Roberta Marx Delson
Tradução: Fernando de Vasconcelos Pinto
Roberta Marx Delson, nascida na cidade de Nova
York, recebeu o seu MA (Master of Arts, mestrado em Ciências Humanas) e o seu
PHD (Philosophy Doctor, doutorado) em Estudos Latino-Americanos e História na
Universidade de Colúmbia. Lecionou na Universidade Estadual de Rutgers (em New
Brunswick, estado de Nova Jersey) e na Universidade de Princeton (em Nova
Jersey), e tem trabalhado como consultora em programas de estudos
latino-americanos e também para o Serviço do Patrimônio Histórico do Estado de
Nova Jersey. Atualmente é lente da Academia da Marinha Mercante dos Estados
Unidos. Suas obras publicadas compreendem o presente livro, cuja edição
original em inglês data de 1979, Readings on Caribbean History and Economics
(Conferências sobre a História e a Economia do Caribe, 1980) e
Industrialization in Brazil: 1700-1830 (1991), esta em co-autoria com John
Dickenson, bem como muitos artigos especializados. Presentemente está
elaborando The Sword of Hunger: A Latin-American History (A Espada da Fome: Uma
História da América Latina), conjuntamente com o eminente brasilianista Robert
M. Levine.
O mito das cidades brasileiras sem planificação
Os
historiadores da América Latina há muito tempo vêm ensinando aos seus alunos
que os espanhóis construíram cidades planificadas no Novo Mundo. Tornou-se
quase axiomático falar entusiasticamente das ruas admiravelmente traçadas em
cruz e das praças centrais em quadrado que caracterizavam as aglomerações
urbanas da América espanhola, chamando-se a atenção do estudante para a
legislação de planejamento bem elaborada que acompanhava a criação dessas
comunidades.
Entretanto,
esses mesmos historiadores tendem a infamar as vilas e cidades construídas
pelos portugueses no Brasil. Segundo as opiniões geralmente aceitas, as cidades
brasileiras originaram-se de povoações espontâneas não planificadas, em vez de
obedecer a normas de planejamento metropolitano. A sapiência convencional
conclui que esse crescimento aleatório só foi contestado no final da década de
1950, quando a criação da nova capital federal, Brasília, anunciou uma nova era
de consciência urbana no Brasil. Poucos leigos (e mesmo historiadores) se lembram
dos esforços de planificação envidados na construção de Goiânia, nos anos 1930,
ou da utilização de um plano diretor na construção de Belo Horizonte no final
do século XIX. Para os que aceitam o mito de que tradicionalmente não havia
nenhuma regulamentação para a cidade brasileira, a ideia de que houve
antecedentes de um planejamento urbano abrangente no Brasil datando do século
XVIII deve parecer algo como uma anormalidade. É visando a documentar a
história desse planejamento e analisar a sua motivação geopolítica que
apresentamos a presente monografia.
Essa
não é uma tarefa simples. O estudante
sequioso de conhecimento profundo da origem e evolução das vilas e cidades
brasileiras verificaria que a sua investigação estaria terminada antes de começar,
já que historiadores, arquitetos e geógrafos, indistintamente, têm tendido a
descartar sumariamente o assunto. Típica das afirmações vulgares encontradiças
sobre esse tema é esta opinião superficial de um arquiteto brasileiro:
As cidades [do Brasil] cresceram um tanto
desordenadamente em torno de igrejas, que geralmente se localizavam na área
mais alta disponível. As ruas e travessas..., ramificavam-se e serpeavam.1
Igualmente
dogmática é a asserção de que as vilas e cidades brasileiras foram fundadas segundo uma configuração realmente
extravagante.2
Entretanto, o mais prejudicial de todos é o conceito aventado por um célebre intelectual brasileiro de que
Entretanto, o mais prejudicial de todos é o conceito aventado por um célebre intelectual brasileiro de que
a cidade que os portugueses construíram no Brasil não
é produto de uma reflexão, nem ela contradiz a conformação natural do terreno.
... [Ela não tem] nenhum rigor, nenhuma metodologia, nenhuma previsão.3
As
poucas tentativas sérias de resgatar a imagem negativa das vilas e cidades
primitivas do Brasil têm mostrado uma tendência de racionalizar a predominância da disposição espontânea
da cidade, em vez de contestar essa suposição infundada. Numa extremidade da
gama de eruditos envolvidos nessa discussão está o historiador da arte Robert
C. Smith, que sustentava que os centros urbanos do Brasil colonial eram
essencialmente recriações das cidades medievais portuguesas, completas com ruas
tortuosas e bairros congestionados.4 Todavia,
uma analogia como essa lança uma sombra nefasta sobre todo o processo da
urbanização do Brasil, pois induz o estudioso a considerar os centros urbanos
brasileiros historicamente retrógrados e artisticamente atávicos.
Outros,
numa posição mais intermediária, afirmam que os primeiros centros urbanos
brasileiros funcionavam bem do ponto de vista administrativo, mas visivelmente
careciam de qualquer plano diretor. Um comentarista dessa escola opinou que
...as vilas maiores dó Brasil colonial, qualquer que
seja o grau em que a sua planta física tenha sido ajustada às condições locais
e à topografia, representavam, como as vilas da
América espanhola, a intromissão de uma ordem metropolitana já pronta.5
Finalmente,
situado na extremidade oposta s dessa gama de sábios, Luís Silveira observou
que a característica espontânea das cidades e vilas brasileiras na realidade
era uma bênção disfarçada:
A relutância
dos planejadores portugueses de além-mar em adotarem um sistema geométrico
regular, contrariamente ao que Robert Smith escreveu,... não me parece um
arcaísmo, mas resultou de uma longa experiência metódica na criação sistemática
de cidades.... Eu diria... que a cidade estruturada portuguesa, com a sua
característica medieval, tende para a cidade perfeita, aquela em que cada
elemento exerce uma função natural, e é superior às cidades com planta em
xadrez..., que muitas vezes denotam uma clara falta de compreensão do conceito
da cidade como um organismo vivo, funcional e intelectualmente ativo e, consequentemente,
sujeito aos princípios gerais da biologia e da sociologia.6
Entretanto,
independentemente de se aderir a um ou ao outro partido dessa controvérsia, a
análise crítica do processo da urbanização inicial do Brasil ainda permanece
largamente intocada pelos versados no período colonial. Em vez disso, os
estudos levados a efeito concentraram-se no estabelecimento de tipologias heurísticas
dos centros urbanos brasileiros, as quais, embora intrinsecamente úteis,
proporcionam uma compreensão limitada da dinâmica do crescimento urbano. Um dos
pioneiros nesse campo foi o geógrafo francês Pierre Deffontaines, que
classificou as comunidades consoante uma análise funcional, i.e. arraiais de
mineração, vilas de estrada de ferro, aldeias indígenas, etc.7 Utilizando um
critério diferente, Rubens Borba de Morais diferenciou entre centros urbanos
que se desenvolveram espontaneamente (e. g., arrai-ais de mineração) e os que
deram mostras de intervenção direta (e. g., colônias militares).8 Certamente não se pode questionar a utilidade
de divisões hierárquicas desse tipo para enfocar as variações estruturais no
sistema urbano do Brasil. Porém essas tipologias são incapazes de fornecer uma
análise processual em profundidade dentro de um arcabouço verdadeiramente
histórico. Essa crítica aplica-se também à classificação de Marvin Harris e
Charles Wagley,9 muito citada, bem como
à obra que traz o título ambicioso de Como
Nasceram as Cidades do Brasil, uma tipologia altamente conjetural de
autoria de um antigo político brasileiro.10
Uma
direção intelectual inteiramente diferente na pesquisa da urbanização do Brasil
é a tendência de encarar as cidades e vilas como antitéticas da corrente
principal da cultura brasileira. Os proponentes desse ponto de vista afirmavam
que, historicamente, o Brasil tem sido dominado pela classe dos latifundiários,
cuja visão era claramente rural, e não citadina. Fernão de Azevedo, por
exemplo, focalizou o relacionamento discordante contínuo da cidade brasileira
com o campo, em sua análise mais ampla do fenômeno da civilização industrial
numa sociedade agrária,11 enquanto
Gilberto Freyre escreveu com extraordinário entusiasmo sobre o papel do sobrado
como difusor do sistema de valores da oligarquia latifundiária, sempre dentro
do contexto urbano.12
Além
do grande número de intelectuais que se concentraram na influência supostamente
onipresente dos latifundiários, há um grupo bastante numeroso que mostrou um
interesse constante pelas contribuições dadas por diversos outros grupos
sociais (e. g., imigrantes europeus ou garimpeiros) para o processo de
urbanização. Finalmente, há uma literatura bastante vasta dedicada à história especifica
de cidades grandes e pequenas. Esses estudos tradicionais amiúde fornecem
excelentes antecedentes históricos, mas não conseguem situar o exemplo
individual dentro do contexto mais amplo da proliferação urbana no Brasil.13
Independente
das obras mencionadas nesta breve resenha literária, existem apenas quatro
grandes estudos dedicados ao exame do panorama histórico e arquitetônico global
do desenvolvimento urbano brasileiro dos primeiros tempos. Esses quatro exames
são imensamente diferentes, em consequência das disciplinas muito diferentes
que seus autores representam. Vilas e
Cidades do Brasil colônia,14 por
exemplo, é um inventário geográfico e cronológico de vilas e cidades fundadas
no Brasil do século XVI ao século XIX. Cada século é estudado separadamente, e
a obra fornece dados sobre a localização e a data de fundação de cada centro
urbano criado oficialmente naquele período. Entretanto, ela concede pouca
atenção ao planejamento e à forma das comunidades resultantes.
Em
contrapartida, A Formação de Cidades no
Brasil Colonial,15 ensaio escrito
por um arquiteto praticante, compreensivelmente, preocupa-se mais com a forma e
o traçado urbano. Nesse estudo, o autor examina diversos documentos importantes
referentes à criação de vilas coloniais e conclui que a aplicação de planos
diretores formais na realidade foi um sinal de urbanização retrógrada. De uma
maneira inteiramente errônea (como mostraremos a seguir), ele afirma que os
portugueses, oportunisticamente, simplesmente copiaram as plantas das cidades
espanholas, quando as duas potências se reuniram para a assinatura do Tratado
de Madri, em 1750. Ironicamente, vários dos códigos de construção que o autor
apresenta no seu estudo (fora do contexto) foram elaborados no princípio do
século XVIII, antecedendo assim o Tratado de Madri de várias décadas!
O
terceiro estudo é mais precisamente uma interpretação convencional da evolução
da cultura brasileira, em que os autores reproduzem diversos documentos de
planejamento criativos e sugerem vagamente a existência de um código de
construção abrangente. Infelizmente eles não vão além dessa tímida observação,
deixando o leitor curioso, mas não apreciavelmente esclarecido.
O
último estudo deste quarteto sem dúvida é o mais perceptivo e, claramente, o mais
bem pesquisado. Valendo-se de material de arquivo relativo a questões
municipais tais como pavimentação das ruas e alinhamento, o traçado de praças
públicas, etc., Nestor Goulart Reis Filho,17 bem fundamentado, defende a
existência de uma legislação portuguesa de construção de vilas para o Brasil,
aplicada com sucesso variável desde a época da fundação de Salvador da Bahia,
em 1549, até.1720. O autor desse estudo é ar-quiteto, mas sua obra, Evolução Urbana do Brasil, representa um
avanço pioneiro na investigação histórica das comunidades brasileiras de
antanho, pois lança mão de dados inovadores e decisivos para a história urbana
que até então haviam sido ignorados pelos outros investigadores.
Não
obstante, mesmo aceitando a asserção de Reis Filho de que existia um
planejamento formal incipiente nos primeiros séculos da colonização portuguesa,
seu estudo ainda deixa sem resposta diversas questões históricas fundamentais.
Por exemplo, conjetura-se: até que ponto a política urbana estava estreitamente
ligada aos objetivos mais gerais do governo? Além disso: os portugueses
redigiram um código de planejamento abrangente, ou os exemplos citados
representam apenas casos isolados? As vilas e arraiais situados fora do alcance
geopolítico dos centros de governo primários, que constituem o enfoque
principal da obra de Reis Filho, recebiam igual atenção da Coroa portuguesa? O
que o período posterior a 1720 (ano em que a análise de Reis Filho termina e
que na presente pesquisa consideramos crítico para a história do desenvolvimento
urbano brasileiro) revela acerca dos problemas e exigências de um processo
urbano que estava evoluindo rapidamente nas regiões interioranas do País, longe
do litoral povoado? Finalmente, o planejamento urbano sistemático era
conceitualmente excepcional, ou as preferências portuguesas eram um reflexo
dos estilos artísticos em voga na Europa?
Por
conseguinte, o objeto principal da minha exposição será um exame tanto dos
requisitos administrativos do Brasil do século XVIII como das predileções arquitetônicas.
A pesquisa sobre esse assunto lançou mais dúvidas sobre a ideia romântica de
que o interior do Brasil foi penetrado principalmente por aventureiros.
Seguindo os garimpeiros e caçadores de tesouros, a Coroa portuguesa ia
estabelecendo a sua autoridade por meio de um sistema de comunidades
criteriosamente planejadas construídas em regiões remotas. Influenciados pela
descoberta de ouro na década de 1690 e diretamente ameaçados, os
administradores metropolitanos buscaram ansiosamente os meios de ampliar o seu
controle; um sistema racional de distribuição de terras, combinado com a
construção supervisionada de vilas, constituiu o processo pelo qual o interior
podia ser protegido contra um crescimento independente e descontrolado.
Nessas
condições, a partir de 1716, quase todas as novas comunidades construídas no
sertão foram subordinadas a um protótipo de planejamento de vilas, promulgado
naquele mesmo ano para a criação da municipalidade de Mocha, na zona norte do
Piauí.18 O conceito geral do traçado desse plano
diretor era barroco, com ênfase em ruas retilíneas, praças bem delineadas
(amiúde orladas por fileiras de árvores plantadas simetricamente) e numa
uniformidade de elementos arquitetônicos. O resultado do uso reiterado desse
modelo foi um tipo de vila padronizado que podia ser facilmente adaptado a
regiões geográficas brasileiras muito diferentes. A mão-de-obra indígena não
especializada (responsável pela maior parte das construções interioranas) podia
ser empregada eficientemente, porquanto o domínio das técnicas de construção de
um único conjunto de edificações básico permitiria a ereção de um número
ilimitado de unidades habitacionais e administrativas, embora as edificações
pudessem ser sobremodo monótonas.
Fisicamente,
a construção de arraiais e vilas planificados no interior do Brasil no século
XVIII representava o compromisso de Portugal com o absolutismo e com o
Iluminismo. O xadrez da malha urbana não era apenas um requinte artístico, mas
sim uma clara representação da imagem civilizada
e europeizada que Portugal esperava
projetar no interior da colônia. Para o administrador barroco, a regularidade
eqüivalia a beleza, sofisticação, civilização e progresso (se bem que por
interpretações estritamente etno-cêntricas). Como nos planos atuais de
modernização e desenvolvimento, os portugueses esperavam mudar completamente --
e conseguiram-no em parte -- os sistemas de valores. Outras nações europeias
podem ter se apaixonado pela imagem pintada por J.-J. Rousseau19 da ingenuidade
da sociedade primitiva, mas os portugueses estavam decididos a elevar a
população autóctone acima do seu estado de ignorância sem ne-nhuma ordem, não
importando o custo nem quão ditosa a inocência pudesse ter sido. Por extensão,
exigia-se que todos os colonos, inclusive os europeus, se ajustassem às novas
regras urbanas e de comportamento; o programa era decididamente obrigatório. A época da conscientização20
e da mobilização das massas que estavam
por trás dos planos de desenvolvimento do governo estava muito adiante no
tempo.
Embora
o ponto mais salientado neste trabalho sejam os projetos de povoamento do
século XVIII, minha pesquisa começa na década de 1690, quando a descoberta de
ouro nas montanhas de Minas Gerais precipitou uma importante reconsideração do
valor da terra, do seu uso e da sua distribuição. Começando com um exame dos
motivos e pressupostos subjacentes ao programa de construção de vilas dos
portugueses, eu passo a apresentar um estudo de casos particulares das
comunidades efetivamente construídas durante esse espaço de tempo, as quais são
analisadas em ordem cronológica e por região geográfica (o Nordeste, o
Centro-Oeste e o Sul). Nos Capítulos VI e VII são examinadas as reformas do
período pombalino (1750-1777), com destaque para os administradores
responsáveis pelo cumprimento das novas diretrizes urbanas. O estudo termina
com o reinado de Da Maria I, no final do século XVIII (mais precisamente de
1777 a 1792, quando ela começou a apresentar sinais de loucura e seu filho, D.
João, depois D. João VI, assumiu a regência), embora os capítulos finais
contenham uma descrição sumária da direção que o planejamento urbano no Brasil
seguiria posteriormente.
A
maior parte dos casos de planificação examinados na exposição do livro
referem-se ao traçado de comunidades relativamente pequenas, ou seja, povoados,
aldeias e vilas. Entretanto, numa amostragem de casos mais limitada, será
apreciado o planejamento urbano de grande escala, no nível de cidade.
Lamentavelmente, não existe nenhum termo de uso corrente na América para
denominar a gama de atividades de planificação para aglomerações variando de 50
a mais de 10 mil habitantes. Empregar o termo planejamento urbano (ou seu equivalente desenho urbano) para este caso pode ser desorientador, porque,
embora geralmente ele seja aceitável, traz a conotação de centro urbano de
grande porte, que claramente não se aplica à maioria das comunidades do Brasil
antigo. Uma alternativa seria inventar uma perífrase que abrangesse todos os
tipos de planejamento,21 como o termo eqüística
do arquiteto grego Konstantinos Apostolos Doxiadis (1913-1975); porém isso
poderia revelar-se contraproducente, pois tenderia a tornar a questão ainda
mais confusa. A rubrica planejamento
urbano, ou planejamento de vilas,
é preferível a qualquer uma das opções supracitadas, uma vez que define o
fenômeno do planejamento sem discriminar o fator demográfico.
Por
conseguinte, em todo o resto desta dissertação, o termo projeto de vila será substi-tuído por planejamento urbano, significando uma abordagem do traçado de
elementos arquitetônicos num Centro habitado, sem consideração do seu tamanho
ou função. A única distinção importante que se deveria fazer seria entre as
comunidades que receberam um planejamento sistemático subsequente e, depois de
fundadas) e as que foram construídas obedecendo desde o início a uma
regulamentação.
Visto
que os critérios empregados para distinguir entre vilas e cidades no período
colonial eram no mínimo arbitrários, não procurei estabelecer categorias demográficas
diferentes para umas e outras; apenas baseei-me no reconhecimento oficial da
Coroa portuguesa. Em incontáveis casos, o critério para elevar oficialmente uma
aldeia à categoria de vila baseava-se apenas na necessidade de instalar
funcionários do governo numa área ainda não superintendida. Entretanto, em
outras conjunturas, a criação legal de uma vila marcava o início de um grande
projeto de planificação urbana, bem como a instalação da administração
governamental. Num nível mais alto, quando as vilas eram promovidas a cidade,
com frequência sofriam uma ampla remodelação urbana com a finalidade de lhes
dar uma aparência consentânea com seu novo título.
Por
conseguinte, o verdadeiro significado das cartas régias que conferiam
formalmente o título de vila não era o reconhecimento do crescimento físico do
arraial ou aldeia, mas sim a percepção pragmática de que, dentro daquela área
específica, era preciso assumir determinadas responsabilidades administrativas.
As vilas tituladas ganhavam o privilégio de uma câmara municipal, cujos membros
eram incumbidos de deveres que foram delineados originariamente na Idade Média:
As câmaras tinham patrimônio e fonte de renda próprios
e não dependiam do Tesouro Real, ou seja, dos fundos públicos das suas
respectivas capitanias. O patrimônio era constituído de terras que lhes haviam
sido concedidas no ato de criação da vila, terras reservadas para o rossio
(passeio público), para a construção de prédios públicos e para a criação de
parques públicos e de uma gleba comunal. As câmaras eram autorizadas a conceder
algumas dessas terras a particulares ou arrendá-las. Ruas, praças, vias de
acesso, pontes, fontes públicas e outras infraestruturas também eram
consideradas partes do seu patrimônio.
As rendas da câmara provinham dos aluguéis que ela
tinha o direito de receber sobre terras arrendadas e de tributos locais
(taxas), autorizados por lei ou por permissão especial do rei. A câmara podia
reter dois terços da renda municipal, porém um terço tinha de ser entregue aos
representantes do Tesouro na capitania.22
Embora
fuja aos objetivos deste trabalho estudar o papel da câmara municipal, os dados
apresentados aqui dão a entender que, pelo menos com referência ao século
XVIII, a incumbência tradicional da câmara de supervisionar a distribuição de
terras foi eliminada. Outros privilégios tradicionais foram reduzidos pelas
intromissões reais nos direitos municipais de distribuição de rendas, no
traçado da sede municipal, etc., e, visto que a própria Coroa se encarregava
cada vez mais de empatar capital em projetos de construção no interior, a
independência relativa da câmara como uma unidade auto-administrada diminuiu
proporcionalmente. Só no final do século as câmaras locais fariam valer os seus
direitos novamente, reassumindo lentamente a iniciativa no desenvolvimento da
vila, independentemente do governo metropolitano. Então, com toda evidência,
qualquer discussão sobre o desenvolvimento urbano traz à baila não apenas a
questão da configuração topográfica, mas atinge algumas das questões políticas
momentosas do Brasil do século XVIII.
As
provas documentais utilizadas neste estudo foram colhidas em arquivos
municipais, na correspondência oficial (tanto dentro do Brasil como com a
metrópole) e no currículo das academias militares que formavam os engenheiros
responsáveis pela maior parte das novas construções urbanas. Nos casos em que
as provas documentais eram inadequadas ou obscuras, lancei mão de fontes
cartográficas para confirmar as minhas conclusões; as excelentes plantas de
cidades disponíveis nas mapotecas tanto de Portugal como do Brasil fornecem
provas notáveis da homogeneidade dos projetos de planificação das vilas do
Brasil colonial.
N o t a s :
(1) Henrique Mindlin, Modern
Architecture in Brazil (Reinhold Publishing Co., Nova York, 1956), p. 1.
(2)
Richard M. Morse, Formação
Histórica de São Paulo: De Comunidade a Metrópole (Difusão Europeia do
Livro, São Paulo, 1970), p. 10.
(3)
Sérgio Buarque de Holanda, As Raízes do Brasil (José Olympio, Rio de Janeiro, 3a edição, 1956),
p. 152. Além dessa obra, uma relação parcial dos livros cujos autores aceitam o
mito da vila colonial brasileira não planificada compreende: Blake McKelvey, American Urbanization: A Comparative History
(Scott, Foresman & Co., Illinois, 1973); Nelson Omegna, A Cidade Colonial (José Olympio, Rio de
Janeiro, 1961); Walter D. Harris, Jr., The
Growth of Latin-American Cities (University of Ohio Press, Athens, Ohio,
1971); e João Boltshauser, Noções da
Evolução Urbana nas Américas (Faculdade de Arquitetura da Universidade de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 1968).
(4) Robert C. Smith, Colonial Towns
of Spanish and Portuguese America, in Journal of the Soci0 of Architectural
Historian, volume XIV, n2 4, 1956, p. 7. Este autor, em Baroque Architecture, in Portugal
and Brazil, H. Livermore, editor (Oxford University Press, Londres, 1953),
pp. 349-384, defende a tese de que as cidades brasileiras têm um caráter
medieval.
(5) Richard M. Morse, From Community
to Metropolis: A Biography of São Paulo, Brazil (University of Florida
Press, Gainesville, 1958), p. XVII.
(6)
Esta citação está contida numa pequena sinopse em Luis
Silveira, Ensaio de Iconografia das
Cidades Portuguesas de Ultramar (4 volumes, Lisboa, sem data), volume I, p.
24.
(7) Pierre Deffontaines, “The Origin and Growth of the Brazilian Network
of Towns", in Geographical Review,
vol. XXVIII, julho de 1938, pp. 379-399.
(8)
Rubens Borba de Morais, "Contribuições para a
história do povoamento em São Paulo até fins do século XVIII", reeditado
em Boletim Geográfico, ano III, n2
30, setembro de 1945, pp. 821-829.
(9) Charles Wagley e Marvin Harris, "A Typology of Latin-American Subcultures",
in Dwight B. Heath e Richard N. Adams, editores, Contemporary Cultures and Societies of Latin-America (Nova York,
1956), pp. 42-69.
(10)
Plínio Salgado, Como
nasceram as cidades brasileiras (Edições Ática, Lisboa, 1946). Urna
tipologia comparativa que coteja as comunidades urbanas da América espanhola,
da portuguesa e da inglesa pode ser encontrada em João Boltshauser, Noções de Evolução Urbana nas Américas,
3 volumes (Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1968).
(11)
Fernão de Azevedo, "A cidade e o campo na
civilização industrial", in Obras
Completas, vol. XVIII, pp. 213-229. Ver também: Waldemiro Bazzanella,
"Industrialização e urbanização no Brasil", in América Latina, vol. VI, n21, janeiro-março de 1963, pp. 3-26; e
Manuel Diegues Júnior, Imigração, Urbanização
e Industrialização (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, série VI, "Sociedade e Educação", vol. 5,
Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1964).
(12)
Gilberto Freyre, The
Mansions and the Shanties: The Making of Modern Brasil (Sobrados e
Mocambos: A Formação do Brasil Moderno), edição e tradução de Harriet de Onis
(Alfred A. Knopf, Nova York, 1966).
(13)
Na bibliografia constante do final deste trbalho será
encontrada uma relação de muitos desses estudos. Informamos o leitor de que as
revistas geográficas do Brasil constituem uma rica fonte de material sobre o
desenvolvimento de muitas cidades, grandes e pequenas, menos bem conhecidas. Um
exemplo desse tipo de trabalho é Paulistas e Mineiros: Plantadores de Cidades,
de Mário Leite (EdArt, São Paulo, 1961).
(14) Aroldo Azevedo, "Vilas e cidades do
Brasil colonial", in Boletim nº 208, Geografia nº11, 1956, pp. 1-96, da
Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade de São Paulo. A obra Evolução da Rede Urbana Brasileira, de Pedro Pinchas Geiger
(Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Rio de Janeiro, 1963), é uma
análise pioneira do desenvol-vimento urbano brasileiro sob o aspecto da
geografia humana. Todavia, o exame do período colonial da História do Brasil
constitui meramente uma parte secundária da obra, que trata principalmente do
crescimento urbano mais recente.
(15)
Paulo F. Santos, A
formação de cidades no Brasil colonial V Colóquio Internacional de estudos
luso-brasileiros, Coimbra, 1968.
(16)
Tito Lívio Ferreira e Manoel Rodrigues Ferreira, História da Civilização Brasileira:
1500- 1822 (Gráfica Biblio Ltda., São Paulo, 1959).
(17)
Nestor Goulart Reis Filho, op. cit. A obra A Cidade Colonial, de N. Omegna
(José Olympio, Rio de Janeiro, 1961), foi excluída desta análise, porque o seu
tema é mais precisamente um exame da estrutura social colonial com matizes
francamente românticos. Da mesma maneira, A
Evolução da Rede Urbana Brasileira, de Pedro Pinchas Geiger (Centro
Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Ministério da Educação e Cultura, Rio de
janeiro, 1963), não foi considerada, porque aborda apenas sumariamente a
urbanização do período colonial.
(18)
Veja-se a análise detalhada no capítulo III.
(19) Jean-Jacques
Rousseau, Social Contract, 1762. Reeditado por Modern Library, Nova York.
(20)
Em oposição ao conceito de educação de adultos por
meio da experiência cotidiana, o termo conscientização é empregado aqui com o
significado de a transformação completa
da consciência das pessoas que as faria compreenderem os parâmetros políticos
da sua existência e as possibilidades de mudarem a sua situação pela ação
política. Essa definição foi extraída de The Homeless Mind: Modernisation and Consciousness, de Peter
Berger, Brigitte Berger e Hansfried Kellner (Vintage Books, Nova York, 1974),
p. 76.
(21)
Veja-se o exame das definições de planejamento urbano
na obra de Charles Abrams The Language of
Cicies: A Glossag, of Terms (Avon Books, Nova York, 1972), p. 48.
(22)
Caio Prado júnior, The
Colonial Background of Modern Brasil (versão para o inglês de Suzette
Macedo, University of California Press, Berkeley, 1969)
Como posso adquirir o livro?
ResponderExcluirBoa noite! Ainda é possível encontrar o livro da Roberta Marx Delson para comprar? O senhor sabe aonde eu poderia comprá-lo?
ResponderExcluirAguardando vossa resposta