Roberta Marx Delson
Tradução: Fernando de Vasconcelos Pinto
Roberta Marx Delson, nascida na
cidade de Nova York, recebeu o seu MA (Master of Arts, mestrado em Ciências
Humanas) e o seu PHD (Philosophy Doctor, doutorado) em Estudos
Latino-Americanos e História na Universidade de Colúmbia. Lecionou na
Universidade Estadual de Rutgers (em New Brunswick, estado de Nova Jersey) e na
Universidade de Princeton (em Nova Jersey), e tem trabalhado como consultora em
programas de estudos latino-americanos e também para o Serviço do Patrimônio
Histórico do Estado de Nova Jersey. Atualmente é lente da Academia da Marinha
Mercante dos Estados Unidos. Suas obras publicadas compreendem o presente
livro, cuja edição original em inglês data de 1979, Readings on Caribbean History and Economics (Conferências sobre a
História e a Economia do Caribe, 1980) e Industrialization
in Brazil: 1700-1830 (1991), esta em co-autoria com John Dickenson, bem
como muitos artigos especializados. Presentemente está elaborando The Sword of Hunger: A Latin-American
History (A Espada da Fome: Uma História da América Latina), conjuntamente
com o eminente brasilianista Robert M. Levine.
A formulação de um plano de construção de vilas.
No final do século XVII foi
descoberto ouro no interior acidentado a oeste da província do Rio de Janeiro.
Esse acontecimento acarretou a avaliação do potencial da colônia por parte de
Portugal e mostrou claramente que o governo precisava agir com presteza para
garantir o controle imediato do rico território interiorano. As terras do
sertão não podiam mais ficar sem supervisão, e os administradores, cientes
disso, logo estabeleceram as primeiras medidas de um programa legislativo para
redefinir os direitos sobre a terra e, ao mesmo tempo, estender a autoridade
real.
Na formulação desse programa,
foram levadas em conta quatro questões básicas. A primeira delas dizia
respeito ao estabelecimento de uma regulamentação para áreas auríferas,
prevendo-se a nomeação de funcionários reais. Isso visava a garantir o
recebimento pela Coroa de um quinto das receitas oriundas da mineração, o quinto de praxe, e possivelmente evitar vendas ilegais a grupos
estrangeiros. A segunda tarefa que se impunha era estabelecer uma jurisdição
sobre os aventureiros (bandeirantes1
e boiadeiros que no decorrer
do século XVII haviam sido os primeiros a explorar o agora precioso sertão, na
sua maior parte sem nenhuma restrição da administração real. Em ligação com
essa necessidade prioritária de reforma da lei e da ordem, havia a vontade da
Coroa de conter a força crescente dos poderosos do sertão, indivíduos que se
haviam enriquecido ampliando as suas concessões de terras originais como
grileiros, fazendo valer os direitos de posse. Com o avanço do século, as
autoridades da Coroa iam não só desafiar esses barões fundiários, mas procurar
desbancá-los mediante a criação de minifúndios para lavradores. Estes se
compunham principalmente de colonos europeus oriundos das possessões insulares
atlânticas superpovoadas do reino, os quais eram considerados mais confiáveis e
também mais propensos à agricultura do que seus contemporâneos bandeirantes.
Por último, os portugueses
pretendiam ampliar os seus domínios territoriais à custa dos espanhóis,
compreendendo que, com o estabelecimento de colônias lusas nas regiões
recém-exploradas do Oeste e do Sul longínquos, seus rivais hispânicos na
América ficariam em nítida desvantagem. Embora as reivindicações espanholas
sobre a região a oeste do rio Tocantins (e a leste dos Andes) tivessem sido
aceitas pelo Tratado de Tordesilhas (em 1494, na pequena cidade espanhola de Tordesilhas,
fixou-se o meridiano situado a 370 léguas a oeste das ilhas Cabo Verde como
limite entre as possessões espanholas e as portuguesas), esse patrimônio remoto
nunca havia sido suficientemente colonizado para garantir a hegemonia
espanhola. A Coroa portuguesa raciocinou corretamente (muito antes da aceitação
internacional do princípio do uti possi
de tis [como te apossaste]) que, se os lusitanos ocupassem efetivamente as terras reclamadas pela Espanha, no
final das contas poderiam assegurar essas regiões para si.
Portanto, esses quatro objetivos
condicionaram a politica portuguesa para as regiões interioranas do Brasil
durante a maior parte do século XVIII. Os administradores lisboetas resolveram
que uma ampliação da autoridade e uma redefinição dos direitos sobre a terra
finalmente ) tinham de ser incorporadas a um plano de desenvolvimento intensivo
para a hinterlândia brasileira. O mecanismo pelo qual o sertão seria n
subordinado à autoridade real baseava-se na fundação de comunidades
supervisionadas pela Coroa, as quais, com o tempo, formariam redes urbanas
integradas, localizadas em pontos estratégicos do interior. Assim, o
planejamento e o a desenvolvimento desses novos núcleos interioranos
orientariam o processo de urbanização durante todo o século.2
A penetração no interior
iniciou-se no final C do século XVI. Até então os esforços de colonização dos
portugueses tinham se confinado de modo geral às zonas litorâneas, o que
inspirou d a Frei Vicente do Salvador a famosa metáfora dos caranguejos
agarrados à linha costeira.3 Entre
os anos de 1532 e 1536, a Coroa portuguesa e dividiu o litoral do Brasil em 15
capitanias (ou c donatarias), largas faixas de terras concedidas a 12 homens de
alto prestígio no reino. O donatário era obrigado a assinar uma escritura
formal com a Coroa. De forma quase medieval, ele tornava-se diretamente
responsável pelo crescimento e desenvolvimento do seu patrimônio e praticamente
recebia carta branca no tocante à urbanização. No estágio de capitanias
hereditárias, não havia nenhuma diretriz para o crescimento das povoações, e
aos concessionários recomendava-se apenas que eles podiam:
...estabelecer todas as aldeias que
quiserem além das povoações que se situarem ao longo da costa da dita terra e
nas margens dos rios navegáveis, mas no interior eles não podem construí-las a
menos de seis léguas de distância uma da outra, de maneira que possa haver pelo
menos três léguas de terra de cada aldeia até o limite territorial da outra.4
A sorte estava lançada. Ao longo
da costa, os donatários tomavam posse de imensos talhões de terra, ficando até
50 léguas (!) nas mãos de um único homem.5 Cada beneficiário, ou capitão-mor,
por sua vez, tinha o direito de conceder terras de sesmaria a colonos dentro da
sua capitania, cuja extensão o próprio donatário fixava. A prática da concessão
de sesmos (grandes extensões de terras) teve origem na Idade Média, quando os
senhores feudais buscavam avidamente voluntários para colonizarem os seus
territórios. As novas comunidades assim formadas, o soberano concedia cartas, e
um sesmeiro distribuía terra aos recém-chegados.6
Entretanto, o sistema de
sesmarias foi mais amplamente utilizado no Brasil (onde grandes áreas de terras
devolutas estavam imediatamente disponíveis), e a sua importância para o
desenvolvimento do País não devia ser subestimado. Conjugada com a influência
senhorial do sistema de donatarias, a prática da concessão de sesmarias
literalmente institucionalizou o fenômeno dos latifúndios. Mesmo com a
decadência da política da capitania particular e a tentativa bem-sucedida da
Coroa de recomprar essas terras e estabelecer o controle real, processo que foi
concluído no século XVIII, a configuração das concessões de terras das
sesmarias persistiu. Acresce que muitas das terras concedidas gratuitamente no
interior foram ampliadas pelo usucapião, ou direito de posse efetiva. Os
funcionários do governo permaneciam nas cidades litorâneas, longes demais para
intervir decisivamente nessa flagrante quebra da autoridade. Na ausência de
fortes sanções governamentais, surgiram poderosas famílias interioranas, que
tiravam o seu prestígio e influência da propriedade
de vastos domínios particulares.7
Nessas condições, o sertão atuava
como um poderoso ímã para aventureiros e habitantes das populosas comunidades
litorâneas sedentos de terras. O célebre historiador brasileiro João Capistrano
de Abreu foi o primeiro a assinalar a força de atração das terras do interior
na sua obra-prima do final do século XIX Os
Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil.8 Nessa obra original, o autor salientou que as
entradas (expedições de exploradores destemidos ao sertão) poderiam ser
mapeadas em ciclos cronológicos, começando com os boiadeiros, seguidos pelos
caçadores de escravos silvícolas e depois pelos garimpeiros. Em vista disso, o
século XVII poderia ser estudado como uma série de invasões não planejadas do
sertão.
De acordo com a cronologia de Capistrano
de Abreu, o estudo da história do interior do Brasil começa propriamente no
final do século XVI, quando decretos proibindo o pastoreio nas redondezas dos
centros urbanos litorâneos forçaram os boiadeiros a migrarem para a caatinga do
Nordeste. As primeiras boiadas a penetrar no sertão foram conduzidas ao longo
do rio São Francisco, em busca da preciosa água necessária aos animais.1 Embora
os boiadeiros não tivessem a intenção preconcebida de colonizar a área, seus
complexos pecuários, instalados em terras ocupadas ao longo do rio, logo
cresceram e se transformaram em pequenas povoações, com a incorporação de
ajudantes da fazenda e de famílias. Por todo o interior da Bahia, para o norte,
em direção a Pernambuco, e, por fim, mais ao norte, até o Maranhão, o processo
foi o mesmo: as boiadas realizavam a penetração inicial, e atrás delas
pequenos grupos de colonos estabeleciam-se. Os currais resultantes desse
povoamento (aldeias de criação de, gado), 1° proporcionavam uma renda escassa
aos criadores sedentários, que vendiam os seus limitados excedentes aos
boiadeiros que passavam.
Enquanto àquela altura a produção
pecuária se limitava essencialmente ao Nordeste, o ciclo da caça de escravos
amerígenas estava concentrado no Sul em geral. O objetivo dos aventureiros
escravistas que, partindo do altiplano ondulado de São Paulo, penetravam no
sertão era incursionar pelas missões do Sul, onde os jesuítas haviam agrupado
facilmente seus protegidos índios em prósperas comunidades agrícolas. Os
caçadores de escravos vendiam então os índios capturados nas cidades costeiras
já fundadas, aumentando assim a sua população e contribuindo muito pouco para o
povoamento do interior.
Em meados do século XVI, a caça
de escravos começou a diminuir em consequência de um programa de armamento
levado a efeito pelos jesuítas, e um novo grupo de aventureiros surgiu,
disposto a explorar o desconhecido. Este último grupo também teve origem em São
Paulo, porém o seu intuito era a descoberta de minerais preciosos, e não a
obtenção de escravos indígenas. Os paulistas pareciam particularmente bem
adaptados à vida rude e penosa dos garimpeiros: certamente a vida na capital da
sua província não os havia habituado aos padrões relativamente luxuosos do Rio
de Janeiro ou da Bahia. Acresce que muitas vezes eles eram produto do
caldeamento entre portugueses e índias, e ha-viam assimilado a experiência
indígena de sobrevivência no interior agreste.
Organizados em grupos denominados
bandeiras, os paulistas (junto com elementos de outras regiões costeiras)
penetravam profundamente na hinterlândia e não raro eram recompensados com o
achado de ouro em regiões que hoje fazem parte do estado de Minas Gerais. Em
seguida às primeiras descobertas de ouro e pedras preciosas da década de 1690,
um número crescente de bandeirantes mineradores vagueavam pelos planaltos
ondulados do interior, tentando repetir os sucessos dos primeiros achados;
en-quanto isso, iam deixando atrás de si uma trilha de pequenos campos de
mineração construídos atabalhoadamente. Não obstante, esses campos precários
constituíram os núcleos dos primeiros povoados realmente permanentes da região.
Nessas condições, a abertura
inicial do sertão brasileiro ocorreu sem qualquer interfe-rência da
fiscalização real. Os aventureiros que buscavam fortuna no tráfico de cativos
indígenas, na criação de gado ou no garimpo de ouro prosseguiam tranquilamente
nas suas atividades, certos de que aquelas regiões remotas estavam fora do
alcance do braço da lei. Impor qualquer controle ali, no século XVII, era uma
tarefa irrealizável pela Coroa, pois simplesmente não existiam vilas nem
cidades onde os delinquentes pudessem ser julgados e, se preciso fosse,
segregados do convívio social. Na falta de centros administrativos apropriados,
a atitude da Coroa foi simplesmente ignorar por completo aquela situação. Só
quando a atração exercida pelos achados de ouro despertou o interesse da
metrópole e quando, concomitantemente, a hinterlândia começou a seduzir um
grande. número de aventureiros é que os portugueses puseram em prática as
primeiras providências necessárias ( para assegurar o controle do interior.
A década de 1690 marcou uma
virada na História do Brasil: na mesma época em que correu a notícia da
descoberta de ouro no sertão, o governo colonial proclamou a intenção de abrir oficialmente o interior. Uma batalha
inevitável começou a delinear-se: o poder real em guarda contra a aristocracia agrária, essencialmente uma
repetição da luta bem conhecida entre a Coroa e os donatários e,
coincidentemente, um claro reflexo do tempo muito curto transcorrido desde a
Idade Média. Entretanto, na passagem para o século XVIII, com a prática da
sesmaria ainda gravada tão profundamente no interior, a luta
assumiu aspectos mais parecidos com a situação de nossos dias, pois o interesse
público, aqui representado pela Coroa, desafiou os detentores da propriedade
privada. A preferência declarada dos
portugueses pelos pequenos fazendeiros, e não pelos grandes latifundiários,
fazia parte do seu ambicioso programa de reestruturação fundiária iniciado nos
anos 1690. A Coroa ia implantar um projeto visionário e tão radical para a
época que implicava em nada menos que uma
reformulação completa da situação jurídica do solo colonial.11
Certamente não foi por mera
coincidência que a primeira lei agrária formal foi elaborada na década em que
se descobriu ouro em Minas Gerais. A lei de 1695, que limitava as concessões de
sesmarias a uma extensão de quatro léguas de comprimento por uma légua de
largura, visava a atingir não só as zonas de mineração, mas também áreas de
terras agricultáveis. Embora essa medida tenha sido interpretada pelos
administradores coloniais como um dispositivo para assegurar a ocupação
efetiva da terra, seu efeito capital consistia em impedir que se reivindicassem
propriedades extensas em zonas que pudessem revelar-se de valor pecuniário
inestimável para a Coroa.
Dois anos depois a Coroa
promulgou uma lei ainda mais restritiva, reduzindo as sesmarias para três
léguas por uma légua e prescrevendo, além disso, que entre uma concessão e
outra se deveria deixar uma área de uma légua quadrada sem ocupação. Dessa
maneira, a Coroa reservava-se um direito de via de acesso, ou um domínio
público potencial, no caso de uma ocupação total da terra. O acesso assim
obtido seria de imensurável importância na eventualidade de um conflito
motivado por litígios em torno de estremas de terras (o que não era raro) e, ao
mesmo tempo, garantiria o acesso a futuras zonas auríferas ainda não
descobertas, acesso esse que poderia ser cortado por um conluio dos
beneficiários de duas sesmarias contíguas.
A última lei do século XVII foi
baixada em 1699.12 Ela fazia referência específica -- e
isso tem um viso bem moderno -- ao cultivo
útil como critério para manter a posse das terras de concessão, e ameaçava
de expropriação quem deixasse de cumprir a prescrição. Conquanto esse corpo de
leis provavelmente representasse mais uma veleidade do que uma determinação
expressa da Coroa, e na realidade precisasse ser revisto depois, as leis
revelam uma completa mudança da postura oficial. A burocracia portuguesa
reconhecera que a colonização metódica do sertão só poderia ser levada a efeito se a terra fosse distribuída equitativamente
em pequenas parcelas a um grande número de indivíduos; a manutenção de grandes
propriedades particulares no interior teria o efeito negativo de desencorajar o
futuro povoamento.
Inequivocamente, era do interesse
dos portugueses fazer cumprir essas leis tão rigorosa-mente quanto possível.
Durante as primeiras décadas do século XVIII, houve múltiplos casos de
processos do Estado contra grandes proprietários de terras que se recusavam a
permitir que colonos se instalassem nas suas
terras.13 Igualmente demoradas eram as
demandas motivadas por questões de limites entre vilas vizinhas, um transtorno
inevitável, em decorrência do qual a terra em litígio não podia ser facilmente
adjudicada para fins de colonização.14
Conjuntamente com seu empenho
em regularizar a distribuição da terra, os portugueses procuraram resolver a
questão da propriedade das áreas de mineração reclamadas. Logo em 1700 o
governador do Rio de Janeiro elaborou um código de mineração, que estabelecia o
procedimento para a distribuição das áreas auríferas entre os garimpeiros. A
lei determinava que todo aquele que descobrisse ouro tinha o direito de
demarcar 60 braças quadradas (uma braça = seis pés = 1,8288m; 60 braças =
109,728m) para si, uma superfície igual sendo reservada para a ( Coroa e seu
representante no distrito de mineração. Outros lotes auríferos eram delimitados
e adjudicados de acordo com o número de escravos que o minerador tinha a seu
serviço.[
Todavia, como o historiador
Charles Boxer salientou, mesmo com esse sistema de loteamento claramente
definido, os casos de corrupção eram comuns nas regiões de mineração.15 O
suborno de funcionários da Coroa para obter lotes suplementares era notório.
Mesmo onde a terra já havia sido distribuída de conformidade com as prescrições
legais, não havia meio de impedir que os mineiros anexassem as concessões de
outros aos seus lotes, ou que eles os vendessem por um bom preço. No caso da
outorga de terra agricultável, a área de mineração tinha de ser severamente
vigiada para impedir a incorporação de terras em larga escala e trapaças.
Mas a terra em si não era o único
problema com que a Coroa se via a braços. Igualmente perturbadores eram os
indivíduos que enxameavam sertão adentro, considerados uma casta
particularmente detestável pelos observadores portugueses. O potencial de conflito aberto saltava aos
olhos, principalmente porque os canavieiros do Nordeste, fortemente premidos
pelas recentes recessões provocadas pela concorrência do Caribe,16 abandonavam os seus canaviais aos bandos para
tentar a sorte na mineração. Os paulistas eram infensos a esses intrusos (tanto
aos plantadores como aos escravos) quase tanto quanto aos reinóis, portugueses
que chegavam em grandes contingentes da metrópole com o fito de compartilhar da
riqueza da terra. Se se quisesse evitar lutas armadas e fazer valer a lei e a
ordem, era preciso tomar providências drásticas. Assim sendo, o governador do Rio
cie Janeiro (sob cuja jurisdição a área de mineração estava) em 1682 foi
encarregado de controlar as atividades dos vagabundos e desordeiros, seguindo o
exemplo das ordens religiosas e agrupando tais elementos à força em povoações
adrede criadas. Com efeito, a fraseologia das instruções oficiais reforça a
impressão de comunidades clericais, pois nelas se faz referência explícita a reduzir a população errante, exatamente
a mesma terminologia empregada pelos missionários nas suas reduções (aldeias).17 Agrupando-se
esses andarilhos em povoações facilmente administradas, os infratores
potenciais provavelmente seriam desencorajados e, ademais, os resultados
positivos que se deveriam colher da administração firme e da ação da justiça
podiam ser coadjuvados pela atuação de párocos. Pela sua lógica intrínseca, as
instruções devem ter recebido forte apoio dos administradores coloniais, porque
três anos depois, em 1696, o novo governador da capitania recebeu diretrizes
semelhantes, desta vez instruindo-o a ampliar o programa mediante a construção
de tribunais em que juízes itinerantes pudessem dar audiências.18
Evidentemente nem todos os
governadores eram conscienciosos no cumprimento das novas diretrizes, ou então
eram incapazes de pô-las em prática de modo a concretizar todas as suas
potencialidades. Em consequência disso, em 1709 a Coroa foi obrigada a renovar o edito para reduzir toda a gente que anda nas minas e povoaçoens.19
Por todo o século
XVIII, ordens semelhantes para reunir os espalhados
foram recebidas pelas autoridades regionais. O princípio era o mesmo, não
importando a região onde a legislação determinasse a criação de comunidades, se
na bacia amazônica, no Sul ou no Centro-Oeste da colônia. Como observou um
famoso historiador, os portugueses estavam convictos,
com justa razão, de que a construção de tais municipalidades era o melhor meio
de civilizar e promover o povoamento do agreste sertão.19
A lógica da política da
construção de vilas subsidiada pelo governo também era patente no trato do
problema de manter o controle sobre o escoamento do ouro que estava sendo
extraído. Era conveniente que povoações e vilas localizadas em zonas produtoras
de minerais preciosos sediassem casas de fundição e instalações reais de
cunhagem de moedas, enquanto funcionários residentes realizariam uma
escrituração metódica das contas da mineração, restringindo assim as
possibilidades do tráfico de contrabando. Além disso, se alguma fraude fosse
cometida, os portugueses disporiam de autoridades judiciárias no próprio local,
capazes de exercer a justiça.
Por essa mesma lógica pecuniária,
também era evidente para os representantes da Coroa que as novas povoações iam
facilitar o recebimento de impostos dos habitantes agora agrupados, que
indubitavelmente haviam escapado a esses inconvenientes enquanto não houvera
nenhum controle no sertão. Ademais, o próprio ato da criação de uma vila
geraria renda suplementar para os cofres reais, porquanto a taxa devida pelo
recebimento de um título de vila ia diretamente para o Tesouro Real. Assim,
admira pouco que muitos acampamentos de mineração improvisa-dos tenham sido
oficialmente convertidos em vilas; essas novas vilas eram necessárias para
aumentar as rendas do Tesouro Real. 20
Como já foi assinalado, uma
última razão para a decisão portuguesa de assumir o patrocínio de um programa
de urbanização nas regiões interioranas derivava do desejo luso-brasileiro de
ampliar os domínios territoriais em detrimento dos espanhóis. A pedra angular
desse programa foi assentada em 1680, quando os portugueses fundaram a colônia
de Sacramento na margem oriental (esquerda) do rio da Prata, no seu estuário,
exatamente do lado oposto da cidade espanhola de Buenos Aires. Os espanhóis
revi-daram imediatamente, criando o núcleo urbano de Montevidéu a jusante de
Sacramento (e também na margem oriental), e uma luta pelo controle foi
desencadeada. Os portugueses perceberam que, se quisessem sustentar a sua
reivindicação da extremidade sul, era indispensável criar uma sólida linha de
comunicação entre Sacramento e a povoação mais próxima sob o domínio da Coroa
(em São Paulo). Como ficou comprovado no interior do Nordeste e na zona de
mineração, a solução mais eficaz para manter a autoridade era fundar uma série
de comunidades com habitantes permanentes, uma verdadeira fortificação humana
responsável pela segurança da região. Muitas das povoações de Santa Catarina e
do Rio Grande do Sul devem a sua origem a esse esforço. Nos anos 1740 e nas
décadas ulteriores, a Coroa procuraria incrementar a população adotando um
programa de imigração oficial para a região, pelo qual colonos dos Açores
superpovoados e de outras possessões portuguesas seriam reassentados no Sul.
Se o território sulino era de
interesse fundamental para os portugueses, o Extremo Oeste o era mais ainda,
pois a descoberta de ouro nas suas zonas interioranas subitamente conferiu a
essa região uma importância estratégica imensa. Consciente disso, a Coroa
seguiria no encalço dos acampamentos de bandeirantes em Mato Grosso e Goiás,
tomando as providências legais necessárias para a criação de vilas e arraiais
por-tugueses. No meado do século XVIII, a construção de uma cidade-capital no
rio Guaporé e a fortificação de comunidades indígenas ao longo do sistema
fluvial assegurariam a supremacia lusitana na região, um fato que foi
reconhecido internacionalmente no Tratado de Madri, em 1750.
Portanto, em resposta a quatro
estímulos interligados -- a distribuição de terras; a descoberta de ouro; a
necessidade de implantar a lei e a ordem no sertão; e a ameaça pendente dos
interesses espanhóis --, os portugueses resolveram-se a cobrir a hinterlândia
com um sistema de cidades, vilas e povoações organizadas. Seus projetos
racionais para levar a efeito essa empreitada que incluíram o emprego de planos
diretores -- e seu êxito final constituem um dos aspectos mais notáveis da
História do Brasil do século XVIII e serão estudados extensamente nos capítulos
subsequentes. Todavia, é da máxima im-portância ressaltar aqui que os
portugueses, profeticamente, reconheceram a necessidade de urbanizar a
hinterlândia brasileira e de realizar uma reforma fundiária, isso há mais de
250 anos! Ironicamente, ainda hoje se discute o mesmo tema da criação de
minifúndios e da comprovação do uso efetivo do solo nas grandes propriedades. O que os portugueses empreenderiam e
conseguiriam realizar num grau surpreendente durante o último século completo
de administração colonial era nada menos que um repto frontal a todo o status
quo colonial.
N o t a s :
(1) Na introdução de The Bandeirantes: The Historical Role of lhe Brazilian Pathfinders, de Richard M.
Morse, editor (Alfred A. Knopf, Nova York, 1965), este reconstitui a origem da
palavra bandeira. Originariamente, o termo era empregado para designar uma unidade
militar portuguesa de 36 homens; porém ele também tem a cono-tação de causa defendida por um grupo organizado,
pois é em torno da bandeira que o grupo se reúne. No contexto brasileiro, os
homens que se incorporavam às expedições ao interior eram conhecidos pela
denominação de bandeirantes, derivado de bandeira.
(2) Noutro texto, eu resumi essas asserções e comentei o êxito
português em atingir esses objetivos. Ver
"Colonization and Modernization in the Eighteenth-Century Brazil", de
Roberta Marx Delson, in Social Fabri c and Spatial Structure in Colonial Latin
America, de David j. Robinson, editor (University Micro-films International,
Ann Arbor, Michigan, 1979), pp. 281-313.
(3) Frei Vicente. do Salvador, História do Brasil: 1 500-1627
, editada por Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia (São Paulo, 1931), p. 19.
(4) Documento real de outorga da capitania de Pernambuco a Duarte
Coelho Pereira, in A Documentary History of Brazil, de E. Bradford Burns,
editor (Alfred A. Knopf, Nova York, 1966), p. 38. Charles R. Boxer, em The
Golden Age of Bra-169 5 -17 50 ((Jniversity of California Press, Berkeley,
1969), à página 357, afirma que uma légua é igual a 3.755 1/15 passos
geométricos. Segundo o The Random House Dictionaa of the English Language
(edição de texto integral, Random House, Nova York, 1967), um passo geométrico
é igual a cinco pés. Assim sendo, uma légua seria igual a pouco mais de 3,4 milhas, ou 5,472km,
uma milha terrestre medindo 1.609,35m. Para os fins desta exposição, uma légua
será considerada igual a 3,5 milhas (5.632,725m).
(5) E. Bradford Burns, A History of
Brnil (Co-lumbia University Press, Nova York, 1970), p. 24 et passim.
(6) Para conhecer as práticas de
sesmarias no Portugal medieval, ver: Portugal,
de J. B. Trend (Ernest Benn Ltd., Londres, 1957), p. 69; The Donatory Captaincy in Perspective: Portuguese Backgrounds to the
Settlement of Brazil", de Harold B. Johnson, Jr., in HAHR, vol. LII,
1-3.2 2, maio de 1972, p. 211; e "A Portuguese Estate of the Late
Fourteenth Century", de Harold B. Johnson, in Luso-Brazilian Review, vol.
X, riº 2, inverno de 1973, p. 158.
7) Caio Prado Júnior, The
Colonial Background of Modern Brnil (versão de Suzette Macedo, University of
California Press, Berkeley, 1967), p. 220.
(8) João Capistrano de Abreu, Caminhos Antigos e Povoamento do
Brasil (Sociedade Capistrano de Abreu, Rio de Janeiro, 21 edição, 1960); ver
sobretudo as páginas 59-164. Myriam Ellis, em "The Bandeiras in the
Geographical Expansion of Brazil", in The Bandeirantes, de Richard M.
Morse, editor, às páginas 48-63, também disseca esse fenômeno cíclico.
(9) Segundo Caio Prado Júnior, op. cit., p. 216, era proibido
criar gado em torno desses centros num raio de dez léguas marítimas. Essa
disposição tinha por finalidade suprimir a competição pela área periurbana,
necessária para a produção de gêneros alimentícios para os habitantes da
cidade.
(10) Por exemplo, Pastos Bons, no Maranhão, e Currais Novos, no
Rio Grande do Norte. Em "Embriões de cidades brasileiras", in Boletim
Paulista de Geografia n.225 (março de 1967), à página 53, Aroldo Azevedo dá uma
relação mais ampla de cidades-currais.
(11) Ruy Cirne Lima, Terras Devolutas: História, Doutrina,
Legislação (livraria do Globo, Porto Alegre, 1935), p. 37.
(12) Todas essas determinações legais são analisadas por Charles
R. Boxer na sua obra The Golden Age of Brnik 1695-1750, já citada.
(13) Por exemplo, em 1715 foi instaurado um processo do Estado
contra o detentor de uma sesmaria na proximidade da vila de Conceição, motivado
pelo fato de ele não permitir assentamentos de colonos na sua propriedade
(AHU, Códice 241, fls. 321v. e 322).
(14) Ver, por exemplo, o processo movido pela Coroa referente a
litígios jurisdicionais suscitados pela criação de uma vila na região mineira
de Serra Fria-Barra do Rio das Velhas, datado de 12 de janeiro de 1720 (AHU,
Códice 241, fls. 321v. e 322).
(15) Charles R. Boxer, op. cit., p. 52.
(16) Ver o artigo The Brazilian Sugar Cycle of the XVIIth
Century and the Bise of the West Indian Competition, de Matthew Edel, in
Caribbean Studies, vol. 9, ri2 1, abril de 1969, pp. • 26-33.
(17) Carta do rei Dom João V, o Magnânimo, ao
governador do Rio de Janeiro, de 27 de dezembro de 1693 (ANRJ, Códice 952, vol. VI, Rio 253).
(18) Correspondência expedida de
Lisboa por Dom João V ao governador Artur de Sá e Meneses, datada de 6 de
novembro de 1696 (ANRJ, Códice 952, vol. XVIII, p. 101).
(19) Parecer do Conselho
Ultramarino sobre o estado das minas, de 17 de julho de 1709 (AHU, Códice 232,
fl. 259).
(20) Charles Boxer, op. cit., p. 47. Para conhecer mais detalhes
sobre a anarquia reinante nas minas brasileiras, ver João Pandiá Calógeras, As Minas do Brasil e Sua Legislação
(Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1904).
(21) Esse fato é assinalado na
Carta Régia de 21 de abril de 1738 que dava permissão para fundar uma aldeia
perto de Cuiabá. O texto reza:... e vos
concede-se a faculdade para poderdes fazer huma aldeya de que ahi se
necessitava pelo Rendimento da Fazenda Real. AHU, Goiás, Papéis Avulsos.
(22) Ver os Capítulos IV e VI, mais adiante.
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