Albrecht
Wellmer --
Professor catedrático de filosofia da universidade de Konstanz, Alemanha.
Versão condensada de ensaio publicado em Artes –
1/1985, Frankfurt sobre o Meno.
Tradução: Frank Svensson
INTERPRETAÇÃO
III
–
Para a
metacrítica da razão da identidade lógica
Com a descentração
linguístico-filosófica do sujeito e a critica das objetivações dos significados
linguísticos destroem-se ao mesmo tempo as condições para a interpretação da
unidade do sujeito e o conceito identificador
corno os dois polos de uma consciência inicial instrumentalmente reificadora. Resta mostrar quais as consequências
dessa destruição das condições filosófico-conscientes
para urna critica do próprio pensamento identificador. Para Adorno (como para
Nietzsche) o próton peudos* discursivos
da razão reside na generalidade dos conceitos, ou seja; em que identificam o denominado outramente.
* Proton
pseudos – expressão em grego: a primeira mentira. Uma falsa condição da qual
decorrem outros equívocos. A frase de Schopenhauer afirmando que este mundo é o
pior deles é considerada como p. p. em sua filosofia.
A impressão de
identidade,
diz em Negative Dialektik, é
implícita.., ao próprio pensamento segundo sua forma pura.65 E a
forma pura do pensamento tem sua base na generalidade do conceito, o que
Adorno também caracterizou como acrescida
ou violada.66 A rigidez
do conceito geral, como Adorno a descreve, é, no entanto, em si urna ficção
racionalista. Wittgenstein observa que a gramática da nossa língua geralmente
nos mostra que as palavras podem ser usadas de muitas formas, sem que com isso
deparemos algum significado fundamental,
próprio ou primário. Wittgenstein emprega o termo familiar e a comparação com urna corda composta por inúmeros fios
para ilustrar como as diferentes formas de se usar uma palavra se intrincam
umas às outras. Essa multiplicidade de formas de uso refletem a abertura dos significados linguísticos a
que me referi. Poder-se-ia até afirmar que uma força mimética atua na vida do
significado linguístico, por meio do qual o não-idêntico na realidade --
parafraseando Adorno -- é refletido como algo não-idêntico nos significados linguísticos.
Com isso, o desprezo para convive,
para expressá-lo paradoxalmente, com a consideração do diferente de.
Adorno atribuía à língua força mimética, caso
contrário não poderia cobrar da filosofia um
esforço que permitisse por meio do conceito ir além do mesmo.67 De certa forma, a língua
sempre exerceu esse aparentemente paradoxal trabalho, ou melhor, aqueles que a
falam o exerceram. Mas se assim é, a cobrança de um uso reflexivo da língua,
não reificado e sem consideração,
fica menos paradoxal e desesperado do que em Adorno. Será algo em estilo com o
que cuidadosamente se poderia chamar de capacidade
de discernimento, imaginação e razão, sem com isso recusar uma utopia
conciliatória.
Isso é somente um primeiro esboço de uma metacrítica
que precisamos continuar a construir. Não é possível ignorar o significado dos
problemas que fundamentam a crítica de Adorno ao pensamento identificador; o
necessário é dominá-lo. A maneira correta de desenvolver uma metacrítica da
crítica conceitual de Adorno seria reformular os problemas que ativam a sua
filosofia. A seguir quero pelo menos dar algumas indicações concernentes a essa
problemática.
O que é preciso compreender -- ou melhor, decifrar em
seu sentido latente -- é o discurso de Adorno sobre o não-idêntico, que por meio da generalidade do conceito é reduzido a
um só exemplar, que passa a ter a sua integridade acrescida ou violada.
Adorno pensa também a violação do não-idêntico como urna inverdade da
compreensão conceitual. Nisso inclui o paradoxo de expressões linguísticas que
nós comumente chamamos de verdadeiras
e as classifica de não-verdadeiras.
Não que com isso o seu enfático conceito de verdade, o qual ele (à diferença de
Nietzsche) opõe à verdade da narrativa, não possa ser nitidamente relacionado
com aquilo que nós chamamos de verdade. Não se trata tampouco de afirmar o quão
injusto o conceito geral é para com o particular -- mais do que as
circunstâncias especificas, não é devidamente contemplado pelo uso dos signos
devido à generalidade dos con-ceitos. Nisso se pode ver uma falsificação da
realidade c -- como pensa Adorno -- uma injustiça para com o particular somente
quando de fora procuramos compreender a dialética entre o geral e o particular,
tal como se dá no âmbito do sentido linguístico, entendendo, por exemplo, a
língua como instrumento -- como se as
palavras fossem ferramentas com as
quais se pudesse agarrar a realidade,
como expresso em A dialética do
Iluminismo.68 Não relacionando as metáforas acréscimo e violação à
língua no seu todo, elas revelam um preconceito intencional quanto à esta;
trata-se mais precisamente, como é fácil de se constatar, de uma variante
naturalista da filosofia do sujeito formador de sentido.
O duvidoso em Adorno não é o paradoxal e o aporístico
de seus principais pensamentos, mas um resto de ingenuidade quanto à filosofia linguística.
Adorno reconheceu, é bem verdade, e acentuou várias vezes que a filosofia não
pode posicionar-se fora da língua para formular uma crítica do pensamento conceptual,
mas a ideia de uma crítica do conceito identificador pressupõe um tal posicio-namento
fora da língua. A filosofia de Adorno é um ataque à língua como limite da
filosofia do sujeito; sem saber revela tal segredo. O paradigma da filosofia do
sujeito para o conhecimento da realidade foi buscado -- desde Kant até o jovem
Wittgenstein -- na física matemática. A critica do pensamento identificador
censura consequentemente o conceito geral como tal, e, assim, censura a razão
discursiva pela relação interna entre teoria e técnica, entre conhecimento e
ação, ideias implantadas na gramática lógica das teorias físicas. Dessa forma,
pode parecer que o uso normal da língua comete a mesma violência sobre a
realidade histórico-social como na natureza de urna rede de relações
nomológicas, e que violenta justamente essa natureza. Essa constelação
fundamental do pensamento explica a perspectiva filosófica reconciliadora e
explica ao mesmo tempo as insolúveis aporias de sua filosofia: Adorno só pode
pensar a outra consciência instrumental longe da razão discursiva e só pensar a
ordem não imposta da sociedade numa natureza redimida em sua totalidade.
A consciência do caráter
natural do sujeito, que A dialética do Iluminismo exige,69 não é suficiente para
desmitologizar a idealista filosofia do sujeito. Primeiro a consciência de que
o caráter linguístico do sujeito pode quebrar o encantamento da filosofia do
sujeito e fazer aparecer a práxis comunicativa que fundamenta a base da vida do
significado linguístico, desde que o
representativo e o crítico são
somente imagens do sujeito conceptualmente "identificador" e
instrumentalmente ativo.7° Com isso arrancamos a base da crítica do conceito
identificador. Se queremos falar seriamente de uma relação entre os momentos violadores ou violentos, não-verdadeiros
ou genéricos em matéria de crítica linguística,
só pode ser questão de problemas dentro da língua. Dessa forma, os momentos de acréscimo e de violação não a sobrecarregariam sem um uso específico de conceitos
genéricos, e o não-verdadeiro seria
tomado por uma não-verdade da língua (e não como uma inverdade criada pela
língua). A critica de Adorno pode ser reformulada (e diferenciada) nesse
sentido se entendermos a violência no
pensamento identificador como bloqueios especificos, patologias ou perversões
na comunicação linguística ou na práxis da sociedade. Então e só então fica
claro em que sentido a generalidade dos significados linguísticos pode violar a
integridade do não-idêntico ou
ocultar o específico de um fenômeno. Somente quando trazemos de volta o não-idêntico existente dentro da língua
para um horizonte de práxis linguística intersubjetiva fica claro quando e em
que sentido a desproporção entre geral e específico pode implicar uma violação ou amputação do não-idêntico, e quais as perturbações, bloqueios e
limitações específicas da comunicação que são revelados em tais desproporções.
Na medida em que conseguimos nominar a injustiça que o uso reificador das generalizações e dos clichês linguísticos acrescenta
ao específico, mostramos implicitamente os recursos inerentes da língua que
podem ser usados para fazer justiça ao mesmo. Para explicitar isso quero
valer-me de três exemplos (ou tipos de exemplos), nos quais a questão da
desproporção entre o geral e o particular surge de diferentes formas.
1. A
experiência de carência lingüística em relação à experiência própria.
O limite da capacidade de comunicação da língua que
aqui enfrentamos certamente está ligado à generalidade e à intersubjetividade
dos significados linguísticos, os quais, por outro lado, são uma condição a
possibilidade de comunicação linguística (e auto compreensão). Aqui poderíamos
falar de uma carência linguística da própria língua. Adorno refere-se a algo
semelhante quando fala da desproporção entre opinião e conceito. O mesmo
acontece ao decisivo significado que Adorno atribui a todas as formas de uso
literário da língua e à objetivação estética como corretivo do uso discursivo
da língua. O uso poético, literário, retórico e configurativo da língua constitui urna ampliação produtiva da
capacidade de uso da língua, por meio da qual o indizível pode ser dito e
aquilo encapsulado na mudez da experiência individual torna-se disponível e
comunicável. Trata-se realmente de uma prestação paradoxal da língua. Por meio
da introdução da expressão lingüística no espaço da comunicação geral, essa se
torna algo mais do que meramente urna expressão individual: põe a nu um pedaço
de realidade comum. Assim como o exemplo de Wittgenstein quanto a impressões, o
"não-idêntico" na experiência torna-se comunicável pela expressão
intersubjetiva, ou seja, pelo fato de seu caráter privado ter sido expresso.
A investida
aos limites da língua é, nas expressões da arte, bem como nas expressões menos
significativas de nossa capacidade linguística produtiva, a resposta à sempre
renovada carência linguística da língua. Mas a língua, ou seja, a capacidade linguística,
compreende ambas: a possibilidade de o significado esvaziar-se e emudecer, bem
como de renovar-se e ampliar-se. Somente se, conforme Adorno, pensamos a
superação da carência linguística em termos messiânicos, ou seja, como a
conquista de uma língua verdadeira na
qual o próprio conteúdo revelar-se-ia,
nos recursos imanentes da língua, que vez por outra tornam fácil ou difícil
superar a carência linguística, revelar-se-iam desesperadamente inacessíveis.
Não se trata de contestar que nossa língua sub specie aeternitatis* é desesperadamente inatingível, mas de
verificar se pode fornecer um correto conceito sobre como nossa língua
realmente funciona e quais as possibilidades que permite.
* Expressão
em Latim: sob a forma eterna, ou seja, ver as coisas como qualificadas pela
essência divina, originadas eternamente de Deus.
A carência linguística em relação à experiência
própria é ao mesmo tempo uma carência linguística para com a realidade -- nesse
sentido a capacidade linguística produtiva a que me referi tem um significado
para a descrição da realidade, para o discurso moral e para a argumentação
filosófica. Adorno mostra, como ninguém o tinha feito antes, o significado da expressão e da representação para a filosofia, o significado do momento estético que não é ocasional para a filosofia.72 Adorno somente articula os
problemas na polaridade entre sujeito
e objeto, não conseguindo esclarecer
corno o problema da apresentação e o problema da verdade se interlaçarn. Tais
diferenças em problemas serão esclarecidos nos próximos dois exemplos.
2. Sobre o uso
"enriquecedor" e o uso "limitador" da língua, bem como o entrelaçamento
da inverdade com a injustiça podem ser vistos no conto Wittgensteins Neffe, de
Thomas Bernhard, que contém uma sugestiva narrativa:
Os chamados psiquiatras caracterizaram a doença de meu amigo
corno isso, como aquilo, sem a coragem de reconhecer que não há um nome
determinado para essa doença ou para qualquer outra, o que há são sempre
denominações errôneas, enganadoras, desde que eles e os demais médicos, por
meio de denominações hospitalares sempre errôneas, tornam a vida fácil e
criminosamente cômoda para si mesmos. Continuamente pronunciam as palavras
maníaco e depressivo, e em todos os casos sem razão. Continua-mente se refugiam
(como todos os outros médicos) em novos termos científicos (protegendo-se a si,
mas não aos pacientes).73
Escolhi essa curta citação de Bernhard por ser tão
plurivalente que permite associações de direcionamentos os mais diversos.
Poder-se-ia, de início, dizer que Bernhard descreve uma práxis psiquiátrica que
do ponto de vista cognitivo é acrítica e
do ponto de vista terapêutico é desumana.
Termos psiquiátricos são empregados para objetivar e classificar as pessoas
empurrando-as para as rotinas de tratamento. Continuamente refugiam-se... em novos termos científicos,
fazendo-nos pensar em falta de conhecimento específico encoberta com o emprego
de uma terminologia de diagnóstico superficial e ligeira, usada para defender a
autoridade do médico ou só por comodidade (criminosa),
ou seja, que os médicos por causa das eficientes
rotinas não se dão ao trabalho dos casos específicos. Os médicos no nosso
exemplo tornaram a vida fácil e
criminosamente cômoda para si mesmos, isto é, sua incompetência e
comodidade têm consequências criminosas. Ao invés de proteger os pacientes
(ajudá-los, engajar-se em seus problemas), protegem a si mesmos. As denominações hospitalares são falsas
pelo motivo de serem usadas impropriamente e para proteger a si mesmos. Sua
falsidade é parte de uma falsa práxis, que é falsa por divergir da obrigação do
médico. Numa tal práxis todas as denominações são falsas pelo fato de terem
sido empregadas falsamente.
Psiquiatria e medicina são naturalmente exemplos
arbitrários (mesmo se não para Bernhard) por nós escolhidos; poderíamos muito
bem haver falado de (exemplos buscados de) sistema judiciário, burocracia ou
bobagens corriqueiras. Mas fiquemos com a psiquiatria. Poder-se-ia pensar que
um outro uso de termos profissionais como maníaco
e depressivo (ou mesmo de termos mais
apropriados) não marcaria o fim das tentativas de classificação, mas sim o
início de um tratamento terapêutico. No primeiro caso, empregam-se os termos
profissionais psiquiátricos justamente como classificações de espécimes de frutas
e de legumes que devem ser sortidas para estocagem, no segundo caso, constituem
as primeiras tentativas a respeito do caráter e da etiologia de uni enfermo
fazendo com que a imaginação do terapeuta seja dirigida num outro sentido. No
último caso, a classificação serviria a uma primeira orientação de um processo
terapêutico, no qual se trata da concreta conquista de sua história. Não é
possível ver nas próprias palavras (ou frases) se são usadas de uma ou de outra
forma. Só no segundo caso há condições de corretamente formular perguntas sobre
a verdade ou a falsidade de previsões e suposições.
Poderíamos passar de classificações de pessoas e
doenças para a classificação de fenômenos socioculturais, por exemplo, obras de
arte. Há uma forma de classificar empregando conceitos de forma e estilo que
têm muito em comum com o uso de expressões profissionais e chavões quanto à
vida social. O conceito da forma das sonatas pode por exemplo ser usado
abrigando tudo desde Haydn até Beethoven e Schubert num mesmo escaninho, mas pode também -- junto a
outros conceitos de teoria da música -- ser diferenciado historicamente
permitindo uma frutífera análise individualizada (algo demonstrado de forma
inigualável por Adorno). Mas ao invés de arrastar associações deste campo para
o das ciências sociais e da cultura, retornarei à psiquiatria. Bernhard emprega
a palavra falso de uma forma que
lembra a caracterização feita por Adorno do pensamento
identificador. O não idêntico é aqui as pessoas individualmente e suas
histórias como doentes, violadas a ponto de impedir um tratamento comunicativo,
perdendo assim a possibilidade de reconquistarem
a si mesmas. As pessoas são coisificadas,
transformadas em meros exemplares e postas de lado. Assim se comportam os
médicos na narrativa de Bernhard, como
todos os demais médicos.
Aqui não nos interessamos pelas raivosas e injustas
generalizações de Bernhard. Podem ser lidas, no entanto, como observações de
que práticos da medicina coisificam os pacientes comportando-se
como instituições (também fora da psiquiatria). Como institucionalizados, esses
práticos da medicina adquirem um poder impenetrável, que excede qualquer
alcance moral. Todos os médicos --
não se trata mais de pessoas que agem incorretamente como indivíduos, mas de
membros de uma instituição que cumprem seus papéis preestabelecidos. (Marx
teria chamado de máscaras de caráter.)
Poder-se-ia falar ainda da institucionalização de
falsos usos da língua. No modernismo, tais institucionalizações são ligadas a
uma sistemática produção de conhecimento, a discursos institucionalizados das
ciências empíricas. Para captar todas as conotações da palavra falso em Bernhard necessitamos também
falar das ciências que fornecem o quadro cognitivo dos profissionais coisificadores. Isso nos leva de volta a
Adorno. Para ele os profissionais coisificadores
estão indissociavelmente ligados à reificação das pessoas pelas ciências. Uma
ciência humana é reificadora se toma
a física como ideal metodológico, pois então seu procedimento inclui as mesmas
relações entre saber e técnica da gramática lógica das teorias
da física. Consideremos -- hipoteticamente -- que uma ciência psiquiátrica
entendesse assim. Então a recusa de comunicação da qual Bernhard culpa os
médicos já estaria compreendida na língua e na técnica da psiquiatria. Nesse
caso a pala-vra "falso" não poderia ser entendida em Bernhard como
indevida em seu emprego como expressão específica e significativa da
psiquiatria, mas como caracterização de uma linguagem científica: seria falso em razão de suas regras de uso
normal já implicarem uma coisificação dos pacientes.
A partir do texto de Bernhard podemos, portanto,
pensar diferentes formas de uso indevido da língua tais que a inverdade das
afirmações está ligada à injustiça dos atos. O pensamento identificador é ligado aqui à recusa de comunicação e a uma
vio-lação da integridade pessoal. Não poderíamos, naturalmente, pensar uma tal
relação entre inverdade e injustiça se não entendêssemos o objeto da pesquisa corno interlocutor
potencial de uma comunicação linguística.74 Fatos sociais e psicológicos
só são em última instância acessíveis a partir de atitudes dos participantes da
comunicação. Nisso reside não só a base dos limites de uma possível objetivação
de fenômenos sociais e psíquicos, mas também um uso indevido de conceitos
genéricos (ou um uso de indevidos conceitos genéricos): em nível de declarações
pode manifestar-se corno inverdade e em nível dos atos e das atitudes como
violação do "não-idêntico". Não se trata aqui de desenvolver uma alternativa
da teoria científica empírica. Quero apenas afirmar: somente se, como Adorno,
encararmos o fisicalismo como uma objetivação anticomunicativa da realidade,
estabelecida já nos pressupostos de uma produção linguística da realidade,
podemos pensar que uma crítica de empregos
reificadores -- em estilo como o acima mencionado -- nos obriga a ir além
do conceito em seu nominalismo. Na realidade, obriga-nos somente a ultrapassar
um entendimento científico e linguístico dogmaticamente limitado.
3. Opressão do
sistema e raiva do não-idêntico;75 bloqueios da
reflexão.
A dialética do
Iluminismo reza que a lei da contradição é o sistema numa casca de avelã. A aparência de identidade, que segundo Adorno é implícita ao
pensamento conceptual, é ao mesmo tempo a imagem de uma ordem das coisas gerada
pela opressão sistêmica do pensamento conceptual. Adorno entende a opressão
psicológica do sistema corno correlação do princípio
do eu, obrigação de formar um eu unitário. À luz da opressão sistêmica
revela-se o não-idêntico, o incomensurável, o inordenável, como ameaça: fúria e
medo são formas típicas de reagir à experiência do não-idêntico. O não-idêntico
deve ser evitado, afastado (corno no processo de socialização), ser visto como
tabu (como nas sociedades primitivas),76 renegado (como em todas as formas de dogmatismo) ou
psiquicamente eliminado.
Para Max Weber, o processo de racionalização no mundo
moderno é, em grande parte, um processo de sistematização, tanto no nível do
conhecimento corno no da ação. Essa ideia de Weber sobre urna relação prática e
teórica entre racionalidade e sistema foi adotada por Adorno, mas de certa
forma com indicações inversas: Adorno acentua a loucura na opressão sistêmica.
Não só sistemas paranoicos, ideológicas visões
de mundo e burocráticos modelos de ordem são vistos por Adorno como
loucura; ele encontra momentos de loucura e paranoia também nos sistemas
filosóficos. Em Adorno, a critica do pensamento
identificador torna-se uma critica da razão totalizante, e a sua própria
filosofia torna-se uma tentativa de desembaraçar-se da opressão sistêmica do
pensamento conceptual.
Agora, novamente, é cabível, dentro do quadro de
modelo unidimensional da relação sujeito-objeto, responsabilizar o caráter
discursivo do pensamento conceptual pela rigidez do sistema. Adorno pensa a
palavra discursivo monologicamente:
ele pensa infraestrutura e argumentação segundo o modelo de um contexto de
frases dedutivo. Por isso é forçado a reinterpretar as idealizações que estão
na base da lógica formal -- ou seja, a aceitação idealizada de significados fixos -- como uma característica dos
próprios conceitos. Para ele a rigidez do sistema dedutivo reside no próprio
conceito. As explicações psicológicas da opressão sistêmica dadas por Adorno são,
no entanto, mais convincentes do que aquelas lógico-conceptuais. Não menos, a
descentração lingüístico-filosófica do sujeito exige o reconhecimento de que o
caráter discursivo do pensamento conceptual não pode ser plenamente
caracterizado em termos de uma relação dedutiva entre frases. À argumentação é
inerente não só oscilar entre conceito e coisa, mas também oscilar entre um
conceito e outro quanto à coisa. A argumentação, que segundo seu conceito tem
vários sujeitos participantes (mesmo quando esteja interiorizado corno
reflexão, não carece somente de relações dedutivas linearmente estabelecidas
entre frases, mas também de significados fixos.
À medida a que distintos enfoques, atitudes e empregos da língua colidem entre
si e são postos em questão na argumentação, esta ganha uma dimensão
"formadora de significado", e a vida do significado linguístico
assume uma forma reflexiva dentro da mesma. Eu gostaria de dizer: mesmo se uma
dimensão de identidade lógica é
essencial para a argumentação (assim como para a fala em geral), não se
compreende o especificamente racional na argumentação se a reduzirmos a essa
dimensão teórico-cientifica. É justamente isso que se tem mostrado na mais
recente discussão teórico-cientifica. Nem mesmo a racionalidade nos avanços
científicos da física pode ser entendida por meio de um modelo formal de
racionalidade de argumentação. Nesse sentido poder-se-ia acusar Adorno de haver
tornado a si um conceito racionalista da razão discursiva, e somente por isso a
sua crítica da razão totalizante torna-se uma crítica da razão discursiva.
A fúria contra o
não-idêntico que se expressa na opressão
pelo sistema não é expressão de racionalidade discursiva mas, pelo
contrário insinua uma falta de racionalidade discursiva. Tal falta de
racionalidade discursiva se expressa como incapacidade e bloqueio de
argumentação. Falei de bloqueio da reflexão
por reunir a incapacidade de experiência (de engajar-se na coisa ou na
realidade) e a incapacidade de autocorreção. Esse rígido sistema é
correspondido por um rígido eu — nisso Adorno estava certo. Mas não é preciso
sair da razão discursiva para, corno Adorno tentou, imaginar uma coerência fora da opressão do sistema,77 uma forma de individuação
além da rígida opressão da identidade. A perspectiva normativa de uma unidade
livre de opressão é praticamente inerente às bases linguísticas da razão
discursiva.
O conceito de Adorno sobre a razão discursiva
assemelha-se àquela imagem da razão delineada pelo limitado cientificismo
iluminista. Apresenta-se em Adorno com indicações invertidas. Enquanto o
iluminismo cientificista extrai de dentro da matemática e do paradigma da
matemática a sua imagem afirmativa da razão, a ciência natural matemática e a
própria matemática tornam-se paradigmas de uma racionalidade que reifica sob forma do discursivo.
Descentrando-se linguisticamente o sujeito, tese
e antítese também ficam erradas. Isso
implica ao mesmo tempo uma desmitologização (ou desdiabolização) da lógica
formal, da matemática e da física. A
sua racionalidade não corresponde à imagem que o iluminismo cientificista havia
configurado a respeito das mesmas. Matemática e física também são ligadas a
sistemas de signos linguísticos, cujo significado só pode ser formado.
estabilizado e modificado por meio de uma práxis comunicativa. Eles também
pedem profissionais de perfis imprecisos,
o que se evidencia em crises de identidade. A física é por certo o protótipo da
maneira de pensar objetivante. Pelo fato de construir
e pesquisar a realidade como uma rede de contextos nomológicos, abre ao mesmo
tempo um campo para possíveis intervenções instrumentais e controle técnico.
Mas como objetivante, a física não pode ver seus fundamentos como
não-objetivantes, sua base numa práxis histórica. Da mesma forma que a lógica
formal se abstrai da vida do sentido linguístico, a física se abstrai da
dimensão comunicativa da práxis humana. É, por assim dizer, conhecimento sobre
a realidade sub specie aeternitatis
um sujeito singular. Daí o papel central do sujeito singular na filosofia dos
novos tempos. Mas o cientificismo não foi estabelecido na física, mas sim na
filosofia do sujeito, e a crítica do pensamento identificador é de certa forma
cientificismo com sinais trocados. Reprova o conceito por aquilo que uma
metafísica que despreza a língua lhe ocasionou. O fato de o que realmente
interessa não poder ser dito nem segundo Adorno nem segundo o jovem
Wittgenstein (mesmo se a filosofia depois de Adorno contra Wittgenstein insiste
em dizer o que não é possível dizer78 liga-se ao fato do sujeito não poder existir sob as
premissas da filosofia do sujeito como o limite do mundo fisicamente
objetivável.79 Dessa forma a tentativa de
ultrapassar os limites da consciência instrumental torna-se urna tentativa da
filosofia aporética (de aporia) de por
meio do conceito ir além do conceito.80 Adorno só pode pensar que a
parte da razão verdadeira que
ultrapassa o instrumental -- ele a classifica de mimese -- se encontra fora da esfera do pensamento conceptual. A
descentração linguístico-filosófica do sujeito não implica entretanto a
demonstração de uma dimensão mimético-comunicativa no interior da razão discursiva. A razão discursiva sempre foi mais do
que lógico-formal, razão instrumental e opressão do sistema. Por isso as suas
potencialidades imanentes só precisam ser liberadas para pôr a razão
instrumental em xeque e dissolver a falsa imagem da totalização.
A crítica filosófico-linguística do subjetivismo
possibilita uma diferenciação da
crítica da razão lógico-identificadora que também implica uma relativização. O
que resta é um fulcro relativo na crítica do pensamento identificador que diz
respeito à própria posição da filosofia. A definição da filosofia de Adorno --
que o esforço cabe aquele que por meio do
conceito ultrapassa o conceito -- permanece válida num certo sentido mesmo
depois que o seu conceito de conceito identificador
é posto em questão, Com isso referimo-nos ao ponto em que o pensamento de
Adorno coincide com o de Wittgenstein, mesmo o do Wittgenstein tardio. Não se
trata mais da utópica perspectiva de uma razão transdiscursiva, mas do caráter impróprio do discurso filosófico, da
relação entre falar e mostrar em filosofia. A filosofia mostra
aquilo que evita um enunciado linguístico -- não porque o específico evite a
generalização conceptual, mas pelo fato de a filosofia tematizar a própria
relação entre o específico e o geral, entre a língua e o mundo. Ao mesmo tempo,
a filosofia trata da questão de como entendermos a nós mesmos como seres
falantes. Juntamente com a relação entre língua e mundo, o problema da
racionalidade constitui o principal tema da filosofia. Mas o objetivo da
filosofia não é nem demonstrar opiniões sobre a realidade nem fundamentar
normas morais, mas evitar confusão, lembrar o já sabido (Wittgenstein) ou
lembrar o esquecido (Adorno). O entendimento para o qual a filosofia aponta é o
de se localizar acertadamente o que
fazemos com a língua e o que somos por meio da língua. As descrições da
filosofia, suas explicações, argumentações e exposições visam a esse intuito.
Mas essas descrições, explicações, argumentações e exposições valem-se de uma
linguagem objetivante que emudece ante o tema da filosofia que não é
objetivável -- da mesma forma como os significados linguísticos não o são -- os
quais não por acaso passaram a constituir um tema central na filosofia
contemporânea. Isso não implica que as sentenças filosóficas sejam falsas ou
sem sentido; implica, pelo contrário, que o uso correto de frases filosóficas é
impróprio. As sentenças filosóficas cumprem seu objetivo quando chegamos ao
ponto de ver as coisas com clareza. Querem mostrar o que dizem. Por isso,
parafraseando Adorno, a filosofia não é
indiferente e superficial quanto à exposição ... pelo contrário, é imanente em
sua ideia;81 por isso é essencialmente impossível de ser referenciada
e por isso comporta a ideia de
sistema filosófico -- literalmente sistema cognitivo -- um mal-entendido
filosófico quanto à própria natureza da filosofia.83 Na filosofia deparamos realmente, como pensou Adorno, o
limite do conceito, mas só filosofando consideramos os limites da língua e não
nos encontramos inteiramente dentro da língua ou -- como talvez quiséssemos --
além de seus limites.
Tenho examinado a crítica da lógica identificadora e totalizante
encontrada em Adorno pelo fato de parecer ser o mais importante defensor da
mesma. A critica pós-modernista da razão totalizante difere naturalmente
daquela de Adorno por meio da decidida recusa de uma filosofia de
reconciliação. Nisso reside somente uma imaginária vantagem sobre Adorno. Nele
a perspectiva filosófico-reconciliadora implica não menos uma defesa da razão
contra o irracionalismo, um interminável esforço dialético para na má razão
descobrir rastros de uma melhor. A metacrítica da crítica do pensamento
identificador mostra que tais rastros são mais nítidos e difíceis de apagar do
que Adorno quis reconhecer: não é preciso nenhuma esperança messiânica para
aclará-los.
Mas se abjurarmos a esperança messiânica quanto ao
absoluto sem ao mesmo tempo revidar o caráter absolutista da crítica racional,
uma crítica da razão totalizante só pode desembocar em afirmação, regressão ou
cinismo. O exemplo de Adorno mostra na realidade que a descentração do sujeito
torna necessária uma relativização da
crítica racional: a crítica da razão totalizante não atinge mais a razão
discursiva como tal, mas um emprego incompleto, imperfeito ou pervertido da
razão. Relativização não implica necessariamente atenuar, quer dizer que mais
ou menos delineamos os limites dentro dos quais a crítica racional faz sentido
sem reverter em metafísica ou cinismo. Isso implica dar uma nova chance à razão
e ao sujeito. Tal possibilidade não pode naturalmente ser do tipo que o
iluminismo racionalista profetizou para o sujeito e a razão. Mas que tipo de
possibilidade então seria? Com essa pergunta retorno ao terna sobre o moderno e
o pós-moderno.
N o t e s :
65. Ver Negative
Dialektik, op. cit., p. 17.
66. Ibidem, p21.
67. Ibidem, p 27.
68. Ver Upplysningens
dialektik (A dialética do Iluminismo), op. cit. p. 56/69.
69. Ver ibidem, p. 57.
70. Este é também o pensamento capital na crítica a Adorno
feita por Jürgen Habermas (ver principalmente J. Habermas, Theorie des Kommunikativen Handelns [Teoria dos atos
comunicativos].). Frankfurt sobre o Meno, 1981, vol. I, p. 489 e a seguir,
principalmente p. 522 e a seguir. Habermas descreve os limites da filosofia do
sujeito da seguinte forma: "Como
'objeto' a filosofia do sujeito vê tudo o que se pode imaginar como sendo; como
'sujeito' vê antes de mais nada a capacidade de objetivamente relacionar-se com
tais entidades no mundo e - teoricamente ou praticamente - dominar os objetos.
Os dois atributos da consciência são imaginação e atuação... Essas duas funções
da consciência estão intrincadas uma à outra: o conhecimento objetivo é
estruturalmente ligado à possibilidade de intervenção no mundo como intervenção
objetiva; e a ação consciente exige por seu lado conhecimento do contexto no
qual intervém" (ibidem, p. 519). Com Habermas poderíamos, no entanto,
caracterizar o surgimento de uma dimensão comunicativa da língua em que por
meio da relação simétrico-performativa entre sujeito e sujeito se obtém a mesma
importância que entre sujeito e objeto. A objetivação da realidade indica uma comunicação
interna à língua. Por trás da instrumentalmente ativa estrutura monológica da
língua surge, assim, uma complicada estrutura dialógica: dois sujeitos fazem-se
compreendidos a respeito de algo no mundo. A gramática para os pronomes
pessoais na primeira e na segunda pessoa do singular refletem a relação
simétrico-performativa entre orador e ouvinte numa conversa
"comunicativo-orientada". Fatos objetivos só podem existir num espaço
de tais relações entre potenciais oradores e ouvintes - donde as relações
gramaticais entre primeira, segunda e terceira pessoas refletem as condições
especificas de objetivação de fatos sociais,
71. Theodor W. Adorno, Fragment
Ober Musik und Sprache (Fragmentos sobre música e língua), em Gesammelte Schriften (Obras reunidas).
Vol. 16, Frankfurt sobre o Meno, 1978, p. 252.
72. Ver Negative
Dialektik, op. cit., p. 26.
73. Thomas Bemhard, Wittgensteins
Neffe (O sobrinho de Wittgenstein), Frankfurt sobre o Meno, 1982, p. 13 e a
seguir.
74. Ver a teoria de Habermas sobre a ação comunicativa como
um desenvolvimento sistemático desse pensamento. Meu argumento contra Adorno é,
no entanto, independente da sistemática na teoria linguística de Habermas.
75. Ver Negative
Dialektik, op. cit., p. 34.
76. Ver Mary Douglas, Purity
and danger (Pureza e perigo). Londres, 1966.
77. Ver Negative
Dialektik, op. cit., p. 34. O pensamento de Adorno gira sempre em torno da ideia
de uma unidade livre de opressão - como forma de conhecimento, como forma de individuação
e como forma de solidariedade social. Expressões como a coerência do não-idêntico e conceito
livre de opressão expressam tal idéia. O problema mais agudo de Adorno é
possivelmente a questão sobre como ambas as formas de unidade -- por um lado a do conceito e a obrigação de identidade
e sistema do eu-princípio, e por
outro lado a coerência do não-idêntico -- podem ser relacionadas uma à outra.
Em duas mudanças típicas em Negative
Dialektik consta: Unidade e
concordância são, no entanto, a tênue projeção de urna situação reconciliada,
não mais antagônica, das coordenadas de um pensamento senhorial (p. 35). E:
A concepção do sistema lembra, de forma
distorcida, coerência do não-idêntico, que foi violada pela sistemática
dedutiva (p. 36). Tais formulações comportam ao mesmo tempo a defesa de
Adorno da razão discursiva contra o irracionalismo (ver ibidem, p. 20). Mas a
filosofia de Adorno carece do grau de
liberdade conceitual necessário para responder à questão por mim colocada.
78. Ver Negative
Dialektik, op. cit., p. 21.
79. Ver Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, Lund 1982, p. 632.
80. Ver Negative
Dialektik, op. cit, p. 27.
81. Ibidem, p. 29.
82. Ibidem, p. 44.
83. Ibidem, p. 33 e a seguir.
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Segue parte V