu MA (Master of Arts, mestrado em Ciências Humanas) e o seu PHD (Philosophy Doctor, doutorado) em Estudos Latino-Americanos e História na Universidade de Colúmbia. Lecionou na Universidade Estadual de Rutgers (em New Brunswick, estado de Nova Jersey) e na Universidade de Princeton (em Nova Jersey), e tem trabalhado como consultora em programas de estudos latino-americanos e também para o Serviço do Patrimônio Histórico do Estado de Nova Jersey. Atualmente é lente da Academia da Marinha Mercante dos Estados Unidos. Suas obras publicadas compreendem o presente livro, cuja edição original em inglês data de 1979, Readings on Caribbean History and Economics (Conferências sobre a História e a Economia do Caribe, 1980) e Industrialization in Brazil: 1700-1830 (1991), esta em co-autoria com John Dickenson, bem como muitos artigos especializados. Presentemente está elaborando The Sword of Hunger: A Latin-American History (A Espada da Fome: Uma História da América Latina), conjuntamente com o eminente brasilianista Robert M. Levine.
Aplicando o modelo: primórdios experimentais no Nordeste
Empenhada no desenvolvimento da
hinterlândia por meio de uma série de comunidades planificadas e
supervisionadas, a Coroa concentrou os seus primeiros esforços no Nordeste do
Brasil, onde, no final do século XVII, as dificuldades criadas por sesmeiros
excessivamente poderosos haviam se tornado cruciais. Por sua vez, o abrimento
de diversas linhas de comunicação através da região aumentou a preocupação das
autoridades nas duas unidades administrativas do Brasil, o estado do Maranhão e
o estado do Brasil, que abrangiam cada um uma parte do Nordeste. A comunicação
entre a cidade litorânea de São Luis, no Maranhão, e Salvador, capital do
estado do Brasil, era inçada de dificuldades. Os ventos predominantes tornavam
uma viagem marítima contornando o cabo São Roque muito arriscada, enquanto a
alternativa de acompanhar a linha da costa resultava numa viagem demorada e
árdua. A solução lógica do problema era abrir caminho através do sertão do
Piauí, pois assim a distância seria encurtada, tornando a viagem muito mais
direta. Contudo, era preciso lutar contra os poderosos do sertão; para que a
segurança da estrada pudesse ser assegurada, cumpria pacificar esses barões
agrários. Assim sendo, o Piauí estava fadado a ser uma das primeiras regiões
onde os administradores portugueses e os temíveis senhores do sertão entrariam
em desavença. O sertão piauiense já havia sido escassamente povoado por
aventureiros baianos, agora dispersos em povoados fragmentários ao longo das
margens dos rios.1
Esses intrépidos
andarilhos haviam aberto as primeiras trilhas através do interior. Partindo de
São Luís, eles avançaram ao longo da costa até o rio Parnaíba; dali,
voltaram-se para o interior, subindo o grande rio, e finalmente se espalharam
em diversos pontos ao longo dele, atravessando o território do Piauí pelos
afluentes. A trilha terminava em Juazeiro, uma povoação da capitania da Bahia,
e dali o acesso à capital era relativamente fáci1.2
A Coroa
imaginava que esses duros desbravadores, que haviam corajosamente aberto uma
trilha .através da caatinga bravia, seriam o material humano ideal para formar
o núcleo de uma comunidade patrocinada pelo governo; além disso, essa
aglomeração assegurava a aceitação da autoridade real.
Com esse fito em mente, a Coroa
encarregou D. Francisco Lima, bispo de Pernambuco, de criar a primeira paróquia
do Piauí.3
Pouco depois
de o bispo receber essa incumbência, em 1697, houve uma reunião em que
representantes de vários grupos estabelecidos ao longo do rio Parnaíba
deliberaram sobre a localização da igreja matriz. O local escolhido na reunião
para a nova congregação de Nossa Senhora da Victoria era uma área
aproximadamente equidistante de todos os assentamentos e facilmente acessível
pelos meios de comunicação existentes.4
A Coroa esperava que a nova
igreja atraísse futuros colonos e, com base nessa suposição, previa-se um
futuro pacífico para o Piauí.
Hoje, decorridos 300 anos, pode
parecer que, ou os portugueses eram excessivamente otimistas quanto à tranquilidade
do Piauí, ou eles estavam decididos a fazer pouco caso da ameaça dos poderosos
sesmeiros, que já haviam demarcado vastas áreas na região como feudos pessoais.
Caso esses indivíduos continuassem praticando a apropriação indébita de terras,
os colonos da nova comunidade teriam pouca possibilidade de adquirir glebas por
iniciativa própria. Embora as leis gerais relativas às sesmarias da década de
1690 fossem plenamente aplicáveis à região do Piauí, a ameaça dos poderosos do
sertão ali era tão esmagadora que a Coroa foi forçada a emitir uma série de
disposições especiais para tratar do problema. Assim, em 1699 o rei declarou
que os sesmeiros que possuíssem terras no Piauí e não as cultivassem, nem
pessoalmente nem por intermédio de outrem, corriam o risco de perde-las para
quem quer que os denunciasse às autoridades.5
Essa disposição real (talvez visando
expressamente a isto) precipitou uma revolta no sertão. A despeito da contenda
que se seguiu, o governo continuou a pressionar no sentido de uma demarcação efetiva
da terra, na esperança de que a diminuição legal da extensão das sesmarias
finalmente obrigasse os poderosos a entregarem áreas consideráveis.
Duas disposições complementares
decretadas pela Coroa nesse estágio inicial atiçaram ainda mais a ira dos grandes
proprietários. A primeira delas, uma lei promulgada em 1699, que impunha .a
presença de um juiz, um capitão-mor e outros funcionários do governo em cada
uma das paróquias recém-criadas,6 foi acertadamente interpretada pelos
poderosos como um desafio ao seu poder irrestrito no sertão. Da mesma maneira,
a decisão de anexar o Piauí ao vizinho estado do Maranhão7 também decretada na mesma época, foi encarada pelos
barões da terra como uma tentativa de aumentar o controle do governo. A
animosidade dos sesmeiros permaneceu contida por 13 anos, até que as medidas
imprudentes do ouvidor (juiz adjunto da administração central) do Maranhão
precipitou uma crise. Em 1714 o ouvidor, sem autorização, declarou que de então
em diante todas as terras do Piauí eram consideradas devolutas, ou seja,
legalmente sem dono.8
Para apaziguar o tumulto
desencadeado no sertão por essa decisão oficial, a Coroa foi obrigada a
retroagir, determinando em 1715 que as velhas sesmarias, outorgadas no tempo em
que o Piauí era administrado pela Bahia e Pernambuco, ainda eram legais, embora
o território agora estivesse sob a jurisdição do Maranhão.9
Com isso, os sesmeiros foram
pacificados, e a Coroa, no essencial, perdeu o primeiro embate. Por
infelicidade, os índios do Piauí escolheram exatamente esses anos tumultuados
para rebelar-se contra os portugueses. Em 1712 e 1713 os tapuias do norte
revoltaram-se ao longo da fronteira do Maranhão com o Piauí, ameaçando a
segurança de toda a estrada Maranhão-Piauí-Bahia. Liderados pelo ex-convertido
pelos jesuítas Mando Ladino, os índios, durante quase quatro anos, atacaram as
fazendas dos colonos da região. Quando a revolta foi finalmente debelada em
1716,10 a paciência da
metrópole estava quase esgotada. O único recurso da Coroa foi estabelecer
imediatamente a autoridade real mediante a criação de vilas no sertão do Piauí
e a sua provisão com muitos funcionários portugueses confiáveis.11
No mesmo ano em que se conseguiu
estabelecer um pouco de paz, em 1716, chegaram ao Piauí ordens para a criação
de duas novas vilas. Uma delas se localizaria na paróquia de Nossa Senhora da
Victoria, já existente, enquanto a outra reuniria colonos da área do rio Longá
(afluente do Parnaíba), precisamente na sua confluência com o rio Piracuruca.12 As leis de planejamento
recebidas pelas autoridades locais em 1716 forneceriam as instruções
metodológicas para a fundação das duas novas vilas.
Primeiramente a Coroa ordenou que
se reunissem todos os moradores das redondezas para decidirem conjuntamente
sobre a localização mais apropriada para a praça central da nova comunidade, no
meio da qual seria erigido o clássico pelourinho, símbolo da autoridade
portuguesa. A segunda providência era indicar uma área para uma igreja que,
depois de terminada, pudesse abrigar todos os futuros paroquianos atraídos pela
comunidade. Além disso, deveriam ser escolhidos locais para a câmara, a cadeia
e outras edificações públicas. Em seguida, as instruções insistiam em que os
lotes destinados a residências nos âmbitos das vilas fossem demarcados em linha
reta, ou a régua, garantindo assim uma disposição ordenada e em alinhamento
das moradias.13 Finalmente, dever-se-ia procurar
exigir que todas as casas tivessem o mesmo estilo de fachada, obtendo-se assim
uma impressão de uniformidade e uma vista de conjunto harmoniosa.14
Com referência a essas duas
cidades piauienses, duas indagações imediatamente vêm à mente: primeira, as
ordens foram cumpridas tais quais exaradas na legislação de 1716?; e segunda,
qual a razão do empenho tão grande da Coroa de conferir a essas novas
comunidades uma aparência harmoniosa, quando o Piauí em si estava tão afastado dos
núcleos de civilização mais próximos?
A resposta para a primeira pergunta parece ser afirmativa: consoante a pesquisa
do historiador da arquitetura Paulo Barreto, as ordens de 1716 foram ignoradas
unicamente no tocante à determinação de as igrejas serem suficientemente
espaçosas para acomodarem as comunidades em crescimento. Barreto afirma que em
1733 a igreja de Victoria (topônimo mudado depois para Mocha) ainda estava em
obras, ao passo que o templo de Piracuruca só foi terminado dez anos depois.15
Uma prova mais convincente é o relato de João
da Maia da Gama, que esteve em Mocha em 1728 e descreveu a vila. Naquela época a cidade evidentemente tinha um
número considerável de habitantes; haviam sido construídas cerca de 90 casas
dentro da vila, e mais algumas dúzias estavam distribuídas pelos distritos
exteriores, perfazendo perto de 120 moradias. Além disso, João da Gama observou
que os habitantes estavam ocupados na construção de uma vistosa cadeia pública de pedra e cascalho e cumprindo a exigência de
edificar uma Casa da câmara.16 Infelizmente, o relato de Gama não
faz nenhuma referência à disposição das casas, embora provavelmente ela também
tenha obedecido ao modelo prescrito pela Coroa.
Não é fácil responder à segunda
pergunta, mas é evidente que, pelo menos no caso de Mocha, os portugueses
estavam decididos a supervisionar inteiramente o desenvolvi-mento da
comunidade, inclusive o seu traçado físico. Visto que uma situação de crise
havia se manifestado ao longo da via fluvial tão rapidamente depois da
promulgação das leis de sesmarias, e que a necessidade de congregar os
poderosos e subjugar os índios rebeldes era tão aflitivamente premente, a
criação de uma nova vila, provida de funcionários reais, era ditada pela
necessidade, bem como pela possibilidade de escolha. Se tal comunidade fosse
construída solidamente, de conformidade com os princípios barrocos em voga de
uniformidade e retilineidade, teria mais possibilidade de suportar um ataque
violento de elementos dissidentes. Ademais, um emprego largo de dinheiro e
competência como esse continuaria a receber a atenção do governo. Por uma
equação simples, uma cidade permanente necessariamente atrairia colonos
permanentes. Conquanto a ordem de 1716 não prescrevesse uma extensão definida
para a praça central nem a largura específica das ruas (como algumas das
legislações ulteriores prescreveriam), o objetivo era criar uma comunidade de
aparência ordenada que logo à primeira vista desse a impressão de que havia uma
autoridade estabelecida. Se a continuidade pode ser considerada um índice de
êxito em planejamento urbano, a experiência de Mocha satisfez todas as
expectativas. Em 1761 a vila foi elevada à categoria de cidade (e teve seu nome
mudado para Oeiras), a única do Piauí na época. Além disso, a meta importante
de criar uma estrada tranquila e segura para a comunicação entre o Maranhão e a
Bahia havia sido atingida. Pouco depois da construção da cidade nos anos 1720,
os colonos tiveram toda liberdade de retornar à região (principalmente ao longo
da fronteira com o Maranhão) para reconstruir as fazendas de gado destruídas
durante a revolta dos tapuias. Finalmente, a nova vila favoreceu a formação de
outros centros urbanos na região, o que se traduziu numa proliferação de
comunidades, algumas das quais alcançaram um porte considerável. Esses novos
centros -- como Parnaíba (Figura 1), fundada em 1761 -- obedecem ao modelo
traçado em 1716, apesar de posteriormente ter sido elaborada uma legislação
especial para a sua criação.17
-Fig. 1 - Planta básica de São João de Parnaíba, 1798
A contrapartida negativa da
criação de Mocha foi que ela não possibilitou uma solução efetiva do problema
de controlar os sesmeiros, que continuaram a apoquentar as autoridades até o
meio do século.18 Contudo, a Coroa havia mostrado que uma Vila
construída numa das áreas mais remotas da colônia podia prosperar se fosse
corretamente administrada. As autoridades devem ter gostado imensamente dos
resultados da experiência de Mocha, que foi a primeira vez que as novas leis de
planificação em plena escala foram postas em prática. A partir de 1716, a Coroa
repetidamente assumiu os encargos de experiências urbanas no interior, num
esforço contínuo de impor ordem onde o caos havia predominado. Mocha havia sido
uma primeira tentativa de implantar a política de controle esboçada na década
de 1690.
Contudo, a pacificação do Piauí não havia absolutamente garantido a segurança
no Nordeste. Em seguida, a Coroa voltou a sua atenção para o sul, para a
regulamentação de centros urbanos no Ceará. Como no Piauí, o problema de
importância capital para os portugueses ali era a segurança, pois duas
importantes estradas atravessavam o território do Ceará. A primeira estrada
ladeava a costa, estendendo-se do norte de Pernambuco até pelo menos Fortaleza,
no Ceará, enquanto a outra estrada fazia uma conexão por terra entre Fortaleza
e a Bahia.19
Não havia muitos colonos na
região do Ceará. A maior concentração localizava-se à beira-mar, no ponto em
que hoje fica a capital do estado, Fortaleza. No século XVII, os portugueses
haviam construído um forte -- daí o nome da metrópole --, porém a expansão
urbana não havia sido promovida. Foi visando a aumentar o número de colonos na
região e a assegurar o domínio das duas estradas de penetração que os
portugueses resolveram, em 1699, fundar a vila do Ceará e conceder-lhe o
título real. A vila deveria situar-se no local da velha fortificação.
A instalação da nova vila, que
deveria ter sido uma questão pacífica, gerou uma controvérsia que só cessou na
década de 1720. Pela lógica, o sítio da nova vila deveria ter sido a antiga
povoação à sombra do forte, porém o conselho municipal decidiu que a cidade
ficaria melhor localizada a pouca distância dali, em Iguape. A Coroa
imediatamente se opôs, fazendo saber aos moradores da povoação que ela
considerava o forte como o local mais adequado para a instalação da sede do
governo municipal. De nada adiantaram as discussões ásperas entre os cearenses
e o governo local. Os portugueses não se demoveram, apesar do argumento da
população de que a zona de Iguape oferecia um clima mais saudável; terras
férteis em abundância, água boa, fartura de peixe e um porto mais acessível que
Fortaleza. No final das contas, a Coroa indeferiu as objeções locais, e uma
vila oficial foi criada em 1706 no local do antigo forte. 20 *
* Fico muito agradecida ao tradutor pela informação seguinte: O forte junto
ao qual a vila de Fortaleza foi fundada, em 13/4/1726, foi construído pelos
invasores holandeses, e não pelos portugueses. É certo que, a cerca de uma
légua dali, na barra do rio Ceará, Martim Soares Moreno havia erigido o Forte
de São Sebastião em janeiro de 1612. Porém em 6/4/1644, quando a expedição
holandesa de 298 homens comandada por Matthias Beck aportou na enseada do
Mucuripe, na atual Fortaleza, desse forte português só restavam ruínas. O
comandante Beck mandou transportar as suas telhas e velhas peças de artilharia,
que encontrou semi-soterradas nas dunas, para o outeiro Marajaitiba, perto do
riacho Marajaik (o córrego Pajeú, que atravessa o centro de Fortaleza). Nesse
local foi construído o Forte Schoonenborch, de forma pentagonal. A Fortaleza de
Nossa Senhora da Assunção, que deu nome à capital do Ceará, só foi edificada em
1816, no mesmo local do forte holandês. As muralhas desse terceiro forte
subsistem até hoje. Confira-se em Pequena História do Ceará, de Raimundo Girão.
Nem assim a oposição dos
habitantes ao local determinado por Lisboa foi aplacada, e em 1713 os obstinados
cearenses foram recompensados com a decisão da Coroa de relocalizar a
comunidade em Aquiraz, uma zona adjacente ao porto de Iguape. A despeito das
suas propaladas virtudes, infelizmente Aquiraz revelou-se uma vitória infausta.
Tão logo os colonos se mudaram para a nova localização, os índios da região
começaram a hostilizar a nascente comunidade. O capitão-mor expressou as suas
obje-ções ao novo lugar, mas a Coroa obstinou-se, e logo foram construídas uma
casa da câmara, uma cadeia e uma igreja na comunidade, a essa altura
completamente desmoralizada. Ademais, para certificar-se de que ninguém
permanecesse em Fortaleza, deu-se um prazo de quatro meses aos comerciantes
para transferirem suas mercadorias para Aquiraz.
Nessas circunstâncias, a polêmica
sobre a escolha da localização adequada continuou nos anos 1720, uma parte
considerável da população optando agora pelo retorno ao sítio de Fortaleza.
Para resolver o problema, a Coroa deu permissão às autoridades locais para
instalarem uma vila alternativa no sítio da velha fortificação, embora mantendo
a capital oficial em Aquiraz." Com a implantação de Fortaleza a 13 de
abril de 1726, a capitania do Ceará ficou na situação absurda de ter duas vilas
fundadas oficialmente em áreas praticamente vizinhas, enquanto o resto da
região não podia reivindicar nem mes-mo uma única comunidade oficial. A
proximidade entre Fortaleza e Aquiraz não só era pouco prática do ponto de
vista econômico (pois duplicava as expensas oficiais) como criava rivalidades entre
os dois núcleos demográficos incipientes. Diante de outra situação
potencialmente explosiva como a do Piauí na década anterior, a Coroa
sub-repticiamente subvencionou Fortaleza, financiando a construção da futura
urbe com fundos do erário real.
Fig. 2 Croqui de Fortaleza, Ceará aproximadamente 1710
O mapa mais antigo existente da
vila (cerca de 1730) ilustra até que ponto o governo real subsidiou a nova
comunidade (Figura 2). As primeiras moradas são representadas como simples
casas cobertas de palha; as edificações posteriores, de tetos de telhas, são
comparativamente luxuosas.22 Numa carta de prestação de contas 23 datada de 23 de abril de
1731, o capitão-mor Manuel Francês, encarregado das operações, explica que
deixou a nova vila aumentada de 26 casas
com cobertura de telhas, todas habitadas, e que ajudou a construir a Câmara com
5 mil reis. Embora não exista nenhuma prova documental que confirme a
aplicação de uma legislação de planejamento urbano, um exame minucioso do
croqui revela uma certa premeditação no traçado da nova comunidade. Em face da
difícil tarefa de integrar as edificações antigas no desenho, é duvidoso que a
nova Fortaleza pudesse ter sido ajustada ao traçado preferido de ruas
retilíneos. Por outro lado, é perfeitamente visível que a área central da
comunidade foi deixada vaga, servindo assim como praça principal, impressão
confirmada pela presença da igreja matriz na sua cabeceira. Ademais, as casas
do quarteirão paralelo à praça apresentam todas a mesma disposição de portas e
janelas, o que indica uma tentativa de uniformização do desenho. No meio desse
quarteirão está a nova Casa da Câmara, e uma legenda no pé do desenho salienta
que o quartel municipal e a nova rua de casas foram criação do capitão-mor.
O fato de não se ter conseguido
uma regulamentação completa dos elementos arquitetônicos em Fortaleza decorreu
do desenvolvimento a esmo da comunidade nos seus primeiros anos. Inobstante,
tanto Aquiraz como Fortaleza ilustram a essência do programa de construção de
vilas, porquanto ambas serviram para assegurar o controle português sobre um
elo de comunicação imprescindível na colônia. Considerava-se que as duas vilas
tinham uma função estabilizadora sobre uma região remotamente administrada,
apesar do paradoxo aparente da rivalidade entre Aquiraz e Fortaleza.
Por conseguinte, até os anos
1730, o poder administrativo português no Ceará esteve concentrado nos centros
urbanos geminados de Aquiraz e Fortaleza.24
Esses centros garantiam o
controle sobre o destino final da estrada Bahia-Ceará. Contudo, pelos anos
1730, parece que os portugueses compreenderam que era preciso aumentar a
segurança ao longo dos trechos interioranos dessa artéria de intenso tráfego.
Mais uma vez a Coroa resolveu obviar potenciais empecilhos, estabelecendo uma
nova comunidade no sertão, a partir da qual os funcionários do governo poderiam
manter o tráfego regional sob vigilância. O sítio escolhido em 1736 para a nova
vila ficava num ponto intermediário da estrada Fortaleza-Salvador. Partindo de
Fortaleza em direção ao sul, a estrada acompanhava a costa até o rio Jaguaribe
e dali inflectia para o interior. O viajor acompanhava então o rio Jaguaribe
até a foz do rio Salgado, seu afluente. Dali o trajeto seguia através do sertão
até o rio São Francisco, no interior da Bahia.25 A confluência
do rio Salgado com o rio Jaguaribe, em Icó, afigurava-se uma excelente escolha
para um baluarte administrativo.
Essa nova povoação objetivava
aumentar a autoridade na zona e contentar os habitantes, que tinham sofrido
grandes incômodos, porque a sede de comarca mais próxima, Aquiraz, ficava a 80
léguas de distância.26 Conforme ocorrera no Piauí, a
criação da nova vila foi acompanhada de uma legislação de planificação vinda de
Lisboa, prescrevendo as ruas retas e o traçado retilíneo usuais. Entretanto, em
Icó as autorida-des estavam mais interessadas na configuração geral do que na
uniformidade dos elementos arquitetônicos. Assim, cada habitante foi instruído
a decorar a fachada do seu imóvel como bem quisesse, sem a preocupação de
manter um estilo homogêneo. Uma área de cinco léguas nas cercanias imediatas da
povoação deveria ser dividida entre os habitantes, outorgando-se a cada família
no máximo uma légua quadrada de terra.27
A fim de impedir o monopólio da terra, as
ordens para a criação de Icó estipulavam explicitamente que os lotes não eram
concedidos vitaliciamente, mas apenas por um determinado período. Isso evitava
que o beneficiário se sentisse com direitos perpétuos sobre a terra.28
Na década de 1740, as autoridades
portuguesas resolveram acrescentar mais uma vila às únicas três existentes no
Ceará, Aquiraz, Fortaleza e Icó. Essa nova povoação localizar-se-ia à margem do
rio Jaguaribe, não longe do mar, consolidando assim, ainda mais, a autoridade
sobre a estrada Bahia--Fortaleza. Essa região específica havia sido colonizada
nas primeiras décadas do século anterior por pescadores, que deram ao seu
povoado o nome de São José.29 Entretanto,
o crescimento da comunidade não se devia à atividade pesqueira em si, mas sim
ao movimento das boiadas que passavam pela circunvizinhança, cujos boiadeiros
eram ávidos pelos produtos de São José. Além disso, na proximidade de São José
do Porto dos Barcos foi montada uma instalação de preparo de carne seca por
salga e insolação (oficina ou
charqueada) antes de 1740, e essa indústria é que era responsável pela
prosperidade da comunidade.30
Naturalmente a Coroa estava
sequiosa de participar das vantagens comerciais em São José; logo em 1739 houve
uma troca de correspondência com os funcionários locais propondo a criação
oficial de uma vila no sítio da povoação existente.31 Todavia, as
ordens efetivas para a criação da vila de Santa Cruz do Aracaty não foram
escritas recebidas pelo ouvidor-geral, José de Faria, senão em 1747.32 Quando
as plantas finalmente chegaram, os fundadores da nova vila foram instruídos a
escolher um lugar que estivesse topograficamente acima do nível das enxurradas
do rio Jaguaribe, mas que, concomitantemente, fosse acessível aos barcos que
chegassem ao rio com fins comerciais. As recomendações para o traçado da cidade
obedeciam às diretrizes de retilineidade, agora de praxe, porém também levavam
em conta as dificuldades espe-cíficas do local de Aracaty. Por exemplo, as
ordens de 1747 recomendavam que as novas casas da vila fossem construídas com
uma aparência uniforme; entretanto,
no caso de a nova vila ser localizada junto à povoação que já existe,...
quando um morador de uma casa [antiga] tiver de reconstruí-la por motivo de
ruína, deve-se avisá-lo de que a casa deverá ser reconstruída de forma a
dar-lhe um contorno e aparência equivalente aos das novas casas.
As novas ordens recomendavam o
modelo ideal, mas, ao que parece, as autoridades podiam aceitar uma solução
conciliatória.
Essa sensibilidade à necessidade
de flexibilizar os padrões de urbanização foi da mesma forma evidente na
advertência dirigida a José de Faria para construir a praça da vila suficientemente
ampla, de modo a não padecer do defeito
de ficar exígua quando a villa tiver o desenvolvimento que se espera. Além
disso, os consultores em Lisboa recomendavam que o curral e o matadouro fossem
construídos em terreno público, a uma distância tal da cidade que o mau-cheiro
não incomodasse os habitantes. Essa no-va filosofia urbana era um evidente
refinamento em relação à mentalidade que havia aceitado as moradias
superlotadas das famílias dos negociantes anexas às suas lojas da cidade
medieval portuguesa tradicional, onde as famílias e os comerciantes conviviam
intimamente com miasmas fétidos e doenças. Ou em relação ao caso de Salvador
naquela mesma época, onde os depósitos de lixo diários, situados embaixo dos
grandes edifícios da cidade, ameaçavam a própria vida dos seus habitantes.33
Outras características da planta
básica de Aracaty eram semelhantes às determinações das leis de planificação
para as comunidades analisadas anteriormente, reservando-se localizações
destacadas na praça para os prédios importantes, bem como um terreno de
extensão considerável para uso coletivo da comunidade.
As indicações mostram que as
obras da vila começaram imediatamente, pois no início de 1748 carnaubeiras
existentes no local já serviam de marcos temporários na praça recém-demarcada.34 O relatório de um engenheiro militar que
visitou a vila em 1799 confirma a obediência dos seus fundadores ao decreto de
1747. Ele observou que ela tinha uma certa distinção e polidez, a par com uma arquitetura das casas agradável e
regular.35
A fórmula de Aracaty logrou tanto
êxito que as autoridades recomendavam-na como modelo para a construção de
outras cidades. Por exemplo, quando o Conselho Ultramarino instruiu o
governador Gomes Freire de Andrade a criar oficialmente uma vila na localidade
de Rio Grande, no extremo Sul do Brasil, recomendou a utilização do modelo de
Aracaty. A carta recebida pelo governador em 1747 declarava que
...a fim de o dito Ouvidor ordenar melhor as ruas dessa cidade, sua
praça, e a Igreja, a Casa da Câmara e a Cadeia, estou determinando a instrução
inclusa..., que foi remetida ao Ouvidor do Ceará para criar a nova vila na
localidade de Aracaty.36
Como se pode ver, no decurso de
30 anos os portugueses haviam desenvolvido um modelo padronizado para o traçado
de novas vilas no interior. Essencialmente um aperfeiçoamento das ordens de
1716 para a criação de Mocha (mais tarde Oeiras), no Piauí, a fórmula de
Aracaty revelava claramente um conhecimento das injunções do local, a
conveniência de flexibilidade ao fazer cumprir as exigências de uniformidade e
um desejo de padrões sanitários elevados. Para a mentalidade portuguesa, uma
cidade bem construída com certeza deveria gerar habitantes satisfeitos. Foi
assim que Aracati se tornou o protótipo para o desenvolvimento urbano
sancionado pela Coroa; os administradores desejosos de implantar ordem nos
rincões incultos que eles governavam iam aderir ao plano por todo o resto do
século XVIII.
N o t a s :
-Fig. 1 - Planta básica de São João de Parnaíba, 1798
(1) Ernáni Silva Bruno, Nordeste, vol. II: História do Brasil: Geral e Regional (Cultrix Ltda., São Paulo,
1967), p. 83. A bandeira de Domingos Jorge Velho penetrou na região em
1662-1663. Um contingente de baianos alcançou-a por volta de 1674. Ver também a
exposição do ca-so do Piauí constante em Capítulos
de História Colonial: 1500-1800, de Capistrano de Abreu, revisto e anotado
por José Horário Rodrigues (5 edição, Sociedade Capistrano de Abreu, Rio de
Janeiro, 1969), p. 160.
(2) Essa análise das vias fluviais é baseada em Caio Prado
Júnior, o. cit., p. 282.
(3) Consulta do Conselho Ultramarino sobre a carta do bispo de
Pernambuco, datada de 20 de novembro de 1697, tal como citada em Ernesto Ennes,
As Guerras nos Palmares (Companhia
Editora Nacional, São Paulo, 1938), pp. 360-361.
(4) Isso é evidente no Termo
de eleição que fizerão os moradores do certão do Piauhi: do lugar para se fazer
a Igreja de Nossa Senhora da Victoria, tal como citado em Ennes, op. cit.,
p. 364.
(5) Carta Régia de 20 de janeiro de 1699, tal como citada em
Carlos Eugênio Porto, Roteiro do Piauí (Ministério da Educação e Cultura, Rio
de Janeiro, 1955), p. 66.
(6) Carta Régia de 20 de janeiro de 1699 (trechos posteriores),
tal como citada em Capistrano de Abreu, Capítulos..., p. 166.
(7) Carta Régia de 3 de março de 1701, tal como citada em Porto,
op. cit., p. 67.
(8) A ação do ouvidor Antônio José da Fonseca Lemos é examinada
em Porto , op. cit., pp. 66 et seq.
(9) Ibidem.
(10) Essa revolta dos índios foi tratada em Boxer, op. cit., p.
236.
(11) Essa foi a recomendação do Conselho Ultramarino em 13 de
março de 1717 (Lisboa). IHGB-CU, vol. X, Maranhão
e Grão-Pará, 1678-1803.
(12) Silva Bruno, op. cit., p. 84, observa o rápido crescimento da
população nessa área de 1720 a 1724. Paulo T. Barreto, em O Piauí e sua arquitetura (RSPHAN n2 2, 1938, pp. 187- 223), indica
que tanto o povoado de Piracuruca como o de Victoria seriam submetidos à
legislação de 1716.
(13) A ênfase na uniformidade é um aspecto característico da nova
construção de vilas no Brasil setecentista.
(14) A Carta Régia de 1716 está reproduzida na íntegra em Barreto,
op. cit.
(15) Barreto, op. cit., p. 221. Enquanto a povoação de Mocha foi
criada por volta de 1716, a de Piracuruca não foi concretizada senão muitos
anos depois, conforme um consenso baseado em Reis Filho, op. cit., Silva Bruno,
op. cit., e Aroldo Azevedo, Vilas e
Cidades do Brasil Colo-nial. Esse fato pode ter sido responsável pela
aparente demora na construção de um templo em Piracuruca.
(16) Diário da viagem de
regresso para o Reino, de João da Maia da Gama, e de inspecção das barras dos
rios de Maranhão e das capitanias do Norte, en 1728, tal como citado em E A. Oliveira
Martins, Um Herói Esquecido: João da Gama, vol. II (Agência Geral das Colônias,
Lisboa, 1944), pp. 22-23.
(17) . Carta Régia ao Governador José Pereira Caldas, 1761,
tal como citada em Barreto, op. cit., pp. 189-190. A planta de Parnaíba
intitula-se Mapa exacto da vila de S.
João da Parnaíba, 1798. Ela faz parte da mapoteca do Arquivo Histórico
Ultramarino, em Lisboa. Todos os mapas do AHU referentes ao Brasil foram
catalogados e numerados por Alberto Iria em Inventário
Geral da Cartografia Brasileira Existente no Arquivo Histórico Ultramarino
(Elementos para a Publicação da Brasil Monumenta Cartographica), IV Colóquio
Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, reeditado em Studia n217, abril de
1966. Esse mapa tem o número de referência AHU-Iria n2 68.
(18) Ver explanação em Porto, op. cit., pp. 68-73 (19) Caio Prado
Júnior, op. cit., p. 183.
(19) Caio Prado Junior, op.
cit. P. 183.
(20) Dois estudos históricos dos primórdios de Fortaleza podem ser
encontrados em: Raimundo Girão, Pequena
História do Ceará (Editora Instituto do Ceará, Fortaleza, 2 edição, 1962),
pp. 138-149; e Tristão de Alencar Araripe, História da Província do Ceará: Desde os Tempos Primitivos até 1850,
vol. 1 (Editora Instituto do Ceará, Fortaleza, 2a edição anotada, 1958), pp.
150- 153.
(21) Ibidem, p. 152.
(22) Mapa da Villa Nova da
Fortaleza de Nossa Senhora da Assunpsão da Capitania do Ciara Grande, que S. Mag.de que Deos guarde foy cervido
mandar criar, aproximadamente 1730, AHU-Iria, n2 69.
(23) Carta do Capitão-Mor Manuel Francês ao Rei, de 6 de julho de
1730. Essa carta está inclusa numa coleção de cartas relativas a Fortaleza;
recebeu o número 15 no catálogo de Anêmona Xavier de Basto Ferrer, intitulado Segunda Relação de Documentos Existentes no
Arquivo Histórico Ultramarino, Respeitantes a Fortalezas, Igrejas e Outros
Monumentos Antigos-, Civis, Religiosos e Militares, Construídos pelos
Portugueses no Brasil (Lisboa, 1.960). Daqui por diante, essa fonte será citada
como Basto Ferrer.
(24) Ver Carta de D. João em
resposta a outra do Governador do Maranhão-Pará em que este lembrava a
conveniência de se colonizarem. certos pontos extremos da Amazônia com
casais
Açorianos", de 18 de março de 1750. Iii Cortesão, op. cit., pp.
475-476.
(25) Caio Prado Júnior, op.
cit., p. 283.
(26) Ver a ordem real de 20 de outubro de 1736 na RIC, vol. IX
(1895), p. 356.
(27) Ibidem, p. 357.
(28) Ibidem, p. 358.
(29) Ernâni Silva Bruno, Nordeste,
vol.II, op. cit., p. 60.
(30) Raimundo Girão, op. cit., pp. 121-122.
(31) Carta de 1739 na RIC, vol. IX (1895), p. 360.
(32) A exposição que se segue é baseada na Carta Régia recebida
por José de Faria, ouvidor-geral, datada de 17 de julho de 1747, ANRJ, Códice
952, vol. 34, fls. 19-20.
(33) A. J. R. Russell-Wood, op.
cit.
(34) Isso é constatado no Auto
da Criação da vila de Aracaty, de 10 de fevereiro de 1748, RIC, vol. IX
(1895), pp. 395-397.
(35) Carta do Chefe de Esquadra Bernardo Manuel de Vasconcelos,
tal como citada em Raimundo Girão, op. cit., p. 152.
(36) Carta Régia a Gomes Freire de Andrade de 17 de julho de 1747.
ANRJ, Códice, vol. 34, fl. e
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