Giulio Giorello (Milão, 1945 -- ), Filosofo
marxista, matemático, titular da cátedra de Filosofia da Ciência na
Universidade de Milão. Colabora com o jornal Corriere dela Sera.
Tradução: Frank Svensson
I – Serão as ideias cópias das coisas?
A concepção de ciência baseada na
física fenomenológica, bem como sua recusa da explicação mecânica dos fenômenos
naturais, considerava as hipóteses
matemáticas que permitiam em casos particulares o recurso à mecânica,
somente para calcular certos resultados. Para Berkeley, uma hipótese matemática
não era nada mais que um dispositivo
engenhoso l : nada revela sobre a natureza de
um fenômeno físico, nem sobre suas
propriedades particulares, na medida em que sua verdade não está em questão,
mas só sua utilidade, sua exclusiva eficiência como instrumento de cálculo.
Em outros termos: a física
fenomenológica não renuncia a explicação científica dos fenômenos, mas deixa de
lado a compreensão do objeto explicado, a partir do momento que estima que a
explicação acessível, graças ao trabalho do pesquisador, não pode permitir uma
mais profunda penetração da natureza das coisas.
No capítulo V de Materialismo e empiriocriticismo, Lenin
criticando a revolução moderna nas
ciências naturais e o idealismo filosófico, justamente sobre esta questão,
faz referência ao discurso inaugural (da cessão de física) no Congresso dos
cientistas ingleses, tido em Glasgow em 1901.2
Nessa
apresentação, Arthur W. Rickert compara as duas tendências da física
contemporânea, o mecanicismo e a física fenomenológica, examinando os
fundamentos da primeira tendência – existência dos átomos, natureza mecânica do
calor, existência do éter – e os objetivos formulados por filósofos e
cientistas, como Poincaré, Ward, Poyinting que, em medida distinta, aderem a
concepção oposta. Trata-se de se pronunciar sobre as hipóteses que constituem a base das teorias científicas, em relação
à definição e os objetivos da atividade
científica, vista como aquela que se propõe não só demonstrar que muitos fenômenos, à primeira vista vistos como
tendo pouca ou nenhuma relação com os mesmos, são ligados, mas também explicar
as relações entre os mesmo..3
Uma vez aceito o ponto de vista
da física fenomenológica, a teoria científica só pode ser aceita como um
gigantesco apoio de memória, ou seja
como um meio para trocar ordem por desordem codificando observações e leis
segundo um sistema artificial e ordenando assim nosso conhecimento com um
número relativamente pequeno de princípios fundamentais. Esta simplificação,
introduzida por um esquema, o qual, por imperfeito que possa ser, nos permite
deduções a partir dum reduzido número de princípios primeiros, tornando as
teorias úteis do ponto de vista prático.4
Mas, contesta subitamente Rücker,
é possível obter tais vantagens graças a axiomas, teorias baseadas em ideias
completamente falsas?5
Uma situação que a filosofia da ciência bem conhece. Basta aqui um exemplo:6
Um geógrafo estuda a direção
de um rio em se servindo de um mapa no qual os rios são indicados na cor azul. Nosso
geógrafo está profundamente convencido que o mapa reflete a região que está a estudar a ponto de considerar que os
rios são realmente azuis. Convicto disso ele determina a direção do rio.
Direção exata, se for um bom mapa, mesmo se a dedução do geógrafo decorreu de
uma falsa premissa.
Como o geógrafo do exemplo,
comporta-se em geral o cientista, pelo menos o físico, que, observa Rücker, se
habilita de representações da realidade dotadas de uma propriedade paradoxal;
uma tal representação ou modelo, é
por um lado extremamente diferente daquilo que são as coisas realmente; por
outro lado, mesmo se a correspondência entre o modelo e o comportamento das
coisas que deve representar, é provavel-mente imperfeito, contudo um é o fac-símile do outro.7
A correlação dos fenômenos
naturais não pode ser compreendida na sua plenitude, mas pode ser explicada na
medida em que possa ser imitada pelo
modelo com boa margem de sucesso. Um modelo é um instrumento imaginário, construído artificialmente pelo homem, que
pode ser aplicado ao setor da realidade em estudo justamente para que o comportamento das coisas que representa,
ou seja, que imita, possa ser previsto graças à parte correspon-dente desse
instrumento imaginário. 8
Os rios reais representados sobre
o mapa não têm a mesma natureza, ou seja, não são feitos da mesma substância;
mas o traço azul sobre o mapa imita curso d’água com precisão suficiente para
permitir ao geógrafo prever a direção dos rios. Num segundo momento refletindo
sua própria atitude, o geógrafo cessa crer
ingenuamente que o rio é azul e reconhece que sobre um mapa criado
artificialmente pelo homem, é uma coisa (azul) que se comporta como a coisa
real (o rio). Está pronto então para a fase seguinte, a que permite ao
cientista abandonar sua atitude ingênua em favor de uma atitude crítica.
Deixemos a metáfora, se as leis
da elaboração do modelo podem ser expressas por abstrações, como, por exemplo,
formulas matemáticas. Uma vez obtidas tais formulas, podemos abandonar o modelo
... simplesmente instrumento auxiliar, útil para obter as equações, podendo ser
abandonado uma vez construído o edifício dos símbolos matemáticos. 9
Uma vez adotado este ponto de
vista, a física fenomenológica, tendo agora renunciado à tentativa de conhecer
a natureza dos objetos mais que nos cercam além dos possíveis de se obter por observação direta, mas que nos
permitem conhecer como se comportam em dadas circunstâncias. 10
O geógrafo entende que para
determinar a direção do rio, nenhuma hipótese quanto a natureza do mesmo é necessária,
nem o é saber se de fato é de cor azul ou mesmo de água, mas é necessário
dispor de um sistema de símbolos que
permitam deduzir sua direção. O mapa resume,
congrega todos os fatos observáveis sobre seu curso d’água. A física fenomenológica passa assim ao modo
naturalista de pensar, ou mais precisamente à perspectiva concernente ao
conhecimento da natureza. Lenin chama agnosticismo. Rücker diz a propósito:
Sem dúvida que esse seja o caminho mais fácil a seguir. Qualquer
crítica é proibida, se, desde o início, admitamos não poder ir além das
aparências; que nada podemos conhecer sobre a constituição dos corpos
materiais; mas devemos nos contentar em formular uma descrição de seu
comportamento graças às leis da natureza expressas em equações. 11
A reconstituição feita por Rüker da posição fenomenológico-agnóstica
serviu para defender a concepção mecanicista, em particular da teoria atômica
que ele estima essencial ao progresso da ciência. Postulados da crítica
fenomenólogica resulta necessariamente em que a forma a mais elevada de teoria
é aquela que doravante renuncia formar uma imagem mental clara da constituição
da matéria. Aquela que expressa observações e leis naturais pela linguagem e
pelos símbolos que conduzem a resultados verdadeiros, independente de qual seja
nossa concepção da natureza real dos objetos em questão.
Desse ponto de vista, a teoria atômica
não resulta tão falsa que desnecessária: ela pode ser considerada como uma
tentativa de dar precisão contra a natureza de ideias vagas que deverão continuar vagas. 12
Duas observações aqui se impõem:
para evidenciar a proximidade e ao mesmo tempo a extrema distância entre Lenin
e Rücker.
1) Rücker toca, nas palavras
acima abordadas, o cerne de um problema destinado a reaparecer várias vezes na
reflexão sobre a ciência do século XX. Aquele da neutralidade teórica da
ciência, entendida por neutralidade
teórica.13 A afirmação que as visões de
mundo são essencialmente equivalentes, ou melhor, insignificantes para o desenvolvimento
das distintas teorias científicas. Ponto de vista que pelo menos implica uma
perspectiva da física fenomenológica, um princípio extensível à biologia,
psicologia etc., e culmina numa atitude de tipo fenomenológico, acentuando a
insignificância de nossa concepção da
natureza real dos objetos considerados.
2) Rücker defende explicitamente
a concepção mecanicista, em particular teoria atômica, na medida de estar
convencido da legitimidade intrínseca da mesma. Contestar física fenomenológica
e concepção mecanicista é uma verdadeira e justa luta em favor da verdade.14
Nessa luta o enfoque da física fenomenológica trata a matéria somente como nossos sentidos
a conhecem e não pretende ir além da superfície. A passagem é amplamente
ultrapassada por Lenin uma vez que a sensação é admitida como um primum, para
fazer dessa nova física uma arma de ataque ideal do idealismo filosófico, Sobre
esse ponto Rücker observa:
a) No que concerne a questão da constituição da
matéria – e do modo que pode ser representada com precisão, devemos por em
princípio uma vez por todas que a natureza das coisas é e deve restar ignorada;
b) mas não resulta imediatamente disso que sob
a complexidade dos fenômenos superficiais que tocam (afetam) nossos sentidos
não possa existir um mecanismo mais simples de existência do qual possamos
obter uma prova indireta, naturalmente, mais decisiva.15
Quanto aos pontos a) e b) as
convergências e divergências de Lenin e Rücker são significativas. Sobre o
ponto a) a teoria oposta à vontade do materialismo dialético reconhecendo os
limites que um programa dado de pesquisa enfrenta como limites internos ao mesmo,
em certas condições históricas, e não como limites absolutos do conhecimento
humano em sí (cf.§ 3. 2.);
Em b), Rückert esclarece como,
mesmo premissas de uma filosofia que admite esses limites, não resulta
necessariamente a impossibilidade de construir imagens sempre mais adequadas
(ou pelo menos sempre mais simples) da realidade, em aprofundamento de nossas
ideias sobre a constituição da matéria além da superfície das aparências.
A questão controvertida na
reflexão filosófica sobre a ciência da natureza ao início do século XX se
expressa no seguinte dilema: As hipóteses que constituem a base das teorias
científicas atualmente mais difundidas devem ser consideradas como descrições
precisas da estrutura do mundo que nos cerca (exata descrição da constituição
do universo que nos cerca) ou somente cômodas (convenientes) ficções.16
Rücker responde: descrições da
estrutura do mundo, exatas até cero ponto. Citando justamente essa passagem
para uso contra os companheiros, russos de Mach, Lenin retoma a questão: Para
empregar os termos de nossa discussão com Bogdanov, Iouchkévitch e Cia: são
cálculos da realidade objetiva, da matéria em movimento ou trata-se tão somente
de metodologia, puro símbolo, formas de
organização da experiência ? 17
Lenin retoma aqui o termo calculo
diretamente de Rücker: o que é extremamente significativo. Para esclarecer a
oposição entre as duas escolas, Lenin empresta o termo fundamental de uma
passagem de Rücker onde afirma que nós temos razão para estimar que o esboço
que nos dá a ciência, é em certa medida uma cópia (copy) e não um simples diagrama da verdade.18
Quando o geógrafo descobre que o
rio não é constituído de cor azul, mas de água, ele certamente não precisa para
tanto se servir de um mapa, entretanto, ele sabe indubitavelmente qualquer
coisa sobre o rio: e é o rio e não o mapa o objeto de sua pesquisa. Adotar um
concepção adequada dos objetos físicos constitui um sólido ponto de referência,
mesmo se isso não tenha imediatamente consequências práticas. O que não exclui finalmente que pesquisas e
reflexões ulteriores possam fornecer uma representação mais precisa que a
precedente, mais aproximada da realidade.
Aquilo que em Rücker é oposto
entre a teoria atômica, ou seja, a física do mecanismo, por um lado e por outro
é a física fenomenológica. Já em Lenin é uma oposição de tipo puramente
filosófico entre uma física realista,
da qual Rücker é o representante, e uma física simbolista, ou seja,
fenomenista, para utilizar a terminologia de Ward. Lenin escreve: a diferença entre as duas escolas da física contemporânea é somente
filosófica, somente gnosiológica. A diferença fundamental entre as duas escolas
consiste somente no fato que uma admitia a realidade “ultima” (deveria se dizer
a realidade objetiva), refletida por nossa teoria19, enquanto
a outra a nega e considera a teoria somente como uma sistematização de
experiências, um sistema de empíreo-símbolos, etc. 20
Se, portanto Lenin traduz a natura última de Rücker como realidade objetiva, porque não também
copia como reflexo ? 21
A ideia fundamental que nossas ideias refletem os
objetos reais, ponto de ruptura com os partisans
russos, de Mach mas também com a tradição empirista remontando a Berkeley nasce
ela então, em Lenin, da retomada da temática realista, como aquela de Rücker, contra a física fenomenológica e
suas conclusões anti-materialistas?
Atenção: a concepção de mundo e
imagem da ciência do burguês Rücker
não tem certamente nada a ver com o materialismo dialético de Engels, mas provém
de uma forma de realismo mais difundida entre os físicos ingleses
contemporâneos de Maxwell, uma forma de realismo considerada por seus
adversários, como James Ward, como quase
medieval.
O aspecto interessante da
utilização de Rücker por Lenin reside no fato
do mesmo por sua proximidade com Rücker considera a oposição entre
idealismo e materialismo no terreno das teorias científicas de seu tempo,
visando uma solução adaptada à prática seguida pelos cientistas que lhe foram
contemporâneos, sem dever portanto tomar a posição de Rücker a qual o idealista
Ward 22, talvez com um pouco de razão, difama como metafísico.
N o t e s :
1. Berkeley, The Analyst, 50, Qu. 31, London-Dublin,
1734.
2. Lénine, Œuvres complètes, t. 14, p. 285, 286.
3. Arthur W. Rücker, Presidential adress, allocution
présidentielle. The British Association at Glasgow, 1901, in The Scientific
American Sup-72 planent, 1901, e 1 345 et 1 346, p. 21 561, Arthur William
Rucker (18481916), professor de física em Leeds, depois em Londres, se ocupou em
particular de géofísica e de eletromagnetismo.
4. Ibidem.
5. Ibidem.
6. Este exemplo é de Rücker e foi retomado por Lenin, Matérialisme et empiriocriticisme, p.
286.
7. Rücker, op. cit., p. 21 561.
8. Ibidem.
9. Ibidem.
10. Ibidem.
11. Ibidem.
12. Ibidem. Esta citação e as precedentes foram tiradas do
terceiro parágrafo do relatório de Rücker, intitulado La construction d'un modèle de la nature.
13. Segue aqui a distinção introduzida por L. Geymonat, em Scientia, septembre-octobre 1972, p.
753, que ele retoma em Scientia,
janvier-février 1973, p. 7.
14. Rücker, Struggle for the truth.
15. Riicker, op. cit., Esta citação é tirada do quarto
parágrafo do citado relatório (Degrés
successifs dans l'analyse de la matière).
16. Riicker, ibidem, p. 21 561, no início do terceiro
paragrafo.
17. Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 286.
18. Rücker, op. cit., p. 21 561
19. C'est moi qui souligne.
20. Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 290.
21. Em russo (Lenin)
como em inglês (Rücker), existem dois termos distintos para cópia e reflexo; kopiha corresponde a copy e otratenie a reflection, o
termo leninista de reflexo. Como
veremos nos parágrafos 3 e 4, a noção de Lenin difere profundamente em vários
aspectos da de Rücker.
22. James Ward (1843-1925), psicólogo e metafísico inglês,
engajado numa interpretação de mundo no sentido teísta.
OBS. A seguir Partes II, III, e IV.
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