Frank Svensson
Texto distribuído aos alunos a título de introdução do curso de extensão ministrado na Universidade de Brasília em 08 de novembro de 2003.
A revolução russa (1917) e a revolução alemã (a
República de Weimar, 1918-19) caracterizam períodos de desenvolvimento do
marxismo. Pela primeira vez dois partidos socialistas adotaram-no
declaradamente como ideologia, ao deterem o poder do Estado. Evidenciaram-no
como das principais correntes de pensamento do século XX. Diferentemente
d'antanho, o marxismo ganha sua Meca. Passa a ter referências geopolíticas
concretas: capta orientações sem limitar-se a pronunciamentos de
personalidades como Engels, Kautsky, Plechanov.
De
1920-70, o marxismo-leninismo soviético e do leste europeu marca-se no
desenvolvimento do marxismo. A social-democracia abandona ou se liga a
distorções do marxismo. Pós-Segunda Grande Guerra reduziu-se a liderança
teórica dos pensadores. No ocidente, o marxismo evolui como corpo teórico e olha para o mundo acadêmico. Susan
James (1985) revela: esses novos teóricos marxistas, à diferença de seus
antecessores, não viram a obra de Marx como fonte de previsão do futuro ou como
elaboração de um manual de ação revolucionária, mas como origem de um rico e
instigante método explicativo da realidade.1
Dividido o socialismo internacional (comunistas
x socialistas) e contradições à baila entre marxistas
revolucionários e partidos institucionalizados por enfoques díspares da teoria
marxista, decompôs-se a original unidade dialética de Marx
(conhecimento histórico, revolução, teoria econômica e organização do movimento
obreiro). Haver-se desintegrado a obra de Karl Marx quiçá ratifique o principal
problema marxista atual: divisão em áreas e projetos, tendências
teóricas e práticas discordantes. Que se pergunte: que restou do projeto
original de Marx? Sua totalidade dialética constituía um sistema garan-tido
por relações internas de componentes que se condicionavam.
Nem a teoria de Marx
(filosófico-econômica) nem a práxis (estratégia revolucionária e
organização de trabalhadores como classe) basearam-se nalgo fora dos homens,
entendidos nas atividades, em condições históricas partículares. A disparidade
entre a síntese de Marx e as que dele decorre resulta dele incluir o
concreto trabalho humano em sua dialética histórica.
Composto
de lógica dialética, filosofia da natureza e filosofia do
espírito2, o sistema hegeliano formava a totalidade das partes
inter-dependentes. Interrelacionar áreas da realidade entre si como tomos da totalidade
caracteriza tanto Hegel como Marx e o marxismo inicial. Nisto é concreta a continuidade
Hegel...Marx...primeiros marxistas. Distinguiam partes constituintes das totalidades
produzindo distintos conceitos sobre elementos mantidos no desenvolvimento do
marxismo em decurso. A principal mudança
imposta por Marx foram suas restrições ao conceito hegeliano de absoluto,
ao entendimento de uma idéia ou de um espírito desde o surgimento
do universo e independentemente da história humana. Hegel via na natureza
objetiva uma expressão dessa idéia em segundo estágio, quando não tinha
consciência de si, sua precondição para estruturar seu sistema. A crítica de
Marx à noção hegeliana do absoluto fundava-se na crítica naturalista de
Feuerbach a Hegel, Feuerbach concebendo o homem dotado de sentidos numa totalidade
verdadeiramente terrena. Diversamente de Feuerbach, Marx via o homem como ser
objetivo e ativo, atuante em circunstâncias históricas. Desenvolveu sua filosofia
da história com conteúdo distintíssimo da de Hegel. Para Marx, a essência da
história humana residia no desenvolvimento das forças produtivas dentro das
suas condições sociais. Nada como pensava Hegel, defensor de que o desenvolvimento
espiritual dos homens era a questão-mor.
A economia
constituí em Marx a base das relações sociais, do comportamento social. O
restante de sua totalidade é a elaboração de uma estratégia da revolução
socialista:
1) a teoria da revolução socialista;
2) a teoria e o trabalho de organização da
classe obreira (havia inter-dependência; não se entendia a teoria marxista
desligada da teoria da organização da classe obreira e vice-versa). Condições
históricas conduziram essas duas partes a se separarem com o tempo.
O conceito
de totalidade de Marx baseia-se numa práxis filosófica de caráter político.
A práxis revolucionária é sua principal categoria. Sem ela, as demais
partes da totalidade de Marx ficam elementarmente isoladas. Vê-se na revolução
socialista resposta a uma objetiva necessidade histórica e econô-mica,
dependente de uma prática revolucionária, e a organização da classe
trabalhadora como movimento independente de prática revolucionária. No caso
pode-se reduzir a totalidade de Marx a uma teoria da história e a uma teoria
econômica, objetivas porém isentas do processo histórico como teoria
sobre a história ou teoria sobre a economia capitalista, para a
continuidade da história.
Embora a ideia de um socialismo científico
baseado em leis dialéticas fosse decisivo para a vitória do marxismo
como ideologia de movimento, há que considerar que seu desenvolvimento teve
como determinantes as condições sociopolíticas reais da Alemanha e da Rússia.
Na Alemanha existia (1880-90) um
movimento obreiro politicamente orientado para o socialismo, mas faltava um
movimento revolucionário que com todos os meios lutasse pela queda do regime reinante. Na Rússia,
havia mais de meio século, ocorria o oposto: uma tradição de luta clandestina
revolucionária sem um movimento operário autônomo. Foi pelo marxismo que o
movimento operário alemão teve sua identidade caracterizada como
revolucionária, enquanto o movimento revolucionário russo teve raízes
teoricamente identificadas pelo marxismo no proletariado. Com a ajuda do
marxismo podia-se ignorar que o movimento operário alemão não fora um movimento
revolucionário; tanto quanto na Rússia - com a ajuda do marxismo - foi possível
legitimar surgir um movi-mento operário independente, às vezes em contradição
com sua intelectuali-dade revolucionária.
Quando a
tendência reformista do movimento alemão e a tendência economicista do
movimento obreiro russo despontaram (anos 1890), a ideologia do marxismo
teórico estava desafiada. Na Alemanha perguntava-se se era revolucionário o
movimento operário. Na Rússia se questionava sobre a posição do movimento
operário frente à revolução burguesa.
Tendência perceptível foi a maior compreensão
pela dialética da natureza desenvolvida por Engels do que pelo conceito
de atividade humana por Marx. Em muito se entendeu o desenvolvimento do
capitalismo e sua passagem à sociedade socialista como decorrência de um
processo histórico sujeito a leis assemelhadas às da natureza. Mesmo que um socialismo
científico (à guisa das leis naturais) fundado em leis dialéticas
haja sido valioso como ideologia comunista, o desenvolvimento e o conteúdo do
marxismo foram determinados mais por relações sociopolíticas factuais.
Comparamos a Alemanha - movimento operário
organizado e voltado para o socialismo - à Rússia, com tradição de oposição
clandestina de meio século de trabalho contra o tzarismo. A dualidade histórica
do desenvolvimento marxista sintetizou a dialética entre filosofia da história,
teoria econômica, movimento revolucionário e organização da classe operária – a
problemática.
Sabe-se dos esforços de Bernstein, Lênin e
Rosa de Luxemburgo para resolvê-la. Condições como as de Marx e as de décadas
posteriores não se reapresentaram. Marx inegavelmente apontou processos
fundamentais da economia capitalista melhor que qualquer concorrente: a
vitalidade da economia capitalista, seu poder de concentração, de
centralização, e as inevitáveis crises econômicas. Previu que a classe
trabalhadora tornar-se-ia específica da sociedade burguesa; que ao
desenvolvimento do capitalismo haveria um movimento sociopolítico
intertrabalhadores. Nisto reside a força do corpo teórico e do exemplo de vida
de Marx.
Seus esforços pela síntese das condições burguesa
e proletária, do objetivo e do subjetivo, de materialismo
e idealismo, de ciência e crítica, de reforma e revolução, resultaram post
mortem na ciência objetiva materialista revolucionária de expressão maior
no marxismo-leninismo. Nele se quis man-ter a ação recíproca dos componentes da
totalidade reconhecida por Marx, bastante por formas afins às da dialética
da natureza. O grande embate con-temporâneo é reconhecer ativamente que o
marxismo constitui corpo teórico identificado por caráter ativo e político,
pelo esforço em prol da síntese dos seus componentes essenciais.
Não bastam ações e reflexões individuais,
interessantes e instigantes que sejam. Implica na ação e na reflexão
resultantes de formas socialmente organizadas. Partidos e agremiações que se
querem de base marxista estão instados a assumir o papel de vanguarda.
N o t a s :
1 - Susan James: capitulo “Louis Althusser”, in Skinner, Quentin: Return
of Grand Theory in the Human Sciences. Cambridge, 1985.
2
- A Filosofia do Espírito de Hegel tem: a) Espírito subjetivo = trata
das denomináveis questões psicológicas e das aptidões do humano como ser
pensante; b) Espírito objetivo = espírito corporificado na sociedade
humana, em sua Filosofia da História e na Filosofia Política; 3) Espírito
absoluto = conhecimento absoluto de si expresso em arte, religião e
filosofia.
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