Roberta Marx Delson
Tradução:
Fernando de Vasconcelos Pinto
Roberta Marx Delson, nascida na cidade de Nova York, recebeu
o seu MA (Master of Arts, mestrado em Ciências Humanas) e o seu PHD (Philosophy
Doctor, doutorado) em Estudos Latino-Americanos e História na Universidade de
Colúmbia. Lecionou na Universidade Estadual de Rutgers (em New Brunswick,
estado de Nova Jersey) e na Universidade de Princeton (em Nova Jersey), e tem
trabalhado como consultora em programas de estudos latino-americanos e também
para o Serviço do Patrimônio Histórico do Estado de Nova Jersey. Atualmente é
lente da Academia da Marinha Mercante dos Estados Unidos. Suas obras publicadas
compreendem o presente livro, cuja edição original em inglês, data de 1979, Readings on Caribbean History and Economics (Conferências
sobre a História e a Economia do Caribe, 1980) e Industrialization in Brazil: 1700-1830 (1991), esta em coautoria
com John Dickenson, bem como muitos artigos especializados. Presentemente está
elaborando The Sword of Hunger: A
Latin-American History (A Espada da Fome: Uma História da América Latina),
conjuntamente com o eminente brasilianista Robert M. Levine.
O Marquês de Pombal e a Política
Portuguesa de europeização
Com o falecimento de Dom João V,
em julho de 1750, ascendeu ao trono português Dom José I. Governante indeciso,
José I preferiu deixar o controle da política nas mãos do seu enérgico
primeiro-ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal. Na
realidade, quem governou a nação e seu império ultramarino até 1777 foi Pombal,
como ele é geralmente conhecido, que deu continuidade à tendência para o
governo absoluto estabelecida pelo seu antecessor durante o período joanino. O
marquês foi influenciado fortemente pelas filosofias intelectualistas da época
e assumiu as suas responsabilidades administrativas com aquele zelo reformista
tão característico dos defensores setecentistas do Iluminismo.
Em Portugal, Pombal procurou denodadamente sacudir a nação da
sua letargia e incorporá-la ao curso das tendências da Europa do seu tempo.1 Para tanto, ele não só
instituiu um programa de reorganização econômica, orientado para aumentar a
margem de lucro do governo, como também procurou fazer com que os mecanismos
administrativos operassem com maior eficiência mediante a centralização das
funções governamentais. Os opositores aos seus planos claramente traçados não
foram tolerados por muito tempo; os jesuítas, seus inimigos mais declarados,
logo foram envolvidos numa conspiração para assassinar o rei, o que resultou na
sua completa expulsão do reino em 1759.
Quanto ao Brasil, a visão de
Pombal era igualmente clara: a autoridade real deveria ser ampliada pelo
aumento do número de vilas no interior e pela sua integração num programa que procurasse
aproveitar ao máximo as potencialidades dos territórios até então inexplorados.
Para realizar isso, ele propunha a inclusão das populações indígenas no
programa de construção de vilas, decidido como estava a transformar esses
súditos da Coroa até então ignorados -- e menosprezados -- em membros
importantes da sociedade brasileira. Naturalmente a supressão da proteção dos
jesuítas às sociedades indígenas em 1759 ajudou o programa pombalino, porém na
realidade os seus objetivos já estavam claramente traçados desde o início da
década.
A meta geográfica imediata do
plano de colonização indígena de Pombal era o Amazonas, que começara a
adquirir uma importância econômica em consequência do abrimento da ligação
fluvial Pará-Madeira-Guaporé entre Belém e Vila Bela, em Mato Grosso. Nessa
região, Pombal foi auxiliado e favorecido pela presença do seu cunhado,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que administrou a capitania do Pará na
qualidade de governador por toda a década de 1750. Este, nas suas próprias
palavras, procurou fazer cumprir
as ordens determinantes de civilizar os índios, possibilitando-lhes
adquirir um conhecimento do valor do dinheiro.., e acostumando-os com os
europeus, não só ensinando-lhes português como incentivando casamentos entre
índios e portugueses.2
A tarefa revelou-se difícil devido a que os
colo-nos portugueses do Amazonas eram uma gentalha inculta; principalmente nas
regiões superiores do rio, tanto os missionários como os habitantes laicos
tendiam a ser
um bando de grosseiros, despudorados e gananciosos, de pouco valor como
divulgadores da civilização européia.3
Assim sendo, num esforço
consciente para introduzir um novo elemento social no Amazonas, Pombal ordenou
que se imprimisse um novo impulso ao programa de colonização com açorianos dos
anos 1740 e que ele fosse incorporado ao seu plano de modernização dos índios.
Os imigrantes recém-chegados seriam reassentados em povoações do Amazonas, onde
poderiam servir de exemplos do comportamento digno europeu para os índios
circunstantes. As próprias comunidades, edificadas em conformidade com o código
de construção estabelecido no começo do século, seriam modelos de pensamento
ordenado e racional: as praças regulares e bem traçadas, as ruas retas, as
fachadas uniformes (ideias que aliás seriam utilizadas na reconstrução de
Lisboa depois do terremoto de 1755) provavelmente fariam com que os índios
aspirassem ao modo de vida europeu.
O programa de construção de novas
vilas no Amazonas foi iniciado quase imediata-mente depois da ascensão do
marquês ao poder. A despeito das probabilidades desfavoráveis, o governador
Mendonça Furtado foi instado a iniciar um levantamento do Pará, logo em 1751,
para avaliar as condições das comunidades existentes e determinar onde se
poderiam estabelecer novos centros urbanos.4 Foram escolhidas duas áreas para
povoamento imediato: a zona a leste da cidade de Belém, onde se concentraria a
colonização com imigrantes das ilhas do Atlântico, conforme se decidiu, e as
principais vias fluviais da bacia amazônica, compreendendo os rios Madeira,
Tapajós e Negro. Em 1753 Mendonça Furtado pôde comunicar que havia escolhido a
povoação já existente de Souza de Caeté para a localização de uma primeira vila
oficial, que receberia o novo nome de Bragança, em homenagem à família real. O
sitio tinha as vantagens da proximidade do Atlântico, embora um pouco afastado
da beira-mar, e de ficar perto de um braço do rio Guamá, afluente do Tocantins.
Prevendo um grande sucesso comercial para a comunidade, resultante da pesca e
da agricultura, cujos produtos poderiam ser mandados para Belém, Mendonça
Furtado pleiteou junto à Coroa a vinda de colonos brancos (casais) para
povoarem a nova vila. Uma aldeia de índios (gente
da terra) existente nas cercanias, explicou ele, estaria disponível como
mão-de-obra suplementar para os agricultores, e também poderia ajudar no
transporte das mercadorias para Belém em suas canoas. Uma escola onde as
crianças índias pudessem aprender a língua portuguesa concorreria para
facilitar a adaptação mútua desses dois grupos díspares.5
Na mesma carta, o governador
preconizou a criação de duas outras redes de comunidades euro-indígenas, desta
vez mais para o interior, nos rios Xingu e Tapajós. Um ano depois, Mendonça
Furtado comunicou-se novamente com Lisboa, elogiando o projeto inicial de
Bragança e salientando que ele havia tomado todas
as providências que [ele] considerava necessárias para o crescimento... da
aglomeração.6 Seu
entusiasmo originou outras propostas urbanas, inclusive a criação da cidade de
Borba, no local da antiga comunidade indígena de Trocano. Essa nova vila,
localizada perto da confluência do rio Madeira com o Amazonas (no atual estado
do Amazonas), destinava-se a servir de posto administrativo avançado na via
fluvial comercial Guaporé-Madeira. Apesar de a atração de colonos para essa
área remota ter se mostrado difícil, fazendo com que o bispo do Pará
recomendasse à Coroa custear as despesas do seu assenta-mento,7 a localidade foi fundada com êxito
em 1756.8 Aqui, as regras de alinhamento
urbano foram seguidas fielmente,9 o que levou um visitante nos anos 1770 a
comentar que a comunidade era uma grande
praça de quatro lados com casas em quatro ruas.10 Dez anos depois, o famoso escritor sobre a região
amazônica Alexandre Ferreira de Rodrigues afirmou, na sua Viagem Filosófica,
que Borba era uma das poucas comunidades amazônicas que mereciam o título de
vila.11
Tal como no Nordeste meio século
antes, as dificuldades de conseguir colonos para as regiões longínquas da
Amazônia eram agravadas pela necessidade de manter o controle numa zona muito
distante da capital administrativa, Belém. As consequências negativas dessa
situação precária para a soberania portuguesa nessa região foram percebidas por
Mendonça Furtado durante a sua visita à zona do rio Negro em 1754.
Posteriormente, ele sugeriu a Lisboa transformar essa região do alto Amazonas
numa nova capitania, cuja base de operações seria uma nova vila a construir;
essa comunidade não só substituiria Belém do Pará, dispondo de funcionários
administrativos e de um tribunal na própria sede, como poderia também hospedar
as comitivas estrangeiras cuja chegada ao território estava prevista para
efetivarem os acordos de fronteiras já acertados entre os espanhóis e os
portugueses no Tratado de Madri, em 1750. Em 3 de março de 1755, o governo da
metrópole, concordando com a ideia de Mendonça Furtado, autorizou a criação de
uma nova capitania e da vila de São José do Rio Negro.12
A exemplo de outras ordens que
até então haviam servido de base para a fundação de novas capitais e vilas
administrativas, a Carta Régia de 1755 que ordenava a criação da vila de Rio
Negro preceituava um traçado urbano ordenado. A praça principal deveria ser
demarcada em primeiro lugar, prevendo-se localizações para a igreja, a casa da
câmara, a cadeia e outros prédios públicos. As casas deveriam ser construídas com o mesmo feitio externo, mas,
quanto ao interior, cada [morador]
poderia fazer o que lhe conviesse. Dever-se-ia ter o cuidado de manter essa
uniformidade na construção, bem como na largura das ruas, a fim de que a vila
apresentasse sempre a mesma beleza:
Os terrenos para casas e pomares-hortas poderiam ser concedidos com
generosidade aos colonos, contanto que eles obedecessem às novas disposições.13
A instrução inicial dos
portugueses era situar a nova cidade na embocadura do rio Negro, porém Mendonça
Furtado resolveu localizar o novo centro a montante, na aldeia de Mariuá
(também citada corno Mariva), a uma longa distância da confluência do rio Negro
com o Amazonas. Nesse local, a nova vila constituiria um ponto de observação a
partir do qual as comunidades indígenas circunvizinhas poderiam ser mantidas
sob controle. Além disso, como o bispo do Pará observou na sua carta em que
aprovava a mudança de localização decidida por Mendonça Furtado, o novo sítio
cumpriria a função de atalaia para vigiar as. atividades dos espanhóis e
holandeses nessa parte da Amazônia, ao mesmo tempo em que serviria de
entreposto para uma série de ervas medicinais colhidas nas imediações, as quais
eram o principal produto de exportação da região.14
Malgrado essas metas ambiciosas,
ainda em 1759 pouco progresso havia sido feito no sentido de transformar a
aldeia de Mariuá na nova vila de São José (ou, como ela era mais comumente
chamada, Barcellos). O sucessor de Mendonça Furtado, Manuel Bernardo de Melo e
Castro, naquele ano instou junto ao Marquês de Pombal para que se reconhecesse
a urgência de converter a aldeia numa vila antes da chegada das comitivas de
fronteiras, a fim de comprovar a solidez da posição portuguesa. Em virtude de a
reivindicação portuguesa da região ter se baseado no princípio da ocupação
efetiva, era impensável que a colônia que receberia os negociadores tivesse um
aspecto desleixado. Era necessário salvar as aparências, dando a impressão de
que, mesmo na selva longínqua, prosperava um baluarte da cultura portuguesa.
Nesse contexto, Melo e Castro salientou que faltavam urgentemente gêneros
alimentícios do tipo produzido nas
fazendas europeias, principalmente trigo e azeite, e que as provisões de
vinho, vinagre, carne e sal também eram escassas. Ademais, naquele momento, em
1759, as edificações levantadas por ordem de Mendonça Furtado estavam completamente deterioradas.15
Por sorte o contingente português
da comitiva de fronteiras já havia chegado a Barcellos. Os préstimos de Felipe
Strum, um dos melhores engenheiros e cartógrafos mandados pelos portugueses ao
Brasil, foram prontamente empregados no programa de remapeamento de Barcellos.
Uma planta datada de 1762 (Figura 8A)16
mostra a extensão das modificações urbanas que se seguiram ao novo
desenho de Strum. Em obediência às ordens de 1755, a cidade concentrava-se em
torno de uma nova praça espaçosa, na frente da qual havia um terreno reservado
para uma igreja paroquial de boas proporções. Ao que parece, a praça da
comunidade primitiva foi abandonada na periferia da cidade, porque mudaram a
orientação da malha urbana para longe desse centro, dando-lhe uma direção
norte-sul. O centro da cidade aparece situado a pouca distância da margem do
rio, onde são previstos embarcadouros para canoas. Na novapraça está assinalada
uma sala de conferências para os delegados plenipotenciários; no entanto, a
três quarteirões dali ficava um curral de
tartarugas, o que indica que a cidade passou tempos difíceis sanando as
suas características provinciais.
Fig. 8-A: Planta básica de Barcellos. no Rio Negro, tal como foi redesenhada por Felipe Strum, 1782.
Durante os anos seguintes, apesar
dessa planta desenhada cuidadosamente, os registros mostram numerosos exemplos
da necessidade de reconstruir as estruturas públicas. Um dos grandes problemas
era que as edificações muitas vezes eram de madeira, um material de pouco valor
prático na selva amazônica úmida, onde tudo apodrecia.17 Por exemplo,
em 1768 os armazéns, o quartel e a residência do governador tiveram de ser
reconstruídos (Figura 8B).18
Figura 8-B : O novo projeto para Barcellos, sem data.
Sem se mostrarem intimidados por
esses (reveses na renovação de vilas nas regiões remotas, os portugueses, sob
a direção de Pombal, continuaram a pressionar os administradores do Brasil para
civilizarem as localidades mais antigas.
As recomendações sobre a maneira de realizar isso compreendiam instruções
relativas à ordem em que aos novos prédios seriam construídos; antes de tudo,
seria erigida a igreja; depois viria a residência do representante do governo.19 Naquela época, o uso de um traçado urbano
regular tinha se tornado tão comum que um administrador local escreveu em 1757
informando que havia utilizado o modelo
de costume, a fim de que o local que ele estava demarcando tivesse as características de uma vila bem fundada.20
A expulsão dos jesuítas em 1759
ensejou às autoridades portuguesas oportunidades ainda maiores de assunção do
controle das comunidades indígenas. Quase imediatamente as denominações dessas
antigas aldeias foram substituídas por nomes de cidades portuguesas;21 achava-se que isso dava uma impressão de civilização. Foram nomeados
superintendentes laicos para administrar as comunidades, os quais eram
ins-truídos a supervisionar as novas edificações para abrigar trabalhadores
índios. As casas deveriam ser construídas com uniformidade e retilineidade, e as terras agricultáveis da
localidade tinham de ser divididas em proporções iguais aos habitantes.22
O movimento de reforma urbana
tinha um atrativo evidente; centros urbanos tão díspares como a cidade de Belém
e aldeias indígenas em Mato Grosso foram submetidos a programas de remodelação
rigorosos. Para Belém, Mendonça Furtado recomendou encarecidamente que os
impostos locais fossem utilizados por um período de dez anos para reformar a
cidade, que, na sua opinião, salvo pela sua grande população, pouco diferia das
aldeias do sertão.23 Não surpreende que as suas propostas tenham
acabado fomentando a pavimentação de ruas na cidade24 e a edificação
de muitos prédios públicos, inclusive do Palácio dos Governadores, projetado
pelo engenheiro italiano Antônio José Landi (Bolonha, 1708 - Belém, 1790).25
Na hinterlândia, nem mesmo a
humilde vila de Cuiabá pôde escapar ao espírito reformista. Com a sua
configuração inicial sem racionalidade,26
a comunidade havia crescido sem que nenhum esforço fosse feito para
conter a ocupação da área de pastagem comum (rossio e logradouro). Na década de
1750, atendendo a um reque-rimento da Câmara Municipal de Cuiabá, o Conselho
Ultramarino, em Lisboa, determinou que essa terra pública fosse devolvida para
cultivo. Exigiu-se então que os proprietários das casas encravadas na área
pública reconstruíssem as suas residências num terreno destinado
especificamente a esse fim. Essa área seria previamente alinhada e subdividida
em lotes, em ruas traçadas em linha reta. Dessa maneira, a autoridade e a ordem
finalmente deixariam a sua marca na mais mal traçada de todas as povoações.
Além disso, a devolução das terras públicas para uso da Câmara assegurar-lhe-ia
uma renda fixa, tornando desnecessária a coleta de impostos específicos a cada
vez que fosse executada uma melhoria pública.27
Figura (: Planta básica de São Miguel, 1765.
Em outras áreas de Mato Grosso e
particularmente ao longo do rio Madeira, os portugueses procuraram consolidar
os ganhos territoriais, reunindo as populações existentes em diversas novas
aglomerações de projeto regulamentado. O caso da aldeia de São Miguel ilustra
bem esse processo. Já tinha existido uma aldeia indígena naquele trecho do rio
Madeira (a cerca de quatro léguas do Forte de Conceição), porém durante os anos
1760 ela tinha se mostrado inadequada. Havia chegado um contingente de índios
há pouco repatriados das missões espanholas pelos portugueses, e a velha aldeia
não tinha condições de alojá-los decentemente. Nessas circunstâncias, o
capitão-geral João Pedro da Câmara, resolveu transferir a aldeia para longe
dali. O novo complexo seria projetado com o formalismo
[i. e. retilineidade] que convinha para a habitação e o conforto dos seus
moradores.28 O esboço (Figura 9) que acompanhava a carta de
Câmara dá uma ideia do grau de aquartelamento
a que os trabalhadores índios seriam submetidos: longas alas de unidades
residenciais em arranjo simétrico aparecem como alojamentos para os índios.
Esses alojamentos estão dispostos de um lado e do outro de uma grande praça, em
cuja frente estão as casas do administrador da comunidade e do vigário
residente, e, por trás, um armazém para as frutas colhidas. O quarto lado da
praça, defrontando o rio, é deixado aberto.29
Figura 10: Planta básica de Balsemão. 1768.
Em 1768 foi oficialmente
inaugurada mais uma comunidade indígena ao longo da via fluvial do Madeira,
denominada Balsemão. Nela, as habitações dos trabalhadores eram constituídas
por unidades de alojamento individuais pegadas, com paredes divisórias comuns,
numa disposição semelhante à de São Miguel. Entretanto, diferentemente desta,
as casas em Balsemão (Figura 10) formam a orla de grandes quarteirões (cuja
área interna é dividida em pomares-hortas), proporcionando assim uma aparência
decididamente menos militar à comunidade. A conformação das ruas é a malha
ortogonal habitual, que vai ter a uma praça pública quadrada espaçosa. Os
quatro cantos dessa praça são entalhados em ângulo reto, o que confere a essa
composição um elemento de desenho incomum. O lado norte da praça é ocupado pela
igreja, ladeada por unidades residenciais; oposta a ela, no lado sul, está a
casa da câmara. Os centros dos lados leste e oeste são armazéns; os espaços
restantes são preenchidos por casas para índios.30 De acordo com
os documentos anexos,31
Luís Pinto de Souza Coutinho, capitão-geral na época da construção, teve pouca
dificuldade em reunir os índios pasmas na sua nova comunidade. Por outro lado,
os 400 soldados que se juntaram a ele nesse local devem ter representado um
incentivo fortíssimo. Essa povoação foi tão bem-sucedida que Coutinho achou que
bastavam apenas três administradores portugueses para tomar conta dos índios:
um superintendente da comunidade, um vigário e uma pessoa não identificada cuja
função era velar pelo bem-estar da população indígena, que totalizava cerca de
150 pessoas (56 homens, 46 mulheres, 27 meninos e 17 meninas). Entre os índios
estavam inscritos dois príncipes da nação,
embora não fosse frequente os planificadores do século XVIII atentarem para
esse tipo de dado sociológico.
Durante toda a década de 1760, os
administradores, desejosos de instituir o programa de urbanização e
europeização do Marquês de Pombal, concentraram-se em corrigir o que eles
julgavam ser erros cometidos nos núcleos urbanos mais antigos. O ouvidor do
Pará, Ramos Mourão, partiu nos primeiros meses de 1762 para visitar
pessoalmente as comunidades da região do rio Tocantins e da ilha de Marajó. Nas
localidades onde não encontrou nenhum conceito de ordem, ele instituiu o novo
regime urbano; nas povoações onde tinha reinado uma compreensão nebulosa do que
constituía a cortesia, ele
substituiu-a por uma noção já bem definida e bem aceita de civilidade europeia. Com relação a uma certa comunidade, ele mandou
os habitantes repararem suas casas no prazo de dois anos e murarem seus
pomares.32 E não apenas
isso: o dom.) de cada pomar seria obrigado a plantar duas laranjeiras, um limoeiro, uma pimenteira, duas goiabeiras, dois
cajueiros, dois mamoeiros e dois coqueiros. Não era permitido a ninguém
construir casas sem consentimento prévio dos funcionários da câmara, que, por sua
vez, providenciariam que as ruas fossem retas,
largas e espaçosas e que as casas fossem construídas com uma mesma forma e um
mesmo tipo de fachada, isso sendo conveniente para a beleza da vila. Por
fim, construir-se-ia uma fornalha num local próximo para fornecer telhas para
os tetos das casas, e nos anos vindouros, todo mês de outubro, os funcionários
da câmara deveriam vistoriar as casas e pomares para certi-ficar-se de que as
ordens haviam sido cumpridas.33
Em algumas localidades, a
responsabilidade pelo alinhamento urbano foi confiada aos habitantes mais
qualificados. Isso sucedeu, por exemplo, na criação da vila de
Monte-Mor-o-Novo, no Ceará, onde Custódio Francisco Azevedo, residente no local
e habilidoso no uso da prancheta, foi encarregado de traçar a planta da nova
vila. Aqui também o risco da comunidade obedeceu ao formato usual: uma grande
praça central alinhada, rodeada por casas uniformes, uma igreja, a casa da
câmara e um açougue.34 Como
orientação para o traçado do resto da vila, a Coroa recomendou que se usasse o
código promulgado em 1755 para a criação da vila de São José do Rio Negro
(Barcellos).35 Outras provas indicam que no tempo da criação
de Monte-Mor, em 1764, eram comuns as recomendações oficiais para seguir as
plantas de São José, conforme demonstra esta prescrição:
...determinados pela Lei de 6 de junho de 1755, serão praticadas, sempre
que possível, as normas e o alinhamento ordenados para o estabelecimento da
vila de São Miguel do Rio Negro.36
Ao que parece, em Monte-Mor não
houve dificuldade em aplicar as diretrizes urbanas preceituadas; foi feito o
levantamento topográfico da área, a terra foi distribuída e demarcada com
vistas a garantir que as construções futuras seguissem a mesma orientação de
alinhamento.37
Duas outras comunidades, também
no Norte do Brasil, ilustram a confiança depositada pelos portugueses nas
técnicas de arquitetura e urbanismo durante a era pombalina. Tanto São José de
Macapá como Nova Mazagão, no território do Amapá, foram desenhadas e demarcadas
por equipes de especialistas qualificados em engenharia. Junto com as
comunidades vizinhas, elas eram parte de um sistema econômico regional e
ficaram sob a jurisdição da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, uma
empresa monopolística criada pelo Marquês de Pombal em 1755 para explorar os
recursos do extremo Norte da imensa colônia.
Figura 11: São José de Macapá, no Amapá, 1761 mostrando o desenho da praça dupla.
A construção de São José foi a
primeira providência desse plano. Em 1751 os portugue-ses haviam reconhecido a
necessidade de estabelecer um presídio militar e uma comunidade no local da
antiga guarnição defensiva de Santo Antônio de Macapá. Essa fortificação,
fundada em 1688 para defender o Amapá de eventuais incursões francesas vindas
da Guiana limítrofe, afigurava-se inadequada pelos padrões de meados do século
XVIII. Em face disso, a Coroa resolveu reforçar as defesas na zona, assentando
uma população bastante numerosa na área circunjacente e remodelando as obras de
defesa Em 1751 o capitão-mor João Batista de Oliveira foi mandado ao local para
iniciar a formação de uma comunidade agrícola.38 Até dezembro
do mesmo ano foram enviadas para a nova povoação quatro expedições de colonos
(muitos dos quais provinham dos Açores e da ilha da Madeira), perfazendo talvez
300 pessoas; todavia, passaram-se vários anos até que a comunidade pudesse ser
considerada viáve1.39 Relatórios
do andamento dos trabalhos datando de 1757 referem que as obras da nova vila
ainda estavam em curso; um ano depois a comunidade foi promovida a vila, apesar
de inacabada.40
Uma carta de João da Cruz Pinheiro,
o ouvidor que chefiava a equipe de demarcação, dá uma descrição do procedimento
pelo qual a vila foi traçada. No seu relato, Pinheiro queixou-se de que havia
levado dois dias de trabalho ininterrupto, do
amanhecer ao anoitecer, para planejar uma comunidade com alicerces
suficientes para ser permanente. Nessa povoação, como em outras localizadas
perto de cursos ou coleções de água, os aterros para ruas e subdivisões para moradias
tinham de ser planejados de modo a preservá-la com segurança das inundações perigosas.
O mapa incluso à carta de Pinheiro mostra que ele conseguiu entremear a malha
urbana na multiplicidade de pequenas lagoas alagadiças.40
Figura 12: São José de Macapá, detalhe da disposição das habitações, 1759.
Os voluntários açorianos para a
nova vila foram postos sob o comando do sargento-mor Thomaz Rodrigues da Costa,
o oficial mais graduado do presídio. Homem bastante
inteligente criterioso e cristão,42
da Costa foi judiciosamente
escolhido por Mendonça Furtado e recebeu plena liberdade para desenvolver a
comunidade como melhor lhe parecesse (Figura 11).43 Sendo engenheiro, da Costa apreciava sobremaneira a
ordem e o regulamento. Cada colono
recebeu instrumentos, gado e sementes para plantar, e a cada um foi adjudicada
uma unidade de moradia e exploração padronizada.44 Na realidade, isso foi uma repetição do plano de
colonização com açorianos de 1747, porém o documento cartográfico do caso de
Macapá é tão minudente que é possível visualizar exatamente como o plano foi
executado. A planta, de 1759 (Figura 12), tem uma escala que permite calcular a
dimensão de cada unidade residencial. De acordo com essa planta, cada casa tem
uma fachada de mais ou menos 33 pés (10m ou 5,5 braças) e um comprimento de
cerca de 18 pés (5,5m). O espaço interno é dividido em três pequenos
compartimentos com um vestíbulo estreito. Como na maioria das comunidades
construídas tendo em vista minimizar os custos, as casas de Macapá são pegadas
umas às outras, com paredes comuns. Seu exterior é uniforme, como mostra o
desenho do rodapé da planta; cada unidade tem três janelas simples sem ornato e
uma porta com um dintel singelo. Atrás de cada casa há um lote comprido
destinado ao cultivo de um pomar e horta e à manutenção dos animais
domesticados e de galináceos. A disposição das ruas é em malha ortogonal, interrompida
por duas grandes praças. A única função de uma dessas praças parece ser conter
o pelourinho de praxe em toda municipalidade, enquanto a outra tem um caráter
administrativo, compreendendo a igreja, a casa da câmara e o açougue.45 Próximo à praça administrativa fica
o posto médico da vila, a casa do
cirurgião.
A composição de Macapá tem sido
tachada de monótona e estéril pelos observadores da atualidade.46 Aos olhos do homem
moderno, ela pode parecer assim; contudo, o atributo de uniformidade de Macapá
constitui uma prova admirável da capacidade crescente dos administradores
coloniais de supervisionarem o desenvolvimento de um centro urbano no Brasil.
Acresce que, para a sua época, São José de Macapá representava o exemplo ideal
do bom gosto em urbanismo; simetria e harmonia de perspectiva eram sinônimos de
beleza para a mentalidade setecentista. Até mesmo a fortaleza construída em
Macapá na década seguinte ilustra a preferência pela ordem e pela precisão
geométrica do barroco.47
Seus quatro bastiões equidistantes, baseados nos modelos franceses de
fortificação, continuaram a impressionar os que visitavam a comunidade. Mesmo
décadas depois, em 1817, Aires de Casal comentou que Macapá tinha um forte magnífico, bem como boas ruas.48
Mazagão, a outra comunidade da
região do Amapá, também mereceu considerável reflexão por parte da Coroa antes
da sua fundação. Enquanto São José de Macapá prosperava, os portugueses sentiam
a necessidade de mais colonos na região. A pequena distância de Macapá existia
a pequena aldeia indígena de Santana, e, no final dos anos 1760, o
capitão-geral do Pará, Fernando da Costa Athayde Teive, refletiu que a sua
população podia ser transferida, para benefício de toda a zona.49 Para tanto, Domingos Sambucetti,50 engenheiro italiano comissionado pelo exército
português, foi destacado para um novo local à margem do rio Mutucá, com o
encargo de começar o levantamento preliminar para o estabelecimento da nova
comunidade indígena.
Àquela altura, os portugueses
estavam encontrando dificuldades em outros domínios do seu vasto império
ultramarino. Seu último reduto no Norte da África, Mazagão, estava em
decadência, e eles enfrentavam o difícil problema de reassentar os colonos
dessa guarnição. A opção lógica para o reassentamento dos mazaganenses era o
Brasil, que não só podia receber mais povoadores que Portugal ou suas ilhas do
Atlântico como, de acordo com a mentalidade pombalina, beneficiar-se-ia com a
introdução de elementos culturais europeus. Tirando partido dessa excelente
oportunidade de povoamento, Athayde Teive, em consulta com Mendonça Furtado --
agora Secretário do Ministério de Ultramar --, procurou demonstrar que podia
instalar facilmente o contingente deslocado de Mazagão na mesma colônia que
estava sendo construída para os antigos moradores da aldeia indígena de
Santana.51 Com os índios como trabalhadores
braçais e os colonos europeus como fazendeiros, o capitão-geral anteviu um
êxito infalivel para a nova vila.
Pouco depois de Sambucetti
concluir o levantamento da área do rio Mutucá, Ignácio da Costa de Moraes
Sarmento foi nomeado comandante da primeira expedição. Sarmento, homem de muita honra e alto prestígio,52 iniciou suas tarefas separando uma
área que definia os limites da comunidade. Dentro dessa área, logo começou o trabalho
de demarcar uma malha urbana de ruas e praças alinhadas e de construir alojamentos
suficientes para os colonos esperados.53
Os índios de Santana forneceram a força
de tra-balho para essa tarefa, coadjuvados por outros, recrutados nas aldeias
indígenas de Melgaço e Obidos.54 É claro que Sarmento trazia consigo o modelo
português de vila costumeiro, que preceituava um povoamento regulamentado. Não
obstante Sambucetti ter advertido o governador de que o terreno acidentado
poderia obrigar a alguns desvios da geometria habitual da planta básica
portuguesa,55 parece que Sarmento, obstinada-mente,
manteve-se fiel ao princípio da retilineidade e projetou a cidade envidando
todos os esforços possíveis para manter a boa ordem. Para tal, o solo foi
nivelado em 1770, e as ruas foram traçadas com quarteirões de mesmas dimensões
e equidistantes (Figuras 13A e 13B).56
No final das contas, todos esses
trabalhos, inclusive a construção dos lares, foram custeados pelo Tesouro Real.57
Figura 13 A: Esquema inicial de Mazagão no Amapá, sem data.
Os dados estatísticos existentes
acerca de Nova Mazagão são abundantes pelos padrões da época. Em 1772
registrou-se que a localidade tinha 459 habitantes, sendo 383 cidadãos livres e
76 escravos. De acordo com um relatório, a força de trabalho necessária para
construir a nova vila compunha-se de 122 índios.58 No final de
1772, esse grupo já havia construído 134 unidades habitacionais das quais 117
estavam ocupadas, tanto pela população livre como pela escrava.59
Figura 13 B: Nova Mazagão, aproximadamente 1800.
A nova vila satisfez as expectativas de
Athayde Teive. Com o incentivo de um ano de sustento às, custas do governo, os
mazaganenses estabeleceram-se rápida e definitiva-mente.60 Ao que parece,
o seu orgulho por esse feito fê-los sentir-se superiores à média dos habitantes
do Pará.61 Porém a sua
pretensa superioridade não os impediu de comerciarem com seus vizinhos de
Macapá. Essas duas comunidades, juntamente com outra povoação em Vistosa,
formavam uma zona do arroz, cuja produção era embarca-da para Belém; essa zona
constituía uma importante fonte desse produto para a capital.62
Figura 14 A: Detalhe de Lisboa no século XVI.
Até 1778 esse
sistema regional esteve sob a jurisdição da Companhia Geral do Grão Pará e
Maranhão e, como tal, era submetido a frequentes fiscalizações administrativas.
Em 1775 o novo governador do Pará, João Pereira Caldas, vistoriou cada uma das
três vilas e exarou um relatório sobre o seu progresso. Para a vila de Mazagão,
ele reco-mendou a construção de uma olaria destinada à produção de telhas, para o enobrecimento das casas e para
evitar, assim, maiores riscos de incêndio. Uma instalação semelhante foi
proposta para Macapá, que Pereira Caldas achou consideravelmente aumentada e lusificada em relação ao que ele
observara na sua visita anterior, em 1773.63
Ali, no longínquo território do Amapá,
estavam funcionando postos avançados viáveis da cultura e da autoridade
portuguesa.
A julgar pelo grande número de
vilas e arraiais construídos durante o período de 1750 a 1777 (os 27 anos da
era pombalina), o procedimento pombalino da planificação de cidades pode ser
considerado senão um sucesso.64 Trabalhando com um paradigma de vila já estabelecido,
Pombal aprimorou o processo e firmou o conceito de que a boa ordem urbana era
uma marca do comportamento europeu (portanto, civilizado). Pouco importou se os habitantes dessas comunidades
planificadas continuaram fiéis à sua dieta tradicional de mandioca, ou se eles
mantiveram as suas maneiras grosseiras, como afirmou um historiador;65 pelo menos na sua
aparência exterior, as comunidades planificadas deram mostras de um estilo de
vida europeu.
Num certo sentido, o Brasil, com
seu vasto sertão, serviu de campo de prova para os desenhos urbanos mais
recentes saídos das pranchetas em Portugal. Embora os portugueses viessem
fazendo experiências de planejamento urbano inovadoras desde a Idade Média, a
oportunidade de construção em massa de novas cidades era restrita num país que
havia sido povoado desde a Antiguidade. A vida urbana no Portugal sete-centista
decorria com razoável estabilidade, até a manhã do dia 12 de novembro de 1755,
quando um terremoto atingiu Lisboa. Imediatamente se determinou uma
reconstrução completa da área do centro da cidade. Já que muitos dos conceitos
urbanos aplicados naquele projeto foram os mesmos que vinham sendo empregados
no Brasil, vale a pena examinar sua utilização no país-metrópole.
O sismo de 1755 destruiu uma
grande parte do velho núcleo comercial do centro de Lisboa, o que requereu uma
reconstrução urbana de proporções inauditas.66 Muitos engenheiros com formação em arquitetura civil
apresentaram diversos projetos para reedificar a área; alguns deles propuseram
reconstruir as ruas seguindo o mesmo traçado medieval (Figura 14A), ou conservando
pelo menos algumas das antigas vias de circulação. Finalmente se adotou o único
projeto que apresentava uma abordagem inteiramente nova; ele propunha uma 'rede' muito complexa, composta de oito
ruas de orientação norte—sul e nove dispostas do leste para o oeste".67 Essas ruas seriam o meio
de ligação entre duas importantes praças.
Figura 14 B: Novo projeto de Lisboa depois do terremoto de 01/11/1755.
O risco foi de autoria de Eugênio
dos Santos, diplomado pela Aula de Fortificação por-tuguesa, e Carlos Mardel,
engenheiro militar húngaro. A natureza racional do projeto para o bairro baixo
de Lisboa empolgou o Marquês de Pombal, que o apoiou entusiasticamente. Como
observou José Augusto França, o esquema era perfeitamente concorde com a
política do marquês, servindo de representação gráfica da sua atitude ordenada
em relação ao governo (Figura 14B).68
Na planta de Santos e Mardel,
três ruas serviriam de artérias principais de tráfego inten-so e, ao mesmo
tempo, seriam o eixo de direcionamento do trânsito de uma praça para a outra.
Essas artérias tinham 60 palmos (13,2m) de largura, enquanto as ruas menos
importantes tinham apenas 40 palmos (8,8m). Os prédios dessas vias tinham uma
altura e uma fachada regulamentada, de modo que, num comprimento de 400 metros,
não seria admitida a mínima variação, a
menor fantasia. Além disso, para aumentar a composição homogênea do bairro,
cada rua deveria ter a sua própria especialidade comercial. Embora a Idade
média tivesse sido fértil em precedentes dessa especialização de ruas, os novos
regulamentos, aliados às novas prescrições de construção, levaram muitos
críticos a se queixarem da opressiva monotonia da planta. Em que pesasse essa
objeção, a planta para a Baixa foi
executada; o descumprimento do novo código resultava na recusa da permissão de
construir no novo bairro.69
A praça principal da metrópole, o
Terreiro do Paço, foi igualmente submetida aos novos padrões urbanos. Outrora
uma praça pitoresca de formato irregular, ela era voltada para o mar, e nela
ficava o palácio real. No novo projeto para a Baixa, a praça foi transformada no novo centro judiciário e de
serviços públicos da nova Lisboa. Reprovou-se lhe o caráter comercial, pois
nela ficavam a alfândega, os serviços públi-cos, o tribunal e o centro
financeiro. Sua nova fachada reproduzia a ética empresarial da organização: três lados da praça foram
ocupados com prédios idênticos, com
arcadas do térreo ao primeiro andar e pilastras duplas,70 enquanto o
quarto lado permaneceu aberto para o mar e para o império português longínquo.
Do lado oposto ao paredão do mar, foi construído mais tarde um arco do triunfo
que abria a perspectiva desse lado para a malha de ruas comerciais situada
atrás dele.
O espírito das reformas da Baixa propagou-se por outros bairros de
Lisboa,71 e até por outras cidades portuguesas (com
especialidade o Porto). Embora a maior parte dos observadores europeus o
ignorassem, os conceitos de desenho utilizados na reforma urbana da metrópole
eram exatamente os mesmos que vinham sendo postos em prática no Brasil havia já
meio século. Por exemplo, o projeto de Lisboa revela a mesma preocupação com o
alinhamento e a uniformidade das ordens de 1716 para a criação de Mocha, no
Piauí. O projeto da Baixa pode ter
sido realmente, como França escreveu, um
pensamento urbano dinâmico ímpar na Europa setecentista;72 porém os conceitos
revelados na construção da capital do reino no final dos anos 1750 haviam sido
aperfeiçoados pelos administradores e engenheiros portugueses no Brasil no
decurso das décadas que antecederam o sismo.
As experiências portuguesas de
planificação urbana no Brasil e a reconstrução posterior de centros urbanos em
Portugal demonstram claramente que o governo real havia compreendido que a
planificação urbana podia servir a fins administrativos práticos e, ao mesmo
tempo, ser esteticamente agradável. Como em outras partes da Europa, para os
portugueses, a planificação urbana
tornou-se um instrumento da política estatal.73 A
administração de Dom João V foi a primeira a compreender que um programa de
construção de vilas encerrava uma potencialidade de ampliação da autoridade;
Pombal interpretou essa fórmula como a condição indispensável do bom governo,
acrescentando-lhe o seu reconhecimento da dimensão sociocultural do programa. O
modelo de vila utilizado no Brasil em meados do século XVIII era apreciado não
só pelo seu traçado ordenado e esteticamente agradável, mas também porque ele
simbolizava um nível de europeização
e sofisticação ao qual Pombal achava que o interior do Brasil devia aspirar.
Sob a direção do marquês, a colônia foi totalmente impregnada de aplicações,
tanto teóricas como práticas, da filosofia municipal iluminizada do século XVIII.
N o t a s :
(1) Donald E. Worcester, Brazil From Colony to World Power
(Charles Scribner's Sons, Nova York, 1973), p. 47.
(2) Como já foi assinalado em Kenneth R. Maxwell, Conflicts and Compiracies: Brazil and
Portugal, 1750-1808 (Cambridge University Press, Londres, 1973), p. 15, as
outras reformas do Marquês de Pombal no Brasil abrangiam a organização de
companhias comerciais para asse-gurar o monopólio português de valiosos artigos
de exportação, a transferência da capital da colônia de Salvador para o Rio de
Janeiro e a reativação da cobrança do quinto real, a quota da coroa sobre a
renda gerada no Brasil.
(3) David Sweet, "The `Conquese of Northeastern Brazil:
Sketches for a People's History of Ex-pansion", ensaio, apresentado na
Convenção da Associação Americana de História, Nova Or-leans (Louisiana),
dezembro de 1972, pp. 21-22.
(4) Recomendações do Rei a Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
de 30 de maio de 1751. AHI, Livro 343/2, nª 29.
(5) Carta de Mendonça Furtado à Coroa, de 11 de outubro de 1753.
AHU, Pará, Caixa 16.
(6) Carta de Mendonça Furtado, de 13 de setembro de 1754.
Registro de Cartas, BNL-CP, n2 159.
(7) Carta do Bispo do Pará a Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, Pará, 31 de janeiro de 1756. Esse documento está reproduzido em MCM,
vol. III, p. 905.
(8) Como está assinalado em "Resumo histórico de algumas
fortalezas e povoações", AHI, Lata 256, Maço 2, Pasta 7.
(9) Cópia da carta de S. Mag.de a Mendonça Furtado, de 3 de março
de 1755. Essa carta instruía o governador a alinhar as ruas de Borba. BNRJ,
1-31, 28, 41, n2 6.
(10) Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, "Diário da viagem
que em vizita e correição das povoaçoens da Capitania de S. José do Rio Negro
fez o ouvidor e intendente geral da mesma... no anno 1774-1775". BMSP, MSS
C, 52.
(11) Como citado em Ernini Silva Bruno, Amazônia, vol. I, op. dl.,
p. 83.
(12) Carta Régia, de Lisboa, 3 de março de 1775, endereçada a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado. BNRJ 1-31, 28, 41, n2 4.
(13) Ibidem.
(14) Carta do bispo do Pará a Mendonça Furtado, do Pará, 13 de
maio de 1775. AHI, Livro 430/ 4/2, n2 35.
(15) Carta de Manuel Bernardo de Mello e Castro a Sebastião José
de Carvalho, Pará, 2 de no-vembro de 1759. ABAPP, vol. VIII (1913), pp. 99-106.
(16) Figura 8A - Vila de Barcellos, 1762, MIGE, n" 1005;
Figura 8B - Planta da nova villa de Barcellos, aproximadamente 1770. BNRJ-SI,
24-3-1.
(17) Isso está dito na "Memória sobre o Governo do Rio
Negro", 1762. AHI, Livro 340/4/4, nº 42.
(18) Correspondência de Fernando da Costa Athayde Teive a Mendonça
Furtado, Pará, 2 de julho de 1768. AHI, Lata 195, Maço 4, Pasta 4.
(19) Carta do Capelão Antônio Machado a Mendonça Furtado (?),
Missão de N. S. da Piedade, 6 de abril de 1756. BNL-CP, 622, fls. 166-167.
(20) Carta de José Marq.e da Fon.a Castelho a Mendonça Furtado, de
20 de dezembro de 1757. BNL-CP, 624, fls. 188-188v. Castelho declara ter
utilizado "a ordinária planta p.a q. ficace... e se construhir com as
qualidades q deve ter hua bem fundada Villa.".
(21) Essas mudanças de nomes deram-se entre 1757 e 1760. Uma
representação do Tribunal da Mesa de Consciência datada de 13 de janeiro de
1760 ordenou que as denominações de várias missões jesuíticas cujo controle o
Estado havia assumido fossem mudadas. AHU-CA, Bahia, 4791.
(22) Dois estudos recentes acerca da atitude portuguesa para com
as missões podem ser encontrados em Daniel Sweet, op. cit., e Colin M.
MacLachlan, "The Indian Labor Structure in the Portuguese Amazon,
1700-1800", in Dauril Alden (editor), Colonial
Roots of Modern Brazil (University of California Press, Berkeley, 1973),
pp. 199-230.
(23) Carta de Mendonça Furtado à Coroa, Pará, 21 de fevereiro de
1759. ABAPP, voL VIII (1913), p. 52.
(24) Antônio Rocha Penteado, Belém: Estudo de Geografia Urbana, 2
vols. (Universidade Federal do Pará, Belém, 1968), p. 109.
(25) O engenheiro italiano Antônio José Landi veio para o Brasil
para acompanhar a comitiva de demarcação de fronteiras. Gal. Aurélio de Lyra
Tavares, op. cit., p. 110
(26) Ver capitulo IV.
(27) Parecer do Conselho Ultramarino, de 25 de setembro de 1758.
AHU, Códice 239.
(28) Carta de José Pedro da Câmara a Mendonça Furtado, de 17 de
dezembro de 1765. Esse documento está apenso à planta 71 do Catálogo AHU-Iria.
(29) Projecto de novo apuzento p.a os Indios da Aldeya de S.
Miguel, 1765. AHU-Iria, n2 71.
(30) Planta de uma povoação na cachoeira Girão do rio Madeira
delineada pelo capitão-geral de Mato Grosso Luís Pinto de Sousa Coutinho, 1768.
In AHI-IA, na 75.
(31) Carta de Luís Pinto de Sousa Coutinho a Mendonça Furtado,
Fortaleza da Conceição, 30 de novembro de 1768. AHI, Lata 275, Maço 5, pasta 9.
(32) Isso foi registrado por Artur César Ferreira Reis em “Aspectos
da Amazônia na sexta década do século XVIII", in RSPHAN, vol. VIII (1944),
p. 68.
(33) Posturas e Taxas da Vila de Conde. Como citado ibidem, p. 70.
(34) Termo da Demarcação e Assignação do Terreno da real vila de
Monte-Mór o Novo da América, in RIC, vol. V (1888), p. 265.
(35) A recomendação foi emitida em 12 de abril de 1767. RIC, vol.
VII (1890), p. 106. Parece que essa ideia havia impregnado o pensamento de
muitos administradores portugueses. Por exemplo, em 1763 o governador do Pará
(Melo e Castro) emitiu um informe no sentido de que no futuro todas as
comunidades recebessem nomes, "como é de costume em povoações
civilizadas". Todas as casas seriam construídas com uniformidade e
retidão", e os funcioná-rios da câmara seriam encarregados de subdividir a
área da vila, que depois seria adjudicada em partes iguais aos habitantes.
Pará, 23 de janeiro de 1763, como citado in Ferreira Reis, op. cit., p.69.
(36) Ver "Termo pelo qual se assignou o districto d'esta vila
e o Patrimonio d'ella e para Rocio pasto commum dos gados dos seus moradores".
RIC, vol. VIII (1891), p. 269.
(37) Ibidem. Monte-Mor o Novo atualmente tem o nome de Baturité;
fica no Ceará, perto do rio Maranguape.
(38) "Instrução que levou o Capitão-Mor João Batista Oliveira
quando foi estabelecer a nova vila de S. José de Macapá", Pará, 18 de
dezembro de 1751. MCM, vol. I, p. 115
(39) A carta de Mendonça Furtado a Alexandre Metelo de Souza
Menezes, do Pará, 20 de dezembro de 1751, menciona essas expedições. MCM, vol.
I, p. 22.
(40) Carta de Mendonça Furtado à Coroa, Pará, 10 de abril de 1757.
BNL-CP, 162, fl. 19v.
(41) Correspondência de João da Cruz Diniz Pinheiro a Mendonça
Furtado, de 2 de abril de 1755. BNL-CP 624, fls. 64-65.
(42) Essa é a opinião de Manuel Bernardo de Melo e Castro,
expressa numa carta a Tomé Joaquim da Costa, datada do Pará, 30 de janeiro de
1760. ABAPP , vol. -VIII (1913), p. 126.
(43) Figura 11 - Planta da Villa de S. Jozé do Macapá, 1761.
AHU-Iria, ri2 24; Figura 12 - Planta Ichnographica das cazas... de S. José de
Macapá para os novos povoadores, 1759. MIGE, n2 1015.
(44) A esse respeito, ver Artur César Ferreira Reis, "Guia
histórico dos municípios do Pará", RSPHAN , vol. XI (1947), p. 286.
(45) Esse modelo de praça dupla foi visto pela primeira vez na Salvador
quinhentista; foi empregado reiteradamente no século XVIII.
(46) Por exemplo, Santos, op. cit., p. 62.
(47) Praça de S. José de Macapá,
1771, MIGE, n2 1227.
(48) Manuel Aires de Casal, Geografia Brasílica ou Relação
Histórico-Geográfica do Reino do Brasil (1817) (Edições Cultura, São Paulo,
1943), vol. II, p. 52
(49) Isso está concorde com a exposição contida em "Município
de Mazagão", ABAPP , vol. IX (1916), pp. 398-399.
(50) Sambucetti, de origem genovesa, trabalhou como engenheiro na
comissão portuguesa de fronteiras da Capitania do Rio Negro. Ver Lyra Tavares,
op. cit., p. 126.
(51) "Município de Mazagão", op. cit., pp. 403-404.
(52) Ibidem, op. cit., pp. 398-399. Mendonça Furtado emitiu essa
opinião a respeito de Sarmento.
(53) Ver Artur César Ferreira Reis, Território do Amapá: Perfil
Histórico (Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1949), p. 65.
(54) "Município de Mazagão", op. cit., p. 399. Colin M.
MacLachlan, op. cit., p. 218, registra que, em 1774, 19 aldeias indígenas
forneceram trabalhadores para fins de construção em Vila Nova de Mazagão.
(55) Ver a carta de Sambucetti ao governador Athayde Teive, de 13
de março de 1770, como citada em "Município de Mazagão", op. cit., p.
405.
(56) Figura 13A - Levantamento inicial da Vila Nova de Mazagão,
sem data. MU-CI, na 24; Figura 13B - Planta da Vila Nova de Mazagão,
aproximadamente 1800. MIGE, n2 1017.
(57) Ferreira Reis, op. cit., p. 66. Isso também consta no
"Município de Mazagão", op. ci t., p. 403. Ver também "Relação
das famílias que vão estabelecer-se na praça de Mazagão, por ordem de Sua
Magestade". IHGB, Lata 354, Doc. 16.
(58) Essa informação demográfica está contida na carta de Gama
Lobo de Almada (encarregado da comunidade), de 15 de dezembro de 1772, como
citada em "Município de Mazagão", op. cit., p. 413.
(59) "Município de Mazagão", op. cit., p. 412
(60) O programa de manutenção por um ano segue o modelo traçado
para as comunidades açoria-nas em 1747. Ver "Município de Mazagão",
op. cit., p. 412, n2 45.
(61) Ferreira Reis, "Guia histórico dos municípios do
Pará", op. cit., p. 289.
(62) Em seu relatório citado em "Município de Mazagão",
op. cit., p. 419 (sem data), Gama Lobo observa que em 1778 Macapá exportou
16.136 alqueires de arroz, Mazagão exportou 3.317 1/2, e Vila Vistoza, 2.230 (o
alqueire era uma medida de capacidade variável de uma região para outra; o
alqueire de Lisboa equivalia a 13,8 litros). Uma análise dos princípios dire-tores
econômicos durante a era pombalina pode ser encontrada em Kenneth R. Maxwell,
"Pombal and the Nationalization of the Luso-Brazilian Economy", in
HAHR, vol. XLIII, ri2 4 (novembro de 1968), pp. 608-663.
(63) Relatório de João Pereira Caldas a Martinho de Mello e
Castro, Pará, 5 de novembro de 1775. IHGB-CU, Arc. 1.1.3, pp. 352v-355.
(64) Eu diria que foram construídas pelo menos 35 vilas e
arraiais.
(65) Ver David Sweet, op. cit. et passim.
(66) Um relato sucinto do acontecimento e suas consequências pode
ser encontrado em Luís Soriano, História do Reinado de El-Rei D. José
(Typographia Universal, Lisboa, 1867), vol. II, pp. 92-93.
(67) Ver José Augusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo
(Livros Horizonte, Lisboa, 1965), p. 74. Salvo outras remissões, esta
explanação é baseada no excelente estudo de França.
(68) Figura 14A - Planta de Lisboa no século XVI, tirada de G.
Braun, Civitas Orbis. Terrarum; Figura 14B - Planta elaborada pelos arquitetos
Eugênio Carvalho e Carlos Mardel superposta a uru mapa de 1660 para a
reconstrução do Rossio. Reproduzida com autorização da editora de E. A.
Gutkind, Urban Development in Southern Europe: Spain and Portugal, vol. III:
Internacional History of a City Development (The Free Press, Nova York, 1967),
pp. 62 e 67.
(69) Consulta do Rei, Lisboa, 16 de setembro de 1756. Reproduzida
em Antônio Delgado da Silva, Supplemento à Collecção de Legislação Portugueza
(Typographia Luis Correa da Cunha, Lisboa), vol. 1750-1762, nota 413.
(70) Robert C. Smith, The Art of
Portugal. 1500-1800 (The Meredith Press, Nova York, 1968), p. 105.
(71) Por exemplo, pelo bairro do Rato. A Resolução do Rei datada
de 4 de agosto de 1767 exigia o realinhamento e a regulamentação de toda construção
futura em torno das cidades já existentes (sem especificar se isso também se
aplicava às colônias de ultramar). Delgado da Silva, op. cit., vol. 1763-1790,
p. 158. Depois dessa época, os portugueses empenharam-se na construção de novas
cidades em larga escala também na sua pátria. De acordo com Luís C. Moncada, Um
iluminista Português do Século XVIII (Saraiva e Companhia, São Paulo, 1941), p.
103,0 sábio português Verney propôs no final dos anos 1760que o governo criasse
novas cidades em estradas principais de tráfego intenso “para acelerar o
comércio”.
(72) Augusto França, op. cit., p. 85.
(73) E. A. Gutkind, op. cit., pp. 31-32 .
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