Claude
Méril Schnaidt (* 23. Junho 1931 em Genebra; † 22. Março 2007 em Paris). - Professor de
arquitetura, em Paris e Zurique. Dele ver também, neste blog; Arquitetura,
uma definição; É no saber ensinado
que a sorte real das pedagogias é decidida, e Le droit à la Ville..
Tradução:
Frank Svensson
Na cidade, no campo, entre a cidade e o campo,
nada mais dá.
Não que
não tenha havido um tempo em que tudo ia maravilhosamente bem. A partir do momento em que o capitalismo fez
da cidade e do campo mercadoria como outras quaisquer, quando a ganância por
lucro tornou-se o motor de todas as transformações, irrompeu o desastre atual.
Alguns
dados por alto. Do período 1900-2100. Se
nada de essencial ocorreu no primeiro século, no seguinte dois bilhões de
pessoas foram demovidas de suas terras para se aglomerarem em megalópoles. O
planeta terra conta hoje com 6 bilhões de habitantes. Dentro de mais 50 anos
terá 9 bilhões e meio.
R. Hess Equívoco 1973
Questão
posta: Quantos habitantes poderá alimentar?
A resposta é 18 bilhões segundo a forma de consumo de um lavrador de
Bangla Desh e menos de 700 milhões dos do mundo ocidental. O produtivismo do
meio século mais rico da humanidade que detém ¾ das riquezas mundiais provoca a
extinção de 50 a 300 espécimes vegetais e animais por dia, 11% dos pássaros,
20% dos repteis, 25% dos anfíbios, 25% dos mamíferos e 34% dos peixes
encontram-se ameaçados à escala mundial.
A OMC
prepara um acordo visando eliminar todas as barreiras ao comercio dos produtos
derivados de madeira e todos os obstáculos à exploração das florestas. 3.000
bilhões de dólares. É o que devem render 2010 as culturas transgênicas. Os
gigantes da química e da agroindústria alimentar a fim de dominar o mercado, a
natureza e até mesmo a produção. Modificam grãos gerando plantas estéreis, assenhoreando-se
da vida e reduzindo os lavradores â condição de revogáveis agentes de
produtividade em queda.
Em Nova
Iorque que detém, na lista de cidades norte-americanas por criminalidade,
o 7º
lugar, um homem é assassinado a cada 4 horas, uma mulher é violentada a cada 3
horas, e um atentado é cometido a cada 30 segundos.
Os
alarmes não surtem nenhum efeito sobre a cronometragem de implosões de cidades,
de desertificação dos campos, da privatização total da vida. Cidade
ou barbárie? Seria mais correto caracterizar como Apocalipse já.
Que
dizem os mais inteligentes de entre os que ainda acreditam na cidade? Tomando
forma a cidade reuniu os elementos antes dispersos da vida comunitária, permitiu
a ação coordenada dos mesmos sob forma de ações de amplo interesse coletivo. A concentração
da força material e cultural na cidade resultou uma aceleração do ritmo de
relações e atividades humanas, um acréscimo do rendimento do trabalho e do
volume da produção. A cidade, organizou-se para agregar bens e ideias, para
transmiti-las de geração a geração engrandecendo o herdado. Ela extrai sua
força de atração da quantidade de serviços que não são resultado de todas as
peças quando se quer empreender, na redução do tempo exigido para as atividades
consideradas como trabalho penoso, no estudo de escolha para o trabalho, na
informação, nas distrações, nos contatos humanos. Em cidade não importa quem
possa ter sorte e esperar fazer sua vida como entender. Força motriz do
crescimento econômico, berço do progresso social e de grandes obras, a cidade é
uma invenção tão preciosa e indispensável quanto à língua.
Opinião
longe de ser unanime. Recente enquete
revela que 44% dos franceses gostariam de viver numa pequena comunidade rural,
26% numa cidade interiorana de médio porte, 9% numa cidade grande, 5% em algum
subúrbio de Paris e 4% em Paris. A
enquete não revela quais são as causas da forte proporção de ruralistas. A angustia da livre troca mundializada, do
trabalho robotizado, da desregulamentação, da precariedade, da exclusão, do
medo dos vândalos que começaram a fazer incursões fora de seus redutos sensíveis atuando um pouco por
toda parte. Mais gente do que se imagina tem vaga consciência da tara congênita
da cidade. Platão -- já faz muito tempo -- o evidenciou: Toda cidade vive normalmente em estado de guerra com as demais
afirma ele em Les Lois.
W. Ryff gravura de Vitruvius Teutsch 1548
A guerra
surgiu com as cidades. Não há nenhuma prova que tenha sido praticada antes do
surgimento das mesmas. Não se encontraram armas nos vestígios de aldeamentos
neolíticos. Essas minúsculas comunidades autossustentáveis eram sem dúvida
muito distantes umas das outras, muito arraigadas em seus territórios para
serem tomadas pela febre dos conquistadores. Conheciam os limites fixados pela
garantia de sua subsistência submetendo-se com as demais a agrupamentos
biológicos.
As
comunidades urbanas perderam o senso de equilíbrio. Para satisfazer as
necessidades de uma população crescente e cada vez mais faminta, tiveram que expandir
seu espaço vital. Isso se deu excepcionalmente por cooperativismo, por
desenvolvimento planejado, por intercambio comercial, por aumento de impostos,
expropriações, pilhagem, extermínio de indígenas. Os territórios uma vez
anexados, não sustaram a violência, tanto que as cidades resistiram perder
autonomia ou sofrer subjugação.
Platão
não se equivocou. O emprego da força é a essência da civilização urbana. Por
milênios até hoje, querer dominar, concorrer e conquistar supera a prudência, a
tenacidade, a paciência infinita do mundo aldeão. Felizmente esse mundo ainda
não foi totalmente apagado do mapa. Sem ele estaríamos já no pós-apocalipse. Nâo é impossível que
seja ele o terreno do qual germinará o comunismo social e autogestionhário que
seremos levados a adotar ao invés de nossas cidades à deriva.
Forçada
a se expandir – metade da população mundial hoje se concentra em conglomerados
urbanos – pelo fato das cidades não continuarem propriamente como tais. Quando
nos referimos a cidade imaginamos um
conjunto considerável e compacto de edificações cujos moradores trabalham no
comércio, na indústria ou na administração. Vemos esses agrupamentos no meio de
um território escassamente povoado por agricultores. Atribuímos-lhe uma função
de centro político, econômico, cultural. Representação anacrônica. Ao longo dos
últimos 250 anos, expandiram-se em todos os sentidos, sempre mais distante,
mais rapidamente, até se fundirem umas nas outras. Os cidadãos colonizaram as bordas do mar, edificaram cidades nas montanhas,
embricadas de redes de comunicação distante das quais implantam-se serviços,
fábricas, escritórios. Não se habita mais junto aos locais de trabalho.
Caminhões disponibilizam ligação entre produção e distribuição. As
administrações locais, sedes de sociedades ultrapassam-se além dos perímetros
primitivos. A composição e o funcionamento as redes urbanas são distintas e
distantes do que eram. As multinacionais aí se assentam, produzindo em recantos
distantes de quilômetros e fazendo sua contabilidade do outro lado do mundo. Encerram
e localizam suas atividades quando e onde bem querem – sempre com lucro para os
acionistas, jamais a favor dos trabalhadores. As autoridades locais, nacionais,
não têm nenhum poder sobre suas decisões.
Nenhum
centro – tal como os entendíamos – e nenhuma periferia, pois periferia
pressupõe centro. Generalizando, nenhum lugar,
caos, sepulcro de aprendiz de feiticeiro? Por entre charlatães, ninguém
consegue hoje fazer corresponder à noção de cidade uma realidade aceitável, que
proponha ao mesmo tempo procedimentos diretores e esboce alternativas
urbanísticas.
Para
enfrentar uma situação que está se tornando insustentável, surge o urbanismo, uma disciplina nova que se
vale da matéria da antiga arte urbana.
Duas correntes distintas nutriram a infância do urbanismo: a criação de meios
de intervenção no desenvolvimento da cidade (enquetes, regulamentação,
aparelho administrativo) e as utopias dos reformadores sociais. Esses foram os
primeiros a formalizar uma alternativa à congestão e a expansão urbana: Le village d’harmonie de Owen (1817); Le Phalanstère de Fourier (1822-40); constituem propostas de
urbanismo fora da cidade, contra a cidade, que se concretizarão no familistère de Guise (1859-70). Só se concretizará
tardiamente no familistère de Guise
(1859-70), as moradias coletivas soviéticas e nas unidades de habitação de Le
Corbusier (1947-57). Depois vieram as grandes obras realizadas por Haussmann em
Paris durante o reinado de Napoleão III. Urbanismo na cidade permitindo grandes
negócios e as estradas de ferro.
G. Metzendorf Cité Jardin de Margarthehöhe. Essen, 1912-16.
Ao fim do século XIX até os anos 30 do século
XX surgiram as cidades-jardim.
Baseadas na hipótese que se pode combinar vantagens da cidade com as do campo
suprimindo assim seus inconvenientes e dando prosseguimento à corrente iniciada
pelos utopistas. Foram implantadas ao largo da cidade da qual não se preocupam
seus protagonistas que inovam, alhures, buscando resposta à questão do
crescimento futuro. As cidades-jardim
deveriam formar uma rede sobre o território destinadas a substituir
progressivamente as aglomerações recebidas em herança.1
Em meados dos anos vinte aparecem as soluções
da Nouvelle Architecture. Esse
movimento, pensando nos mal alojados,
quis construir em massa, a baixo custo, com apoio de municipalidades
progressistas, cooperativas, bancos populares e da grande indústria. Seu urbanismo racionalizando a ocupação do
solo é hostil à cidade existente, não se preocupando com a supressão de grandes
concentrações. As melhores realizações no período pré-guerra são alemãs, holandesas
e suíças, e britânicas (new towns) e escandinavas no pós-guerra.
Cité Rommerstadt, Frankfurt/M.
Caricaturas suas são os grandes conjuntos que
brotaram por toda parte entre 1950 e 1970. Reagindo às intervenções cirúrgicas
nos bairros históricos desenvolveu-se depois de trinta anos uma corrente de
conservação e restauro freando a onda de destruições, mas contribuindo
fortemente para aquisição das velhas casas pelos ricos. Tal movimento é dos
mais ambíguos. Para uns trata-se de se opor à degradação do modo de vida urbana
e de preservar uma imagem da cidade considerada como um valor inestimável de
meio ambiente. Para outros visa principalmente manter moradias cuja existência
é ameaçada e impedir que se prossiga com o desmantelamento da estrutura social
dos bairros. Para o capital trata-se de uma nova fonte de lucro, pois os velhos
apartamentos reabilitados se vendem se alugam mais caro que os apartamentos
novos fora do centro. Por outro lado, a ofensiva contra a habitação de
interesse social, suas versões e limites, seguidas de remendo dos subúrbios
(como para dotá-los de alma) permite uma redistribuição muito lucrativa das
populações no espaço urbano. Trata-se como com Haussmann, de um urbanismo na
cidade, mas em outra escala.
E os
marxistas nisso tudo?
Não são unânimes quanto ao tema cidade. Para uns a
cidade teria um belo futuro justamente no comunismo porque seria a mais
econômica, a mais estimulante, a mais cultural das maneiras de viver
coletivamente. Para alguns a cidade caminha para seu desaparecimento. Outros se
situam com distintas nuances entre os dois extremos. Os marxistas não defendem
um projeto urbano comum? Na prática não fariam quase a mesma coisa que os
socialistas e os burgueses? 2
Retornar às fontes permite-nos ver com maior
clareza. Ao longo do século XIX foram se definindo pouco a pouco três posições
políticas fundamentais:
1. Mudar a cidade
para melhorar a sociedade.
2. Mudar a cidade
para conservar e consolidar as relações sociais existentes.
3. Mudar a
sociedade para resolver os problemas da cidade.
Nos
anos vinte do século XX aparece na União Soviética uma quarta posição?
4. Mudar a cidade
para acelerar e permitir a transformação da sociedade.
A primeira dessas posições é a dos
reformadores sociais utopistas. Robert Owen, por exemplo, a expressa em 1817 da
maneira seguinte: Para transformar radicalmente a condição e o comportamento
dos desfavorecidos temos que retirá-los do meio onde sofrem atualmente nefasta
influencia, localizando-os em condições em conformidade com a constituição
natural do homem que não deixarão de melhorar sua sorte, o que responde aos
interesses de todas classes.3
A segunda posição é a dos burgueses. Jules Siegfried, deputado-prefeito
de Havre, a expõe sem ambiguidade: A
influencia da cidade operária sobre a moralidade, e consequentemente sobre a
miséria, é considerável. Não se vê como a esperança de se tornar proprietário
torne o homem mais trabalhador, mais econômico, mais ordenado, e como sua vida
torna-se mais ativa e mais interessante? ... Queremos obter pessoas felizes e
verdadeiros conservadores? Queremos combater ao mesmo tempo a miséria e os
equívocos socialistas? Queremos aumentar
as garantias de ordem, de moralidade, de moderação política e social? Criemos cidades operárias.4
A terceira posição é a de Marx, Engels e
Morris. Engels é formal: Para por fim à
crise habitacional só eliminando pura e simplesmente a exploração e a opressão
à classe trabalhadora pelas classes dominantes ... A crise habitacional para os
trabalhadores e uma parte da pequena burguesia nas grandes cidades modernas é
um dos inúmeros males de importância menor (sublinhado por Engels) e secundaria que resultam do atual modo de
produção (sublinhado por Engels) ...
Não é a solução da questão da habitação que resolve de um mesmo golpe a questão
social, mas bem a solução da questão social, ou seja, a abolição do modo de
produção capitalista, que tornará possível a questão habitacional.5
Como nos reformadores sociais utópicos da primeira metade do século XIX,
a crítica da cidade em Marx e Engels é parte da crítica da sociedade
capitalista. As taras da cidade são consequência das taras da sociedade. Ao
contrário dos utopistas, Marx e Engels não associam a cidade capitalista a um caos
e não propõem um modelo para a cidade futura. A cidade é um lugar da História.
Ela só é desordenada na aparência. Sua ordem é a da sociedade que a criou e
utiliza. Marx e Engels não opõem a essa ordem a imagem abstrata de uma nova
ordem. A forma da cidade futura será produto da marcha rumo a sociedade sem
classes. Especular quanto a como a
sociedade futura regulará a repartição de alimentos e de moradias é diretamente
utópico. Além disso, podemos, por força do conhecimento que temos das condições
fundamentais de todos os modos de produção já havidos, estabelecer que após a
queda da produção capitalista, certas formas de apropriação na sociedade atual
tornar-se-ão impossíveis. As medidas de transição deverão elas mesmas, portanto, se adaptar às
condições que existirão naquele momento.6
Na questão da habitação,
Engels se pronuncia por soluções provisórias que serão depois aplicadas pela
União Soviética: O que é certo é que em
grandes cidades já há suficientes imóveis de uso habitacional para remediar sem
demora, por seu emprego racional, a toda verdadeira crise habitacional. Isso
naturalmente não poderá ocorrer sem recurso de desapropriação de atuais
proprietários, para ocupação de seus imóveis por desabrigados ou hoje
amontoados em seus abrigos; desde que o proletariado tenha conquistado o poder
político, medida exigida para que o bem publico seja fácil de ser realizado, ao
contrário do que são hoje desapropriações e requisição de moradias pelo Estado.7
Os fundadores do marxismo não foram simplesmente pragmáticos no assunto?
Não. A posição deles decorreu da
noção fundamental emprestada a Flora Tristan: ... a emancipação dos
trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. O mundo que construirão
não será pela realização de um plano que lhes tenha sido dado ou imposto. A
perspectiva da ação transformadora coletiva substitui os projetos detalhados e
indicativos dos socialistas utópicos. O porvir é aberto, indeterminado, inacabado.
Sua configuração surgirá progressivamente, à medida que se desenvolverão as
lutas. Não obstante, será completamente falso concluir que Marx e Engels não
tiveram projeto para a cidade e o campo. Tinham um, certamente não formalizado,
mas ao invés mais radical. Esse projeto é mesmo tão desestabilizante que
marxistas considerando a realidade têm preferido ignorar ou apagá-lo da
memória.
Antes de tudo, Marx e Engels integraram à sua obra uma vasta corrente de
pensamento sobre a organização da vida da cidade ideal. Platão, More,
Campanella, Saint-Simon, Owen, Fourier, Cabet, são subjacentes ao marxismo.
Suas ideias quanto a democracia, a harmonia da indústria e da agricultura na
comunidade, a reconciliação da cidade e da natureza, a reunificação do trabalho
intelectual e do trabalho manual, a socialização dos serviços de primeira
necessidade e da educação, a ligação entre escola e produção, o horizonte do homem total, constituem
premissas de um projeto urbano.
Engels diz, por exemplo: A
sociedade organizada sobre a base comunista dará a seus membros a ocasião de
ocupar em todos os sentidos suas faculdades desenvoltas duma maneira adequada.
Resulta que toda diferença entre as classes desaparecerá igualmente. De tal
sorte que a sociedade comunista, duma parte, é incompatível com a existência
das classes, e, da outra parte, fornece ela mesma os meios de supressão dessas
diferenças de classes. O antagonismo entre a cidade e o campo desaparecerá
igualmente. O exercício da agricultura e
da indústria pelos mesmos homens, ao invés de ser feito por classes distintas,
é já, por razões inteiramente materiais, uma condição necessária da organização
comunista.
A dispersão da população rural no campo, ao
lado da concentração da população industrial nas cidades, é um fenômeno que
corresponde a uma etapa de desenvolvimento inferior da agricultura e da
indústria, um obstáculo ao progresso, que se faz sentir desde agora. A
associação geral de todos os membros da sociedade tendo em vista a utilização
coletiva e racional das forças produtivas, a extensão da produção em proporções
tais que possa satisfazer as necessidade de todos, a supressão do sistema de
organização social no qual as necessidades de uns não são satisfeitas a não ser
à custa de outros, a supressão completa das classes e de seus antagonismos, e o
desenvolvimento completo das capacidades de todos os membros da sociedade por
meio da supressão da divisão do trabalho, tal como, pelo menos, é realizado até
o presente, por meio da educação baseado no trabalho, da mudança de atividades,
da participação de todos nas diversões criadas por todos, da fusão entre a
cidade e o campo, tais serão as principais consequências da supressão da
propriedade privada.8
Na Questão da habitação Engels
escreve: querer resolver a questão da
habitação insistindo no modelo de grandes cidades modernas, é um absurdo. Essas grandes cidades modernas não serão
suprimidas a não ser pela abolição do modo de produção capitalista e quando
esse processo se der, tratar-se-á de algo totalmente distinto do de
proporcionar a cada trabalhador um casinha própria.9
É claro, límpido. As grandes cidades estão destinadas a desaparecer e
elas não serão substituídas por novas aldeias. Em Princípios do comunismo, Engels dá por tarefa aos comunistas a
construção de grandes palácios sob domínio nacional para servir de habitação
das comunidades de cidadãos ocupados na indústria e agricultura, unindo as
vantagens da vida citadina com às da vida no campo, sem sofrer seus respectivos
inconvenientes.10
Reconhecendo o papel civilizatório da cidade e sua importância na luta
libertária dos trabalhadores, Marx e Engels não perdem de vista o caráter
desumano da cidade e suas consequências fatais sobre as leis naturais da vida.
Em Ideologia Alemã (1846)
escreveriam: A oposição entre a cidade e
o campo só pode existir por força da propriedade privada. Ela é a expressão a
mais flagrante da subordinação do indivíduo à divisão do trabalho, de sua
subordinação a uma atividade determinada que lhe é imposta. Essa subordinação
faz dele um animal das cidades e de outro um animal do campo, tão oprimido um
quanto o outro, fazendo surgir diariamente novas imposições de interesses de
ambas as partes. O trabalho ainda é a coisa principal, o poder sobre os
indivíduos, e, por longo tempo esse poder existirá, terá também uma propriedade
privada. A abolição dessa oposição entre a cidade e o campo é uma das primeiras
condições de comunidade, e essa condição depende por sua vez de inúmera
condições materiais anteriores que a simples vontade não é capaz de realizar,
como todo mundo pode constatar de imediato.11
Em Anti-Düring, Engels observa: A separação da cidade do campo condena a
população rural a milênios de atraso e os cidadãos a limitação de cada um à sua
profissão individual. Ela anula as bases do desenvolvimento intelectual de uns
e do desenvolvimento físico dos outros.12
Engels
prossegue: A supressão da cidade e do
campo não é, portanto, somente possível. Tornou-se uma necessidade direta da
produção industrial ela mesma, como se tornou igualmente uma necessidade da
produção agrícola e por isso do mercado e da higiene pública. Somente pela
fusão da cidade com o campo é possível eliminar a atual poluição do ar, da água
e do solo; ela só pode amenizar os dispersoides do ar que hoje envolve as
cidades, ao ponto de dejetos servirem à produção de plantas, ao invés de
produzir doenças ... A supressão da separação da cidade e do campo não
constitui, portanto, uma utopia, mesmo tendo por condição a repartição a mais
igual possível da grande indústria através de todo o país. Certo, a civilização
nos deixou as grandes cidades por herança que exigirá muito tempo para
eliminar. Mas têm que ser eliminadas e o serão mesmo se tratando de um processo
de longa duração. 13
Para
Lenin, o acesso aos tesouros culturais das cidades não se administram pela
concentração urbana, mas por uma revolução dos transportes e das comunicações. Ele
escreve em A questão agrária e as
críticas de Marx (1906): O
reconhecimento do aspecto progressista da grande cidade não nos impede de
incorporar a nosso ideal e nosso programa de ação a eliminação da oposição
entre cidade e campo.14
Em Socialismo, seu surgimento e morte (1893)
William Morris e E. Belfort Bax falam do principio que, numa sociedade
comunista, não há mais necessidade de grandes capitais, que são essencialmente
a sede de um governo centralizado, de operações financeiras gerais e,
incidentemente e por consequência, de um movimento intelectual. Para o futuro,
três hipóteses são possíveis: A primeira
deixará subsistir as grandes cidades, mas limitará a população num espaço dado;
esse exigirá ... a presença de jardins emoldurando e separando as casas. A segunda hipótese será de abolir as cidades e
substituí-las por conjuntos habitacionais concebidos sobre planos dos colegas
de nossas antigas universidades inglesas. Quanto as suas dimensões, seriam determina-das
em cada caso segundo as comodidades, mas a tendência seria de fazê-lo
suficientemente grandes para que se tornassem quase como que pequenas cidades.
Terceira hipótese: Um centro comunitário, que será como uma pequena cidade com
grandes casas, entre as quais haverá diversos edifícios públicos, o conjunto
sendo provavelmente agrupado em torno de um espaço livre. Depois um cinturão de
casas cada vez mais espaçadas, até atingir finalmente a plena campanha, onde as
habitações, nas quais se encontrarão colegas dos quais falamos, serão
esporádicas.15
Morris
acrescenta que se possa haver outras hipóteses constituindo combinações dos
três sistemas precedentes. É assim que ele considera em les Nouvelles de nulle part (1891), romance no qual descreve a
Inglaterra comunista do 22º século como um imenso jardim. Os habitantes dessa
Inglaterra inteiramente inseridos na paisagem teriam seu modo de vida
totalmente transformado. Hoje, constata Morris, o operário de fabrica, o cidadão, é um animal distinto do camponês.
Essa redução à animalidade, que limita ambos e que resulta na sua separação,
deve desaparecer. Pode-se conceber que um
dia será possível tornar a cidade uma parte do campo e o campo uma parte da
cidade.16
Difícil
ser mais explícito. Há bem uma alternativa comunista ao desastre dos estabelecimentos
humanos. Ela tem uma dimensão urbanística evidente, mas vai muito além. A deterioração
da oposição cidade/campo é indissociável do marxismo. Não se trata de um
objetivo banal da vida prática, mas da realização espacial da relação com o
mundo do homem comunista (Lothar Kühne).17
E assim,
condicionado pelo horror das cidades e dos campos no presente século e se
deixando tomar pelo demônio da antecipação, os fundadores do marxismo se
equivocaram? Ou não é mais atual? E se os construtivistas soviéticos foram
inoportunos? Não é a minha opinião. Mas
para os que consideram essas eventualidades eu tenho algumas questões em
reserva:
Terá
sido a complexidade e o custo de realização dos pais fundadores que os fez
desistir e que explicaria o pouco entusiasmo suscitado? Será o automóvel, o
sanitarismo, a modernização da agricultura e o Club Med que o haveria
desatualizado? Se nós não nos preocuparmos da expansão das cidades e da
desertificação dos campos, se tudo é posto em causa, as convicções de Marx e
Engels inclusive, qual projeto a defender? Ou devemos, como nos sugerem insistentemente,
abandonar definitivamente a ideia de um projeto em favor de procedimentos (a
inventar) que, ao mesmo tempo toleraria, resultaria e combateria a desordem?
Mas se renunciamos a projetar os germes do futuro, por que milagre saltarão do
presente?
N o t e s :
Este texto
reúne a totalidade ou partes de conferencias feitas e de artigos publicados sob
o título: Les marxistes ont-ils un projet
urbain? No Instituto de pesquisas marxistas em Paris em 1988, publicados
sob mesmo título em:
Société française,
Paris (1988) 29, pp. 59-63;
Haben die Marxisten ein Stadtporlekt? Em Humboldt
Universität de Berlim, 1988;
Kämpfe um die Stadt: Zur
marcistisschen Stadtvision au Bildungsausschuss de Partei der Arbeit,
Zurique, 31/05/1990;
Em
versão reduzida sob mesmo título em Vowarts.
Basiléia, 14/06/1990, D. 5 ;
Le projet urbain des fundateurs du marxisme et
la leçon de l’URSS à la Havanne em
1992, publicado sob mesmo título em Claude Schnaidt: Ce n’est pas fini/No se acabó
École d'architecture Paris-Villemin/lnstituto superior politécnico José
Antonio Echeverria 1999, pp. 29-41;
Kritik
und perspektive der Stadt – Fragen über der Schwierigkeit for den ainen zur
anderen fortzuschreiten Raum und Stadtnutzung. Vienne, 23/01/1993;
Rien ne
va plus à la
huitième université d'été de la Ligue communiste révolutionnaire à
Prapoutel-les-Sept-Laux le 27 août 1999.
1. Ce sont des cas isolés et très édulcorés par rapport
au Village d'harmonie et au Phalanstère qui étaient conçus en tant
qu'unités de production agricole et industrielle, autarciques pour
l'alimentation et les services, et dont les membres associés devaient
travailler à la fois aux champs et à l'atelier.
2. Le jour où on fera un inventaire consciencieux de
l'urbanisme des démocraties populaires, on s'apercevra que cette insinuation
n'est que très partiellement fondée.
3. Choay, Françoise L'urbanisme
-- Utopies et réalités. Paris, Seuil 1965, pp. 92-93.
4. Revue de
l'habitat social, Paris (1978) 30, p. 36.
5. Engels, Friedrich ; La question du logement. Paris, Éditions sociales 1957, pp.
21-22,57.
6. Op. cit. 5, p. 108.
7. Op. cit. 5, p. 37.
8. Engels, Friedrich; Principes
du communisme. Paris, 192(l), p. 28.
9. Op. cit. 5, 12 57.
10. Op. Cit. 8, p. 25.
11. Marx, Karl & Engels, Friedrich: L'idéologie allemande. Paris, Éditions
sociales 1977, pp. 93-94.
12. Engels, Friedrich: Anti-Dühring, Paris, Éditions sociales 1963, p. 331.
13. Op. Cit. 12, pp. 335-336.
14. Lénine,
Vladimir lllitchr Werke. T. 5. Berlin, 1958, p.194.
15. Meier, Paul : La
pensée utopique de William Morris. Paris, Éditions sociales 1972, pp.
604-605.
16. Op. cit. 15, p. 611.
17. Kühne, Lothar : Haus
und Landschaft. Dresden, VEB Verlag der Kunst 1985, p. 30.
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