Giulio Giorello (Milão, 1945 -- ),
Filosofo marxista, matemático, titular da cátedra de Filosofia da
Ciência na Universidade de Milão. Colabora com o jornal Corriere dela Sera.
Tradução: Frank Svensson
IV Dialética e
materialismo
Admitindo com Althusser, que a categoria de matéria no sentido
filosófico não pode mudar, é absoluta,
somos levados espontaneamente a se perguntar se ela tem ou não uma relação com
as concepções de matéria dada pelas diferentes teorias científicas. Ou seja,
podemos nos perguntar, esquematizando, ser só um acaso se o mesmo termo designa
duas noções tão diferentes. Um aspecto está claro: uma vez adquirida a
distinção da qual falamos no parágrafo III
– 4, a assimilação sumária da noção física no conteúdo científico, do
conceito de matéria se revela ser artifício cômodo para poder atribuir a uma as
características – e limites – da outra e abrir o caminho para a dissolução do
materialismo integral de Marx e de Engels.
Isto posto, um materialismo que
se propõe hoje como concepção racional do mundo, da natureza, e da história,
evidencia a necessidade imperiosa de relacionar suas próprias teses sobre objetividade da ciência com o
desenvolvimento concreto das ciências. Deste ponto de vista, a interpretação de
Althusser e de outrem do reflexo e do
processo como teses para uma prática nova em filosofia parece eludir o problema.
Faz justamente abstração, em última analise, do materialismo integral
compreendido como uma concepção do mundo.
Objetar-se-á contra isso, a
antiga acusação de uma construção filosófica imposta às ciências não ser
válida; e uma vez feita a distinção de que falamos no parágrafo III – 4., não
devemos aceitar, uma vez por todas, o caráter intrínseco do materialismo
filosófico a toda concepção científica da matéria? Enfim, as referências de
Lenin quanto à dialética, apresentadas em Materialismo
e empiriocriticismo, mas mais ainda, como afirmou, em seus Cadernos, não indicam ao sistema
hegeliano acusado por Helmholtz de impor à
priori suas próprias deduções às
diferentes ciências?
Podemos lembrar que não é a única
interpretação de certos aspectos do pensamento hegeliano. Observamos ainda a
pouco que Hegel não é somente um
irredutível apriorista, ele que buscava deduzir de relações entre conceitos
abstratos as particularidades as mais insignificantes da natureza e da
história.55
A este propósito, por exemplo, J.
N. Findlay observou que Hegel confiava certamente numa Ciência Sistemática
(Wissentchaft) na qual todos os conceitos aí contidos, incluindo os aplicados
na ciência e na história, podem ser reunidos num encadeamento contínuo, no qual
cada um encontra seu lugar único e necessário. As regras dessa Ciência Sistemática estão bem longe de
serem dedutivas no sentido em que são as regras de um silogismo ou de um
cálculo matemático. Trata-se mais de regras, que nos levam a passar de noções
nas quais um certo princípio é latente de outros ou o mesmo princípio se
manifestará: não se deslocam como
princípios dedutivos, a um nível único do discurso mas progridem de um nível a
outro sucessivamente.56
Nessa
perspectiva, o intuito filosófico de Hegel não
é de completar a obra da história e /ou da ciência, nem de lhe acrescentar
novos resultados, mas de lhe atribuir um
lugar na cadeia contínua de noções e de fases de ser através dos quais Hegel
concebeu o mundo.57
Aqui o materialismo dialético falará francamente de concepção do mundo: se uma
lição pode ser tirada dos exemplos importantes de caraterística científica em Materialismo e empiriocriticismo, pelas quais Lenin refuta a tese
ilusória de uma crise da ciência, é
que nossas ideias de tempo, de matéria, de infinito, de ser, etc., estão todas,
segundo um Findlay, em equilíbrio
instável, de tal sorte que o menor
toque que lhe seja dado por exemplos inabituais serão suficientes de lhes por
em movimento. Com franqueza, Findlay
reconhece que frequentemente estamos inclinados mais a ignorar do que favorecer
este movimento das noções.58
Mais diretamente, a partir da
reflexão sobre a dialética hegeliana Lenin chega ao cerne da questão,
particularmente em “A propósito da dialética”, onde ele insiste sobre a
universalidade da contradição: a constatação ou a descoberta de tendências
contraditórias em todos os fenômenos e processos da natureza (inclusive os do espírito e da sociedade) é a condição
do conhecimento: das ciências as mais abstratas das ciências sociais (das quais
Lenin dá o exemplo da luta de classes 59).
A analise deve começar do mais simples, do habitual, do mais divulgado [...]\ encontramos já ai a dialética. Assim
começa a analise de Marx no Capital. Se
a analise consegue descobrir num fenômeno extremamente simples o cerne de todas as contradições,
esclarece como em cada célula, os
embriões de todos os elementos da dialética, mostrando assim que a mesma é
inerente a todo conhecimento humano.60
A constatação da universalidade
da contradição não significa certamente a anulação da especificidade de cada
ciência e não autoriza evidentemente transferir os encadeamentos específicos de um dado sistema teórico a outro.
A contradição (assim como a
dialética) é um escândalo para os
burgueses, que atribuem o primeiro lugar ao pensamento metafísico. O
materialismo já foi metafísico na Europa quando do nascimento da burguesia.
Como tal considerava as coisas como se estivessem isoladas, em estado de
repouso; as considerava de modo unilateral. Por outro lado, a dialética não
realiza todas as suas possibilidades senão no materialismo: o aprofundamento e
a flexibilidade têm um significado que ultrapassa o relativismo como afirmamos
no parágrafo III, justamente porque as abstrações como matéria, lei natural, volume etc., resumindo, todas as
abstrações científicas: justas, sérias, não arbitrárias, refletem a natureza de
um maneira mais profunda, mais verdadeira, mais completa.61
O sentido exato, finalmente, do
materialismo dialético, encontramos na maneira de Lenin considerar uma passagem
de James Ward. Critica sua maneira de pensar naturalista. Lenin não pretende
demonstrar que o idealismo é falso, não procura tampouco elementos que à priori permitam decidir entre
idealismo e materialismo. Na passagem em questão, Ward, criticando o relatório
de Rücker, admite modestamente que, enquanto a teoria atômica pode ser
confundida com o materialismo, nenhum
risco de confusão entre as ciências da natureza e a filosofia idealista (ou
espiritual) desde que esta filosofia implica necessariamente a crítica das
premissas gnosiológicas imposta inconscientemente pela ciência. Em verdade,
comenta Lenin: As ciências da natureza admitem inconscientemente que sua doutrina
reflete a realidade objetiva e que essa filosofia é a única compatível com as
ciências da natureza.62 O idealismo filosófico, mesmo o idealismo
objetivo de Hegel, dirá mais tarde Lenin nos Cadernos, tem, naturalmente raízes
gnosiológicas, não é sem fundamento, mas é uma flor estéril.63
A filosofia tem um caráter revolucionário e os partidários
em luta são o materialismo e o idealismo. Tomar partido pelo materialismo
significa verdadeiramente partir da constatação que o materialismo permite a
compreensão teórica da atividade e do desenvolvimento da ciência, não fez outra
coisa que fornecer pontos de referencia durante as pretendidas crises da ciência.
Estimamos enfim que se o
materialismo dialético se opõe, com Lenin, ao fenomenismo de Mach, ou sucessivamente
se opõe às outras tendências fenomenista e néo-fenomenistas, é precisamente
porque ele nota, de um lado, justas exigências que mesmo de tal ponto de vista
provocam equilíbrio frequentemente com rara eficiência, mas realizam, ao mesmo
tempo, que essas tendências – com as quais pode ter pontos objetivos de
convergência, no que concerne a crítica de posições mais atrasadas 64 levadas a extremas
consequências, arriscando desarmar a ciência face ao idealismo.
O materialismo dialético não
pretende mostrar a impossibilidade de um idealismo coerente, e ainda menos,
distinguir entre as teorias científicas dadas, aquilo que é materialismo e
aquilo que não o é. Enfim não pretende mesmo existir uma espécie de experiência
crucial em filosofia que poderia nos dirigir de maneira determinante para o
materialismo e contra o idealismo. Isso seria característico de um materialismo
metafísico ou mesmo uma caricatura do parti
pris em filosofia, útil a quem queira taxar de dogmatismo o materialismo
dialético. É somente uma caricatura, e uma caricatura mal feita. O materialismo
dialético não tem essas profundas aspirações que os marxistas à la Bogdanov de ontem e de hoje lhe atribuem.
Aquele que hoje estima que as noções leninistas do reflexo e do aprofundamento
podem fornecer úteis indicações para a compreensão do sentido e do progresso
das teorias científicas (no sentido mais amplo do termo, socialismo científico
inclusive) não deve se sentir muito descontente: o julgamento contido na frase
de Lenin quanto a Ward, citada acima, é suficiente.
Extraído de um artigo publicado
no volume coletivo, Attualità del
materialismo dialettico, p. 24 à 53, Editori Riuniti, Rome 1974.
Traduzido
do italiano por FRANÇOISE PERSIAUX.
Versão do francês por FRANK SVENSSON.
N o t e s :
51. Ibidem, p. 172.
52. L. Althusser, Lénine et la
philosophie, Maspéro, 1969, p. 35.
53. Ibidem, p. 36.
54. Cf., por exemplo, L. Althusser, obra. cit., p. 34 e seguintes.
Em particular : « Esta é a tese
conhecida de Engels: o materialismo muda de forma com cada grande descoberta
científica; tese que Lenin defende mostrando diferente e melhor que Engels, o qual
fascinado pelas consequências filosóficas das descobertas das ciências da
natureza (a célula, a evolução, o princípio de Carnot, etc.), que a descoberta
decisiva que provoca a mudança obrigatória da filosofia materialista, não
provem tanto das ciências da natureza como da ciência da história, do
materialismo histórico (p.40).
Não podemos deixar de nos surpreender com o caráter
unilateral deste julgamento, quando se considera que:
1) A pesquisa num setor científico dado, parte de certos
problemas: retirando o cerne, avaliando a importância, observando os instrumentos
aptos a lhes tratar no contexto dos resultados já adquiridos. As teorias se
estruturam em sistemas muito articulados, em programas de pesquisa, nos quais a
sucessão de certas conquistas teóricas adquirem um sentido para a comparação
com os problemas dos quais se partiu, por sua avaliação inicial, assim como
pelo controle rigoroso no contexto destas mesmas teorias (Assim tem sido para
toa as grandes descobertas que fascinaram Engels).
2) Do momento que ele á assinalado, um programa de pesquisa,
bem maior e mais articulado que uma simples teoria ou que um resultado
fragmentário, ainda não é uma concepção de mundo.
3) Mantendo salva a especificidade de cada área de pesquisa,
ressente-se, especialmente face a denegrimentos neorromânticos, que parecem
periodicamente surgir ao mesmo tempo que os grandes progressos da ciência, a necessidade de dominar a
fragmentação das distintas pesquisas, de não cair na especialização como em fim
em si. Em mostrando uma concepção do
mundo que busca encontrar uma unidade entre os setores não ligados
aparentemente da pesquisa científica, Engels tentou dar um conteúdo à tese de objetividade da ciência,
mostrando em suas ligações precisamente como é possível captar o sentido de um
problema científico em fornecendo toda uma série de esclarecimentos
correspondentes ao estado das ciências de seu tempo. O Lenin de Althusser, não fornece sobre estas questões nenhuma
indicação, o que parece bem estranho vistas as numerosas passagens que somente
uma pequena parte foi aqui citada, onde Lenin intervém justamente a propósito
dos problemas evocados acima.
55. J. N. Findlay, Hegel
aujourd'hui, cité dans l'édition italienne Milano, Ili, 1972, p. 11.
56. Ibidem.
57, Ibidem.
58. Ibidem, p. 18 : « rolling ».
59. Lenin, Obras completas, t. 38, p. 344.
60. Ibidem, p. 346.
61. Ibidem.
62. Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 288-289.
63. Lénine, Cahiers philosophiques, p. 347.
64. Sobre este ponto de um extremo interesse aparece a
possibilidade de convergência entre o materialismo dialético e o neo-empirismo
sublinhado por Philipp Frank em A ciência
moderna e sua filosofia. O autor foi, aliás, muito criticado por Lenin em Materialismo e empiriocriticismo por seu
texto “Lei causal e experiência”,
publicado nos Anais de Filosofia
da Natureza 1907, vol. VI (cf. Materialismo e empiriocriticismo, p. 170)
Para Frank, a crítica leninista, e em geral a que se fundamenta no materialismo
dialético, em relação ao empirismo, deve-se essencialmente, a uma incompreensão
de termos. No nosso entender, o materialismo dialético vai mais longe sobre
esta questão: ele reconhece nó somente as aquisições científicas vindas de
programas de tipo neoempiristas, mas também certos objetivos comuns de crítica e
de pontos comuns em lutas culturais nas quais as duas tendências se engajaram;
ao mesmo tempo, no entanto, evidenciou os pontos de divergência fundamentais,
que justificam, do ponto de vista do materialismo dialético, as críticas
dirigidas às tendências neo-fenomenistas. Em todo caso, é incontestável a
significação de tal oposição, como teve, de seu tempo a oposição feita por
Lenin entre o materialismo integral e
o fenomenismo de Mach. Parece-nos importante relembrar este ultimo ponto de
oposição com as teses que não veem na polêmica Leninista mais que um
compromisso com o materialismo burguês de estilo século XVIII, senão uma versão russa deste, teses desenvolvidas
largamente em A. Pannekock em seu livro: Lenin como Filósofo, que conheceu um
sucesso extraordinário entre os teóricos das linhas expontaneístas as mais
variadas.
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