Além de militante comunista Délio Mendes milita como
professor jamais perdendo nesta militância a prática e a visão humanista. Alimenta
a esperança cotidiana de que o mundo poderá ser muito melhor, e coloca nesta
esperança utópica a força de seu pensar e a ternura da sua escrita.
Para o mundo intelectual
brasileiro entrou em encantamento um dos seus principais pensadores. E se
encantou em plena produção, no seu momento mais fértil. Produzia uma crítica à
globalização considerando que a mesma tem sido levada a efeito do ponto de vista
do capital financeiro. Propunha uma outra globalização. Intelectual estudioso
do espaço e do tempo compreendeu, em seu tempo, o espaço como produção do homem
em relação com a totalidade da natureza e a intermediação da técnica. Técnica
que corresponde a um tempo determinado pela produção dos homens. Homem do seu
tempo, Milton Santos se fez presente em todos os grandes embates intelectuais
da última metade do século passado. O seu tempo e o seu espaço foram o tempo e
o espaço da globalização. Que ele queria que fosse outra. Ou melhor, a outra, a
globalização de todos os excluídos, resgatados em uma sinfonia de humanização.
Milton se fez maestro da paz e da felicidade. Felicidade de todos. Buscou uma
globalização que unisse todas as mulheres e todos os homens, sob a égide do
encontro.
Conheci Milton, no Recife, em
1978, quando estava às voltas com a Pobreza urbana. Inovava ao compreender o
mundo formal e informal, como duas faces de um circuito comandado desde a
acumulação ampliada do capital.2 Inovava e agitava. Milton era, sobretudo, um
agitador. Agitador de ideias, no melhor sentido de um intelectual da sua
estatura. Avesso aos partidarismos, falava da isenção do intelectual para
exercitar a crítica. Por isso, sempre esteve radicalmente ao lado do seu povo.
Em Pobreza urbana se faz crítico de
um debate sobre a desigualdade que se presta, mais e muito mais, à louvação
mesquinha de intelectuais vazios entre si, do que a colocação correta e crítica
dos grandes problemas da exclusão.
Indubitavelmente, o tom de certos trabalhos, nos quais o jogo conhecido
das referências recíprocas entre autores frequentemente substitui uma análise
dos fatos, tem contribuído para a perpetuação do debate, que, embora, pretenda
atacar o problema em profundidade, perde-se numa guerrilha semântica confusa.3
Esta crítica direta acompanha uma
análise da produção intelectual da pobreza que, segundo Milton, pouco tinha contribuído
para a resolução dos problemas da pobreza. Para este jogo de vaidades não se
contava com a sua participação.
A história do homem, compreendida
como a história da superação, fez o autor de Pobreza urbana, um profeta da evolução.
A história do homem sobre a terra é a história de uma ruptura progressiva
entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando, praticamente ao
mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e inicia a mecanização do
Planeta, armando-se de novos instrumentos para poder dominá-lo. A natureza
artificializada marca uma grande mudança na história da natureza humana. Hoje,
com a tecnociência, alcançamos o estágio supremo dessa evolução.4
A visão da técnica, do espaço e
do tempo, assume, nesta compreensão, um caráter inovador, na medida em que
passa a apreender a dimensão da história de temporalidades técnicas que permite
produzir uma sociedade determinada, empregando, de acordo com a técnica
predominante, certa quantidade de trabalho humano. Milton abre o conceito território, mostrando-o como o lugar do
drama social.
Bom, há nessa desordem a oportunidade intelectual de
nos deixar ver como o território revela o drama da nação, porque ele é, eu
creio, muito mais visível através do território do que por intermédio de
qualquer outra instância da sociedade. A minha impressão é que o território
revela as contradições mais fortemente.5
Da relação técnica, espaço, tempo
revela-se a história, ou melhor, uma outra história, no palco iluminado
expresso no território. Esta outra história aponta para as desigualdades. Faz
emergir a exclusão da maioria da população concentrada em um território
degradado, onde os pobres de todas as naturezas lutam contra todos os
carecimentos.
Milton se mostra mais crítico no
livro recente, Por uma outra globalização — do pensamento único à consciência
universal.6 onde nos aponte para um mundo de
difícil percepção por conta da confusão reinante que nos tem levado à
perplexidade. Portanto, toma para análise a realidade relacional do ser humano,
e a esta realidade relacional perversa atribui os males revelados pelo
território. Não aceita explicações mecanicistas pelo seu caráter insuficiente.
Atribuindo ao desenrolar da história, capitaneada por determinados segmentos da
sociedade, os males que tornam difícil a vida da maioria das mulheres e dos
homens. Coloca na base deste processo confuso, a tirania do dinheiro e da
informação, transcende a Marx, e o dinheiro passa a produzir dinheiro,
dominando o mundo da produção de mercadorias. Especulação, financeirização. A
globalização é feita menor, sob a égide dos bancos e dos banqueiros, criando
uma fábrica de perversidades. o
desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias
perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e o
desabrigo se generalizam em todos os continentes.7
Caminhando no terreno da mais
valia global, Por uma outra globalização, apreende o papel dos intelectuais.
Todos trabalhando a ampliação desta mais valia. Trabalhando para ampliar a
produtividade como se este fosse um trabalho abstrato, e não a produção de uma
vantagem para o capita1.8 É preciso reconhecer este momento e a sua
peculiaridade. A de ser um momento para o capital. E todas as ações movem-se na
direção do reproduzir para os ricos. Entretanto, se esta é uma constatação, não
é, felizmente, uma fatalidade. Milton nos aponta para um outro conhecimento.
Para modificar o mundo. Para que o conhecimento se produza no interior da
crítica, sem abstrações alienantes, sem reconhecimentos incompletos que
produzem falsas compreensões e encobrem os verdadeiros dramas sociais. E,
assim, pode-se evitar a espera para que cresça o bolo, evitando a indigência de
uma quantidade grande de seres humanos.
É o início de uma outra
cognoscibilidade do planeta. Um planeta que conta com todas as possibilidades
de ser desvendado. Mas, nem sempre o conhecer é possível. A informação nem
sempre se propõe a informar, e sim, a convencer acerca das possibilidades e das
vantagens das mercadorias. O que é
transmitido à maioria da humanidade é, de fato, uma informação manipulada que,
em lugar de esclarecer, confunde.9
A contradição se faz e se
refaz na impossibilidade de se produzir, de imediato, uma informação
libertadora. A alienação é a face que brota aguda da globalização financeira,
da globalização do dinheiro. Encanta-se o mundo. O princípio e o fim são o
discurso e a retórica. Então o que fica para o ser comum é a farsa do consumo.
Não há referência à transformação do espaço e do tempo. O homem consumidor
caminha no espaço do desconhecimento do mundo relacional e do falso e alardeado
conhecimento do mundo das mercadorias. O fetiche, como e desde sempre, se
realiza no ocultamento do valor de troca e no falso evidenciamento do valor de
uso. É a utilidade que aparece, e que é proclamada em todo o universo
informacional. Fala-se ao peito sangrando das mulheres e homens que não são
consumidores. Para a competitividade, tem-se de chamar os consumidores, tem-se
que oferecer o melhor, o mais barato, produzido desde a produtividade aumentada
pelo trabalho dos intelectuais. Tudo para melhorar a competitividade.
Para Milton, a competitividade é
a ausência de compaixão. Tem a guerra como norma, e privilegia sempre os mais
fortes em detrimento dos mais fracos. Busca fôlego na economia e despreza os
que pensam mais para além. Para tudo
isso, também contribui a perda da influência da filosofia na formulação das
ciências sociais, cuja interdisciplinaridade acaba por buscar inspiração na
economia.I0 Esta é
uma das mais importantes reflexões levadas a efeito no interior de Por uma
outra, na medida em que coloca um ponto focal que não e localizado
costumeiramente no campo da ideologia. Cientistas sociais dos mais diferentes
matizes sucumbem aos encantos da facilidade dos números e do falso realismo de
uma formulação econômica ideologizada, que esquece os seres humanos e os
substitui pelas equações e as tabelas estatísticas que ilusionam os dirigentes
e metem medo a todos os que não querem padecer no inferno apontando pelos
proclamadores da nova única. Se não aceitas as premissas e as evidências das
projeções estatísticas da nova única, serás responsável pelo caos que há de
vir.
Empobrece a ciência social em
geral, nada para além da numerologia estatística. Investir nos setores sociais
acarreta um custo que o capital não se propõe a pagar, e a ciência se curva,
entra em letargia, deixa o mundo nas mãos dos economistas que vão levá-lo
adiante de mãos com a lógica da relação produto capital e competitividade. A
ciência humana se faz pobre para interpretar um mundo confuso e conturbado e,
desde logo, tudo a ciência econômica. Este enfoque modernoso atinge por
caminhos nunca dantes navegados a maioria das falas e dos discursos. Grandes
farsas são inventadas e reinventadas. O privilégio continua privilegiando o
privilegiado. Os atores mais poderosos se
reservam os melhores pedaços do território.11 Inclusive do território do pensar para impedir
o pensar. Apoderam-se das mentes e dos corações e, por consequência, das vidas
no pleno movimento da vivência. Tudo isto no mundo da competitividade. A
competitividade revela a essência do território, os lugares apontam para as
lutas sociais, trazendo a tona virtudes e fraquezas dos atores da vida política
e da sociedade.
A cidadania se torna menor do que
sua percepção. O cidadão pretende transcender o seu espaço primitivo. Todavia,
o mundo, expresso desigualmente, não tem como regular os lugares em suas
diversidades e, por consequência, a cidadania se faz menor. A desigualdade
aponta a impossibilidade da generalização da cidadania. O espaço é
esquizofrênico na expressão da exclusão social. Uns homens sentem-se mais
cidadãos do que outros. Mas estes homens são apenas consumidores, pois a
cidadania depende de sua generalização. Não existem cidadãos num mundo
apartado. Não se é cidadão em um espaço onde todos não o são. São consumidores
os que expressam direitos e deveres no âmbito do mercado e não no âmbito do
espaço público, onde a política é realizada e o poder distribuído. Portanto,
este é um mundo de alguns consumidores e poucos, pouquíssimos cidadãos. É
preciso construir a cidadania.
A transição (conclusão)
O novo nasce sem que se perceba.
Quase na sombra, o mundo muda de maneira imperceptível, todavia constante.
Neste início de século, temos a consciência de que estamos vivendo uma nova
realidade. As transformações atuais colocam os homens em permanente estado de
perplexidade. A poluição e a desertificação se alastram. A superpopulação e as
tecno-epidemias etc., tornam o mundo diverso negativamente. A pobreza e a
desigualdade são produtos desta forma da produção do modo civilizatório
capitalista. Este novo apresenta diferentes faces. Tudo isto como conseqüência
da desestruturação da ordem industrial. O atual período histórico não é apenas
a continuação do capitalismo ocidental, é mais. Melhor, é muito mais, é a
transição para uma nova civilização. Esta transição que está em curso é
preocupante para determinadas sociedades, desprotegidas na guerra das nações
pela primazia da história.
Milton chama a atenção para esta
realidade.
No caso do mundo atual, temos a consciência de viver um novo período, mas
o novo que mais facilmente apreende-se diz respeito à utilização de formidáveis
recursos da técnica e da ciência pelas novas formas do grande capital, apoiado
por formas institucionais igualmente novas. Não se pode dizer que a
globalização seja semelhante às ondas anteriores, nem mesmo uma continuação do
que havia antes, exatamente porque as condições de sua realização mudaram
radicalmente. É somente agora que a humanidade está podendo contar com essa
nova realidade técnica infomacional. Chegamos a um outro século e o homem, por
meio dos avanços da ciência, produz um papel de elo entre as demais, unindo-as
e assegurando a presença planetária desse novo sistema técnico.I2
É necessário, para compreender
esse novo, o conhecimento de dois elementos fundamentais na formação social das
nações: a formação técnica e a formação política. Uma permite a compreensão dos
elementos tecnológicos que formam as composições necessárias à produção, a
outra indica que setores serão privilegiados com a organização possível da
produção. Na prática social, sistemas
técnicos e sistemas políticos se confundem e é por meio das combinações então
possíveis e da escolha dos momentos e lugares de seus us que a história e a
geografia se fazem e refazem continuamente.I3 Desde esta compreensão, esta nova sociedade pode,
inclusive, abrir uma nova época com a colocação de um novo paradigma social.
Este paradigma pode ser posto como: a superação da nação ativa pela nação
passiva.
Ou melhor, voltando ao velho
Marx: a nação em si é superada pela nação para si. Para isto, é necessário que
o velho/novo mundo periférico retome um projeto político de independência, fora
dos moldes de projetos como o Mercosul, que nada mais representam do que a
dependência em bloco, na medida em que este tipo de associação só serve à
subserviência coletiva, levando grupos de países periféricos a deixar de
submeterem-se isoladamente, para cair em bloco nos ardis do capital financeiro.
Finalmente, utilizando a
dialética como referência, Milton mostra a batalha travada entre a nação
passiva e a nação ativa, em uma transição política que envolve todos os espaços
do viver, desde o espaço da vida cotidiana. A nação ativa, ligada aos
interesses da globalização perversa, nada cria, nada contribui para a formação
do mundo da felicidade, ao contrário da outra nação dita passiva que, a cada
momento, cria e recria, em condições adversas, o novo jeito de produzir o
espaço social, mostrando que a atual forma de globalização não é irreversível e
a utopia é pertinente. "É somente a partir dessa constatação, fundada na
história real do nosso tempo, que se torna possível retomar, de maneira
concreta, a idéia de utopia e de projeto".I4 Desde esta compreensão, a
globalização é um projeto irreversível da humanidade. Entretanto, não é esta a
globalização desejada, e sim uma outra, a de todos.
N o t a s :
1 - Resenha Publicada em Política Democrática — Revista de
Política e Cultura, Terrorismo X Democracia. Brasília: Fundação Astrogildo
Pereira, Ano 1, n° 2, jun-set2001, Trimestral, 212 pág., 2001, pp. 191-197.
Sobre o livro: Por uma outra Globalização — do Pensamento Único à Consciência
Universal, de Milton Santos, São Paulo: Record, 2000.
2 - SANTOS, Milton. Pobreza Urbana. São Paulo — Recife:
Hucitec/UFPE/CNPU, 1978.
3 - SANTOS,
Milton. op. cit., 1978, p. 29.
4 - SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo. São Paulo: Hucitec,
1994, p. 17.
5´- SANTOS, Milton. Entrevista com SEABRA, Odete; CARVALHO,
Mônica & LEITE, José Corrêa. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2000, p. 21.
6 - SANTOS, Milton. Por uma outra Globalização — do Pensamento
Único à Consciência Universal. São Paulo: Record, 2000.
7 - SANTOS, Milton. op. cit., 2000, p.19.
8 - SANTOS, Milton. op. cit., 2000, p. 31.
9 - SANTOS,
Milton. op. cit., 2000, p. 39. Região Metropolitana do Recife: Globalização e Política
IO - SANTOS, Milton. op. cit.,
2000, p. 47.
11 - SANTOS, Milton. op. cit., 2000, p. 79.
12 - SANTOS, Milton. op. cit., p. 142.
13 - SANTOS, Milton. op. cit., 2000, p. 142. SANTOS, Milton. Pobreza Urbana. São Paulo — Recife:
Hucitec/UFPE/CNPU, 1978.
1994
. - - - Técnica, Espaço, Tempo. São Paulo: Hucitec,
. - - - Por urna outra Globalização — do Pensamento Unlco à Consciência
Universal. São Paulo: Record, 2000.
14 - SANTOS, Milton. op. cit., 2000, p. 160.
Délio Mendes - Entrevista com
SEABRA, Odete; CARVALHO, Mônica & LEITE, José Corrêa. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2000.
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