Albrecht Wellmer -- Professor catedrático de filosofia da
universidade de Konstanz, Alemanha.
Versão condensada de ensaio
publicado em Artes – 1/1985, Frankfurt sobre o Meno.
Tradução: Frank Svensson
INTERPRETAÇÃO I
Lyotard em seu trabalho Das Erhabene und die Avantgarde (O
sublime e a vanguarda), Mercur 424, março de 1984, pp 15 e seguintes mais uma
vez abordou o tema da estética do sublime.35
Junto a Kant apresenta Burke como
a testemunha capital da vanguarda estética e elabora principalmente o
significado estético ativo de sua estética do sublime. Dessa forma fecha
surpreendentemente o circulo de suas teses anteriores sobre a necessidade de
substituir a semiótica pela energética.
Invocando Burke, Lyotard liga a ideia de que a arte busca tornar visível algo
que não pode ser visto com a ideia de que a arte ao mesmo tempo atualiza e
condena o terror do nada, a ameaça de que nada mais acontece. O efeito da arte,
e ao mesmo tempo seu intuito, consistiria em intensificar a sensação de vida.
Mantendo tal ameaça a distância, a arte gera uma sensação de alivio, de alegria
e de prazer. Graças à arte, a alma e impelida à agitação, ao movimento entre
vida e morte, e tal agitação constitui sua saúde e vida.36
A arte como código (no sentido de
decifrar) para o absoluto invoca e condena ao mesmo tempo o absoluto terror do
nada. Dessa forma aumenta a sensação de vida. O
sublime não é uma questão de elevação ... mas sim de intensificação.37
Como em Adorno, a arte em Lyotard
é antes de tudo uma coisa, mas disso
Adorno e Lyotard parecem tirar conclusões diametralmente opostas. Para Adorno,
a experiência estética tem de ser filosoficamente esclarecida para que o seu
significado, seu conteúdo de verdade, não se perca. O sentido da arte não é o seu
efeito emocional, mas o conhecimento por meio e além de seus efeitos. Para
Lyotard, o sentido da arte não é captar o que significa, mas por força do que
alude provocar sentimentos sublimes. No conceito avangardista de arte de
Lyotard, semiótica realmente foi
substituída por urna energética,
mesmo se baseando numa estética do sublime.
Tanto em Adorno como em Lyotard
dá-se uma interessante redução da dimensão semiótica da arte ao preço de se
fazer distinção entre semiótica e energética -- em Adorno num espírito de pura
estética da verdade, e em Lyotard num espírito de rigorosa estética de efeito.
A tarefa devia ser outra, a de reunir semiótica e ener-gética, o significado e
o efeito da arte de forma a que uma absolutização de um lado não levasse à
eliminação do outro. O objeto estético seria compreendido como um campo de
força e tensão ao nível do sentido e como um contexto de sentido tal que a
vivência se assemelhe a urna irradiação de energia -- arte como uma segunda
natureza, mas uma natureza que começa a falar. Essa mistura de toda sorte de
metáforas talvez pareça estranha, mas pode provavelmente servir de orientação
para as próximas considerações.
Iniciemos pela dimensão
semiótica. Falar de uma dimensão semiótica da arte implica afirmar que há algo
por entender na arte. Em se tratando de um entendimento estético específico,
não pode ser um entendimento (pragmático) das palavras e das frases de um texto
literário ou das coisas num quadro. O entendimento estético concerne à
configuração dos elementos na pintura, a
lógica de seu contexto interior. Na arte tradicional o entendimento
estético tinha uma base relativamente tranquila na compreensão de uma língua -- vocabulário, sintaxe e
convenções a respeito de forma e expressão. Mas depois que a arte moderna em
sua cruzada de crescente negação do
sentido arrasou ou dissolveu os elementos de significação da produção
estética ou os fez ir pelos ares, o entendimento estético tornou-se um problema
prático de grandes proporções, enquanto a conversa sobre o entendimento
estético se tornou cada vez mais duvidosa.
Poder-se-ia, para usar uma
expressão no espírito de Lyotard, dizer: desde que a questão do entendimento
estético por meio da negação da representação veio à luz em forma pura
percebe-se não se tratar de uma questão de entendimento,
pelo menos no que tange à arte. As criações estéticas consequentemente não
teriam nenhum sentido como tal a ser compreensivamente desnudado. Contra isso
quero apresentar a tese de que tal recusa do conceito de entendimento estético é
tão sem atitude como a tese complementar do antigo positivismo lógico é
destituída de consistência cognitiva, corno má e fantasiosa poesia. Mas o que é
que entendimento estético seria se não pode ser reduzido à compreensão de
elementos significativos, à compreensão de mensagens ou à compreensão da intenção do artista? Adorno deu uma
resposta a essa questão, uma resposta na qual a ligação entre semiótica e energética já se anuncia. A respeito do conceito de entendimento
estético ele diz o seguinte:
se isso deve indicar algo adequado e
correspondente à coisa, dever-se-ia hoje imaginá-lo como algo a seguir, a engajadamente
recriar os processos objetivamente enrijecidos na obra de arte. Não
compreendemos uma obra de arte ao traduzi-la em conceitos, somente quando nos
encontramos dentro de seu movimento imanente-- eu diria quase que tão logo o
ouvido compusesse novamente segundo sua lógica própria, o olho a pintasse e os
órgãos da fala a falasse.38
Adorno descreve o entendimento
como parte da frutífera experiência estética. Na experiência estética
confrontamo-nos com obras que nos tornam abertos ou fechados, que nos incluem
em seu movimento ou nos excluem do mesmo, que nos fazem participes da tensão criadora
ou viram os nossos olhares para trás. Trata-se realmente da lógica ou do sentido da imagem e não só de uma aprovação ou reprovação, evidenciasse pela forma como o entendimento
estético articula-se e manifesta-se: em explicação, em crítica e em comentário,
em reprodução, em encenação, ou recitação, e finalmente numa produtiva -- transação de experiências estéticas -- o
que abrange desde pequenos aumentos da nossa capacidade de ver, compreender e
comunicar em favor da produção de novas obras.
A caracterização por Adorno do
entendimento estético é fenomenologicamente correta, mas incompleta. Aqui, como
sempre, o próprio entendimento não pode ser confundido com a sensação de
entendimento; só é possível ser captado em suas expressões. Essas se manifestam
no espaço das comunicações, após o que se torna possível uma luta com
argumentos em torno da compreensão ou da incompreensão ou, o que dá na mesma,
em torno do sucesso ou do insucesso da encenação da obra de arte. Disso dá
testemunho a existência de uma crítica de arte e de uma crítica literária.
Mencionei um aumento da nossa
capacidade de prever, de tornar compreensível e de comunicar como uma
manifestação do entendimento estético. Não por acaso, isso lembra Kant, que já
tentava captar essa mencionada combinação de uni momento semiótico e outro energético,
do entendimento estético, no conceito de prazer estético reflexivo. A
compreensão de Kant consiste, traduzida para nossa maneira de contemplar, em
que um alargamento da capacidade cognitiva, emocional e perceptiva não é
somente um efeito do entendimento estético mas ao mesmo tempo urna condição
para o mesmo. A obra de arte ultrapassa nossas costumeiras previsões e formas
de pensar, abrindo para nós um novo sentido. Somente chocando, ou comovendo ou
pondo-nos em movimento torna-se compreensível para nós. Efeito estético e
entendimento estético só existem em ação recíproca; um não existe sem o outro.
Nessa perspectiva, a crescente
negação do sentido -- respectivamente da representação -- na arte moderna não
pode ser entendida como o movimento irreversível da arte rumo a seu puro
entendimento, o que a afastaria da língua significante e da manifestação
representativa. Além da língua e da representação, a arte só poderia ser
pensada em termos de um elevado sentido (Adorno) ou não-sentido, isto é, de
pura energia (Lyotard). Acontece que a arte não é nem uma coisa nem outra.
Melhor é dizer que alarga os limites do sentido, para aquilo que é possível
dizer e representar e assim também os limites do mundo e do sujeito. Mesmo, ou
justamente no radical solapamento do sentido na arte moderna, a obra de arte
constitui um potencial para um tal alargamento dos limites do sentido e do
sujeito. Pelo fato de a síntese estética elevar o nível dos componentes
cognitivos, da sintaxe e da gramática do literário, do pictórico e do musical,
liberam-se as energias explosivas que estiveram trancadas dentro da rígida
gaiola do sentido quotidiano, os quais, de outra forma, somente se manifestam
no sonho, na anedota e na psicose.
Por meio dessa liberação, põem-se
à disposição do sujeito -- entram por assim dizer no mundo do sentido.
Correspondem também à lógica do sonho, e com isso a uma arcaica e sepultada
dimensão do sentido quotidiano, quando por exemplo a diferença entre som, palavra,
imagem e texto é questionada, ou seja, a diferença entre articulação
expressiva, timbre, coloração e significado convencional, ou entre discurso
fixado em texto e exposição figurada. É bem verdade que a língua falada é
audível, mas só as crianças entendem melhor o sentido de um texto se o lerem em
voz alta. Somente poesia é necessário ouvir em voz alta para ser plenamente
apreendida; ler poemas em silêncio é como ler partitura; somente uma desenvolta
imaginação auditiva torna a audição literalmente desnecessária. Romances, por
outro lado, podem ser lidos em silêncio; no caso, a diferença aproxima-se
àquela entre o intercâmbio quando da recepção auditiva e aquilo que para o
leitor normal em leitura silenciosa é percebido como o limite zero da mesma.
Obras literárias avançadas como Finnegans
Wake devem, pelo contrário, tanto ser lidas, vistas, como ouvidas; seu sentido auditivo só é captável por meio
da leitura em voz alta. Para o leitor em silêncio, o texto fecha-se se excluído
da dimensão sonora da língua. Mas à diferença da poesia não é suficiente
somente ouvir o texto: a evidência de distintas associações está embutida, qual
charada, na imagem da língua e tem de ser descoberta com o olho. Dessa forma o
texto é ao mesmo tempo imagem e partitura. e através de um meio artístico - o
do romance - e a divisão dos ramos artísticos, arte visual, música e poesia,
com raízes na diferença entre som, imagem e tonalidade, perde sua força.
No caso Finnegans Wake o distanciamento dos limites tradicionais da arte e
da receptividade artística é ainda maior. Nem mesmo a caracterização por Adorno
do entendimento estético é adequada por ainda partir do modelo de um recipiente
que em si naufraga no objeto e que com o envolvimento é recriado. Muito indica
que no caso Finnegans Wake não cabe
uma recepção linear e totalizante -- é como se a diferença entre recitação,
contemplação estética e comunicação não mais pudesse ser mantida perante um
público. Só numa leitura polifônica e comunicativa são liberadas as energias
estéticas do texto. Isso foi apropriadamente narrado por Robert M. Adams em
recente artigo:39
Finnegans Wake é uma excepcional obra literária que se lê melhor em
grupo do que individualmente. Pede a leitura polifônica e comunicativa que o
apóstolo Paulo menciona em I Coríntios 14:26: Que fareis, pois irmãos? Quando vos congregares, cada um tem um psalmo,
tem ensino, tem revelação, tem língua, tem interpretação: que tudo se faça para
edificação. Estudada por um grupo afim, desenvolve seu próprio rumo e
tempo, primeiro cuidadosamente, experimentando, depois de forma explosiva. O
pensamento move-se através e em torno do texto em círculos, correntezas,
redemoinhos, águas calmas, e surpreendentes e abruptos saltos. O livro choca os
nossos hábitos: pilhas de contenções linguísticas profundamente arraigadas e
aparentemente sedimentadas são sacudidas c desmontadas. Em obras com Finnegans Wake o conceito de sentido
estético global tende a ser impossível. A totalidade
da obra reduz-se a um horizonte idealizado que só é entendido em fragmentos e
assim, como observou Klaus Reichert,40 numa
múltipla totalidade. Poderíamos classificar a obra de pós-moderna no sentido inicialmente apresentado. Contempla, ainda,
o dizer de Ezra Pound: Grande literatura
é, em última instância, língua carregada de sentido 41 -- uma definição que já aceitava o fato
de os momentos semióticos e energéticos atuarem reciprocamente. Essa
ação recíproca dos momentos semióticos e energéticos implica não menos que a
obra de arte pode perder energia, e
pelo menos temporariamente apagar e esfriar. Essa é a forma de morte própria da
arte. A mortalidade da arte é tanto mais perceptível quanto mais ligada estiver
a um acontecimento, mas mesmo a obra de arte como tal tem um quê de
acontecimento: comportamentos c experiências estéticas são únicos e não se
repetem. Até no processo de sua assimilação unia obra de arte poderia apagar e
mostrar-se como restos de algo que se queimou. Sobreviveria no modo de reação e
percepção de novas obras. A partir dessas um olhar pleno de vitalidade pode ser
lançado sobre obras há muito desfalecidas, as quais assim se encheriam de vida.41 Um pensamento que
naturalmente só contém metade da verdade por ser inteiramente energético. Em
sua declaração de que crítica é a mortificação
das obras, Walter Benjamin detém a outra metade da verdade:
A mortificação das obras -- não o
ressuscitar romântico das vivas, mas o injetar conhecimento nas mortas. Beleza
permanente decorre de conhecimento, e mesmo que seja duvidosa a afirmação,
persiste que sem algo que se mereça saber não há nada belo... E função da
crítica filosófica mostrar ser justamente esta a função da arte: transformar o
teor historicamente objetivo em teor de verdade filosófica.43
Benjamim percebe, assim como
Adorno depois dele, a efemeridade da verdade estética do belo. Isso também é só
a metade da verdade. A concentração de verdade na obra de arte constitui
somente um momento do consumo, a
assimilação das obras, e implica mais do que uma apreensão filosófica de um
teor de verdade filosófica.
Poder-se-ia entender esse
processo de consumação como uma incorporação, uma absorção quase que de sentido
somático, ou seja, uma absorção que tanto afeta olhos, ouvidos, nervos e órgãos
dos sentidos. como a compreensão intelectual. Que cidadãos interessados
literalmente consumiram, ou seja, pilharam a escultura de pedras de basalto que
Josef Beuys erigiu na Friedrichsplatz, em Cassel, quando da exposição Dokumenta7, transportando-as
e amontoando-as no chão perto de um recém-plantado carvalho,44 poderia ser visto como urna
alegoria sobre a arte como tal.
Quem quiser guardar a obra de arte de Beuvs
como um monte de pedras com uma das pontas apontando para um carvalho
recém-plantado impede seu efeito. Mas garantir seu efeito é fazê-la
desaparecer.45
Nesse sentido, algumas tentativas
avangardistas de derrubar as barreiras entre arte e vida podem ser entendidas
como demonstrações alegórico-provocativas da forma de existência da arte:
lembranças de que a obra de arte como neutralizado produto cultural deixou de
existir.
Tenho trazido à lembrança o
complexo intrincado dos aspectos semióticos e energéticos contrapondo-se a que
a estética modernista (ou pós-modernista) apressadamente e unilateralmente se
prenda a uma crescente negação da representação como critério de arte avançada.
A arte não é o alter-ego da razão ou
do sentido, nem é tampouco um sentido puro ou uma razão pura em sua forma de
verdade. A arte é. antes, sentido condensado que foi posto em movimento e
carregado de novas e ocultas energias. Não é contra o terror dos signos, dos
sentidos, do pensamento representado ou da verdade que a arte polemicamente se
opõe, mas contra o terror do sentido estabelecido e petrificado -- só nessa
perspectiva se apre-senta como sem sentido als
Un-Sinn.
Acorrentar a arte numa crescente
negação do sentido comporta novamente e implicitamente urna construção linear
do desenvolvimento da arte. Um tal desen-volvimento linear termina necessariamente
no nada, algo que para Adorno estava claro. Uma arte depurada dos últimos
traços de significação, representação e sentido torna-se impossível de distinguir
de um ornamento qualquer, uma zoada sem sentido ou uma construção meramente
técnica. Arte implica na realidade um adensamento de sentidos para como que
incomodar ou negar sentidos desvanecidos. Algo válido tanto para arte moderna
como arte no sentido tradicional do termo. Portanto, se queremos ligar a arte
moderna a um impulso pós-modernista, teremos de fazê-lo de forma diferente da
de Lyotard. Finnegans Wake foi um
primeiro exemplo e voltarei a referir-me a ele. Mas antes disso quero abordar a
questão a partir de um outro ponto: procurarei a seguir abordar o tema capital
do pós-modernismo, a critica da razão totalizante.
N o t a s :
35. Jean-François Lyotard, Das Erhabene und die Avantgarde, Merkur 424, março 1984, p. 1151 e
a seguir.
36. Ibidem. p. 159.
37. Ibidem.
38. Theodor W. Adorno, Voraussetzunegn (Hipótese), Noten zur
Literatur: Gesammehe Schriften (Notas sobre literatura. Obras
completas), vol. 11. Frankfurt sobre o Meno, 1974, p. 433.
39. R. M.
Adams, Scrabbling in the ‘Wake’ (Remexendo
o caminho), New York Review of Books, maio 1984, p. 4 3.
40. Ver K.
Reichert, Von den Rãndern her oder Sortes
Wakeianae (Das margens daqui ou do tipo waikeano), em L. Dallenbach e Ch.
L. Hart Nibbrig (red.), Fragment und
Totalität (Fragmentos e totalidade), Frankfurt sobre o Meno, maio 1984, p.
306.
41. Citação, ibidem, p. 302.
42. O envelhecimento da
obra de arte é só superficialmente, ou seja, para restauradores, um ato de
destruição. Envelhecimento implica, no melhor dos casos, uma compensação às
exigências que cada obra de arte constitui para o observador por meio da
neutralização de hábitos. A força criadora do cair em esquecimento, do cair no
inevitável monte de vassouras, cria condições para que velhas formas possam
comunicar novos significados. Ver Bazon Brock, „Die Ruine als Form der
Vermittlung von Fragment und Totalitãt“,
em L. Dãllenbach e Ch. L. Nibbrig (red.), Fragmente
und Totaliteit, op. cit., p, 138.
43. Walter Benjamim, Ursprung des deutschen Trauerspiels.
Gesammelte Schriften (Origem da tragédia alemã. Obras completas), vol. H, Frankfurt
sobre o Meno, 1974, p. 357 e a seguir.
44. B. Brock,
op. cit., p. 138.
45. Ibidem.
_ _ _ _ _ _ _
A seguir: Partes III, IV e V.
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