Frank Svensson – Brasília, 2001.
Com Marx caracteriza-se um
divisor no desenvolvimento do conhecimento histórico. Toma-se 1848 como marco
temporal, por terem Marx e Engels elaborado e enunciado naquele ano o Manifesto
do Partido Comunista, documento básico de conclamação ao proletariado para
assenhorar-se de seus meios de produção e dos destinos da história, feito que
ocorreu dentro da formação socioeconômica do capitalismo. Muito se pensou e
praticou em matéria de conhecimento histórico pós-Marx, mas nada de
essencialmente novo que em método e teoria pudesse ser entendido com a mesma
importância histórica.
O conhecimento histórico e do
pensamento a seu respeito caracteriza-se, pós-Marx, em desenvolvê-lo ou
contradizê-lo. Travam-se conflitos e lutas no campo da superestrutura da
formação do capitalismo, entre ideias que favorecem àqueles que só vivem de seu
salário e não detêm os meios de produção e o ideário que favorece indivíduos e
grupos detentores do poder na sociedade capitalista. Experiências
significativas sucedem-se no mundo e configuram a nova formação socioeconômica,
o socialismo, todas baseadas em teorias marxistas.
Em maior escala dão-se os
problemas globais, expressão de crise da formação ainda predominante. Neste
ocaso do capitalismo, as teorias do materialismo histórico são confrontadas por
posicionamentos conceituais divergentes, fundamentalmente por interesses de
classe. É comum negarem-lhes a validade de leis objetivas para desenvolver a
sociedade. Quando não declaram extinta a história (como Fukuyama),
consideram-na confusa, consagrando o caos e o casuísmo.
O caráter anticognitivo
histórico, divergente do materialismo histórico, visa negar o desenvolvimento
justo da sociedade. É avesso a considerar o fator trabalho como principal
categoria do conhecimento histórico, Formula teorias arquitetônicas a partir de
um subjacente conceito de convivência humana que não considera o fator
trabalho. Esquece a importância que essa forma de conhecimento teve, na derrocada
do sistema feudal, para a ascensão ao poder das classes que o negam ou
menosprezam atualmente, por resistirem à substituição pela nova classe, a dos
trabalhadores.
As teorias hoje divergentes das
do materialismo histórico podem ter 3 enfoques:
1º - psicologizante
-- situa as bases do desenvolvimento social em fatores psicológicos: desejos,
vontade, instintos, intuição, prazer e fruição, percepção e gosto, convivência
fortuita e lazer não programado; a intranquilidade social no capitalismo
explica-se menos por suas leis objetivas, mais por deficiências psíquicas; para
sanear os sérios problemas sociais, aperfeiçoar a mentalidade da população é o
remédio ministrado.22
2º - sociobiológico -- recomenda o conhecimento positivista ou o
neopositivista.
3º - micro sociológico -- tem apoio na sociologia empírica.
ENFOQUE PSICOLOGIZANTE
Na história do pensamento social,
dificilmente se encontrará teoria mais popular, de mais influência sobre a vida
intelectual do que a teoria psicanalítica de Freud. Nasceu na primeira década
deste século, como um método de tratamento de neuroses em ambiente hospitalar.
Fundamentou uma nova área da psicologia e introduziu uma filosofia social cujos
defensores sustentam que seus métodos solucionam problemas sociais tão bem quanto
problemas médicos.
A teoria de Freud tem caráter
biopsicológico, centra-se nos instintos. De instintos biológicos imutáveis,
supõe inconciliável conflito entre vida e morte do indivíduo. Afirma ser a
psique biológica por natureza, não depender do mundo externo, da realidade
social. Minimiza categoricamente a influência do contexto ambiental na
estrutura mental do Homem.23
Embora com a teoria dos instintos
Freud buscasse as causas da atividade mental, na teoria da repressão explicou a
dinâmica do comportamento do homem forçado (pela necessidade de preservar-se) a
suprimir instintos e a orientar energias a direções aceitáveis. Desviada de
suas originais finalidades sexuais, a energia mental redistribui-se para
satisfazer necessidades socialmente motivadas. Freud sustenta:
A sublimação dos instintos é um notável
feito do desenvolvimento cultural; é o que torna possível às atividades
psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas jogar um papel tão
importante na vida civilizada. 24
Vê-se então que quando a demanda
de sublimação civilizatoriamente imposta excede a capacidade do indivíduo,
produzem-se neuróticos e criminosos. Se os impulsos interiores não são postos
em xeque, o indivíduo se torna criminoso; se suprimidos, torna-se neurótico; se
são sublimados em atividades socialmente úteis, está apto a viver em sociedade,
sem maiores fricções.
Freud não viu o conflito natureza humana x sociedade como um
todo dialético de interpenetração de opostos, mas apenas como confrontação de
partes independentes. Não considerou serem as condições sociais externas à
existência do homem determinantes de sua atividade mental. Viu-as dificultando
a manifestação da atividade, freando a realização das exigências instintivas do
homem. Essa interpretação sociopsicológica da relação natureza humana e
sociedade levou-o a um dilema não resolvido: por um lado, repressão e rejeição
de instintos como essencial condição para a existência da sociedade, da
civilização como um todo; por outro, a desimpedida satisfação de instintos como
essencial condição para a saúde mental do homem. Analisou a sociedade como
produto de 3 variáveis: 1º - necessidades oriundas da natureza; 2º - dualismo
de instintos: amor e morte (Eros e Thanatos); 3º instituições e ideais que
formam a sociedade.
A visão freudiana de sociedade é
pessimista, trágica, instável e desacreditada, posto que a síntese das
variáveis nunca é plenamente obtida. .A despeito de a sociedade valer-se dos
impulsos instintivos para a garantia da vida social, os instintos não conseguem
mais que duvidoso equilíbrio:
A civilização é um processo a serviço de Eros, cujos
propósitos são de congregar os indivíduos, e depois famílias, raças, povos e
nações numa grande unidade: a humanida-de. Se isso se consegue, não sabemos; a
obra de Eros é precisamente essa. Esses conjuntos de homens devem ser
libidinalmente unidos uns aos outros. Somente as vanta-gens do trabalho em
comum não são capazes de mantê-los unidos. Instintos naturalmente agressivos, a
hostilidade de cada um contra todos os outros e de todos os outros contra cada
um opõem-se a esse programa civilizatório. Esse instinto agressivo é derivado e
constitui a principal expressão do instinto da morte que trazemos em nós.25
Vê a existência de variados
sistemas sociais como na luta entre as tendências do amor e da morte.26
E também crê que...
... a história decorre de nossa vontade consciente, não da capacidade da
razão, mas sim da destreza dos desejos.27
Posição implícita à tese de
Fukuyarna que contradisse o princípio basilar do materialismo histórico de Marx
quanto à prioridade ontológica do objeto sobre o sujeito e ao reconhecimento
da existência de leis históricas. A base filosófica da teoria psicanalítica, em
particular a sociologia nela apoiada, tem origem nos princípios idealistas de
Platão, Kant, Hartmann, Schopenhauer, Nietzsche, e Bergson. Mesmo se mostrando
não adepto de doutrinas filosóficas, atraíam-no os sistemas filosóficos que
defendiam o irracionalismo. Em Edward von Hartmann e Henri Bergson, Freud
buscou a ideia do inconsciente. Nietsche e Schopenhauer despertaram-lhe
interesse pela importância da sexualidade e das emoções inconscientes como
determinantes de aspectos da vida humana. Em Um Problema em Psicanálise, Freud escreveu:
Famosos filósofos podem ser citados como precursores, particularmente o
grande pensador Schopenhauer, cujo inconsciente pode ser igualado aos impulsos
emocionais na psicanálise.28
Atribui-se ao inconsciente, a
instintos biologicamente determinados, o vital papel da diversificada atividade
mental. A razão é um elemento subordinado. Idealismo e metafísica constituem a
base sobre a qual se constrói a psicanálise. Dentro da história do pensamento
social, Freud reflete o terror e o desespero que atingiram os segmentos
pequeno-burgueses europeus no fim do século XIX. Estudando a desordem mental
das camadas inferiores da burguesia austríaca, concluiu que a maioria dos casos
dependia das exageradas restrições impostas pela moral da época aos naturais
desejos sexuais do homem, atribuindo validade universal a casos particulares.29
À medida que Freud relacionava
sua teoria psicanalítica e as aplicações clínicas ao estudo de problemas
sociais, a teoria ganhava status de método específico para explicar fenômenos
da vida social. Ele se convencera de que, sem prejuízo para a essência da
psicanálise, poder-se-ia usá-la com sucesso em mitologia, língua, folclore,
estudo das religiões, e para tratar neuroses. As conclusões sociopolíticas
permitidas pela psicanálise foram aceitas e têm defensores em diferentes
setores do conhecimento.
PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO
NEOFREUDISMO
Contradições entre princípios da
teoria freudiana e a formulação da psicologia, da antropologia e da sociologia
experimentais originaram tendências neofreudistas, entre as quais, na
psicanálise, Erich Fromm, Karen Horney, H. S. Sullivan, Abram Kardiner, Franz
Alexander, H. D. Lasswell e Margaret Mead. Alguns, especialmente Fromm,
tentaram unir o pensamento de Freud ao de Marx.30
Graduado inicialmente em
filosofia e inspirado pelas idéias de Freud, Fromm escolheu ser psicanalista.
Dedicou boa parte do tempo a pesquisas em psicologia social e foi o primeiro a
apontar que a teoria freudiana não estava equipada para explicar as relações
entre indivíduo e sociedade. Após emigrar para os EUA (1934), iniciou com
Horney e o apoio de Sullivan uma nova escola na área da psicanálise. A
observação de pacientes norte-americanos dos anos 30 induziu-os a admitir que o
inconsciente do homem depende da essência e das particularidades específicas de
uma sociedade Substituíram o enfoque biológico ante pacientes desempregados e
necessitados de ajuda, sem abandonar a concepção freudiana dos instintos
humanos.
As intensas contradições nos EUA
dos anos 30 e 40, com depressão econômica, desemprego crescente e instabilidade
de vida, eram muito distintas das dos pacientes de Freud na Áustria do fim do
século anterior. O paciente estadunidense necessitava de ajuda, de orientação
para entender e enfrentar as pressões sociais. Compreendia-se um analista
transformar-se em pensador social ante a impossibilidade de interpretar
problemas individuais sem relacioná-los à sociedade. Daí Fromm encontrar-se com
Marx, reconhecendo-o pensador de muito mais profundidade e objetividade do que
Freud.31
Ao se aproximarem de Marx, Fromm
e o neofreudismo não se tornam marxistas; modernizam o freudismo. Vendo o corpo
teórico de Marx como uma interpretação antropológica da história e um
existencialismo espiritual, fundado num conceito genético do homem, evidenciam
a necessidade de distorcer o enfoque marxista para torná-lo suficientemente
existencialista e aceitá-lo passível de relacionamento com o freudismo.32
A APROXIMAÇÃO DO MARXISMO
LIMITADA AO PROBLEMA DA ALIENAÇÃO
O principal contato entre o
enfoque psicologizante da realidade e o marxismo é a alienação, tornada clara
pelo fetichismo da mercadoria e pela alienação do trabalho. Reconhece-se a
alienação dos homens como característica na sociedade burguesa, mas pelo
enfoque psico-antropológico. A alienação independe de concretas condições
socioeconornicas da atividade humana. A vida se rege por interesses mercantis,
dirigin-do a ética dos homens. Nas grandes cidades, os cidadãos são engolfados
pelo consumismo e pela circulação financeira.
Indivíduo alienado é o que não se
percebe centro de seu mundo, criador de seus atos. Atos e consequências
assenhoram-se do alienado e o tornam serviçal deles. O indivíduo, na sociedade
capitalista, com a produção em massa, é coisificado. Coisas passam a ter mais
importância que a maioria das pessoas. Para Fromm, no século XIX questionou-se
a existência de Deus. No XX a existência do Homem.
Lamentavelmente, o neofreudismo
estacou na constatação do imediatamente manifesto, vendo alienação mais como
estado psicológico do indivíduo, amortecendo a capacidade crítica da sociedade
capitalista. Resultou em crítica moralista, perfeitamente aceita só por
círculos românticos da intelectualidade e da pequena burguesia. Não resultou em
ação revolucionária das massas, que por contradições de classe alterasse
estruturalmente a ordem estabelecida. Incorreu no humanismo naturalista caracterizado
por Marx como sabendo julgar e condenar o presente, sem saber compreendê-lo.33
Sua critica inofensiva constitui
muito mais que um protesto eficaz, é confissão de impotência da
intelectualidade radical. Bem ilustra ilusões e enganos da pequena burguesia e
da intelectualidade liberal da fase decadente do capitalismo, sem meios para
evita-los.
Declarando a sociedade
capitalista doente e neurótica, o neofreudismo propugna por uma sociedade sadia,
conforme as necessidades do homem, necessidades com raízes em sua existência,
diferentemente de Freud, que via como trágico o desenvolvimento do conflito
instintos pansexuais humanos x demandas morais da sociedade. O neo-freudismo
sugere a possibilidade de se criarem na Terra condições sociais que permitam ao
homem realizar suas potencialidades interiores. Segundo Fromm, por meio de uma
terapia social a sociedade capitalista pode ser transformada numa sociedade sã,
mudan-do-se o asseio psicológico de cada indivíduo, substituindo-se a
orientação mercantil, consumista, pelo comportamento produtivo. A reeducação
moral é prioritária, mas como o enfoque não passa pelo fulcro do capitalismo --
a propriedade privada -- defrontam-se a lógica entre o dilema da relação
homem/sociedade e os aspectos práticos de sua proposta para tornar a sociedade
sadia.
Passando ao largo da luta de
classes como questão central das relações capitalistas de trabalho, o
neofreudismo substitui o conhecimento objetivo do processo de socialização pelo
desejo de humanização do modo de produção industrial. Sugere-se: o fim de um
industrialismo burocraticamente dirigido, a ser substituído por um
industrialismo humanista no qual o homem e o pleno desenvolvimento de suas
potencialidades -- as do amor e da razão -- são o motivo das relações sociais.
Como o freudismo, o neofreudismo enxerga a história como resultado de nossa
vontade consciente e da destreza de nossos desejos.
ENFOQUE SOCIOBIOLÓGICO
Comte (1798-1857), professor da
École Politechnique de Paris e contemporâneo (1848-49) de Marx em Paris, é pai
do positivismo e da engenharia social, hoje sociologia. Ao contrário da
concepção metafísica, que opõe conhecimento filosófico a conhecimento
científico e a conhecimento histórico, o positivismo vê a ciência específica
como sua própria filosofia, menosprezando o conhecimento do materialismo
histórico.
O ingresso da burguesia no âmbito
social e o desenvolvimento marcante das forças produtivas trouxeram novos
problemas ao pensamento teórico. Necessitava-se de um conhecimento que
explicasse o mundo ambiente e servisse de modo imediato à atividade prática, dominando
as forças da natureza.
Conquista importante na época foi
a incorporação à ciência do método das observações sistemáticas e da
experimentação, propiciando ao conhecimento científico bases materiais sólidas
e permitindo surgirem as ciências naturais teóricas. Limitadas inicialmente à
física, diversificaram-se em química, astronomia, geologia e mineralogia
(quanto a não-orgânicos) e botânica e zoologia (quanto a seres vivos).
Disciplinas que se caracterizam por empregar métodos empíricos de aproximação
dos resultados das observações a leis de caráter matemático.
Gradativamente, a ciência
separou-se da filosofia e adquiriu status independente. Exercendo crescente
influência sobre as culturas espiritual e material, conquistou domínio
conceituai. A cientistas se confiaram postos na administração do Estado, e a
igreja viu-se obrigada a modificar sua atitude para com eles.
Relembre-se que no século XIX a
ciência desenvolveu-se em luta contra a escolástica, filha protegida da
religião. Daí o cepticismo dos cientistas com expressões apresentadas pela
filosofia. Muitos não identificaram no materialismo histórico dialético
possibilidade de reunificação harmoniosa da ciência e da filosofia, por meio do
reconhecimento do caráter social da ciência.
Influenciados pela autonomia das
pesquisas científicas específicas e criticando os aspectos negativos do
pensamento filosófico tradicional, os positivistas proclamaram a total
incompatibilidade entre ciência e filosofia. Ao declararem guerra à metafísica,
vitimou-os um misticismo semelhante: a ciência é a sua própria filosofia.
Uma tarefa a que Comte se propôs,
classificar as ciências, apresentou num Curso de Filosofia Positiva em Auguste
Comte (1798-1857). Paris (1826) e publicou em forma de livro (1830). Apoiou-se
nos sábios franceses, nos matemáticos Lagrange, d'Alembert, Fourier e Gauchu,
no geômetra Monge, nos físicos Biong, Dulong e Ampère, nos astrônomos e
matemáticos Laplace e Arago, nos químicos da escola de Lavoisier e Berthollet
(dentre eles Gay-Lussac), nos biólogos e naturalistas Buffon, Lamarck, Etienne
Geoffrey Saint-Hilaire, Cuvier, de Blainville, etc., todos seguidores dos
fundamentos de Descartes.
Recusando princípios
subjetivistas, Comte pensava dever-se buscar resposta quanto a corno se
produzem os fenômenos e não a por que se dão os fenômenos. Para sua
classificação respeitava que a dependência entre as diferentes ciências se
determina pela dependência existente entre os fenômenos do mundo externo ao
pensamento. Dependência a ser determinada a partir da observação, não de uma
conceituação apriorística. Por este princípio, Comte chegou a 6 ciências
gerais: a matemática, incluindo a mecânica; astronomia, física, química,
fisiologia e sociologia.
Após caracterizar as ciências
decorrentes das gerais, viu-se ante o problema de agrupá-las em serie, numa
lógica precisa. Essa pretensão de resultado lógico, para Comte, deveria apelar
ao conhecimento histórico. Mas ao passo que a ciência faz progressos, a
ordenação histórica torna-se impraticável e cede à lógica:
Eu penso mesmo que não se conhece plenamente uma ciência sem conhecer sua
história. Mas esse estudo deve ser feito totalmente separado do estudo próprio
e lógico dessa ciência, sem o qual sua história não seria inteligível.33
Na parte teórica de suas 6
ciências fundamentais, Comte faz um resumo histórico, mostrando como se
desenvolveu o conhecimento a respeito. Com esta base formula a lei de 3
estágios do conhecimento humano. Cada ramo passa por 3 estágios teóricos:
teológico (fictivo), metafísico (abstrato) e científico (positivo). A concepção
teológica admite uma via direta na natureza de um ser sobrenatural -- Deus --
que age por onisciência e onipotência. A concepção metafísica inventa essências
particulares para explicar os fenômenos estudados. E a concepção positiva de
mundo não reconhece motivos particulares, mas vê os fenômenos como os percebem
os sentidos. Comte propôs uma ciência a que denominou engenharia social
(sociologia) e localizou-a entre ciências da natureza, como ciência dos corpos
orgânicos, ao lado da fisiologia. Entendia por sociologia, em sentido amplo, a
ciência das comunidades dos seres vivos, entre as quais situava igualmente a
comunidade dos homens:
Todos os seres vivos apresentam duas ordens de fenômenos essencialmente
distintas, aquelas relativas ao indivíduo e aquelas concernentes à espécie,
principalmente quando é sociável. É principalmente com relação ao Homem que
esta distinção é fundamental. A Ultima ordem de fenômenos é evidentemente mais
complexa e mais particular do que a primeira: dela depende, sem que influa
sobre ele. A partir daí duas grandes divisões na física orgânica: a fisiologia
propriamente dita e a física social, que se baseia na primeira.34
Com relação a fenômenos sociais,
Comte defendia:
... por um lado a influência das leis
fisiológicas do indivíduo; por outro, alguma coisa de particular que modifica
os efeitos e que mantém em ação os indivíduos uns para com os outros...35
E entendia fenômenos sociais
pelos pontos de vista:
1°- da ordem social estudada pela
estática social, que se ocupa das leis da coexistência, do regime da sociedade;
2° do progresso estudado pela
dinâmica social, que se ocupa das leis da sucessão, do movimento da sociedade.
Fez os fatores sociais derivarem
diretamente dos fatores biológicos correspondentes: o da organização e o da
vida.36
A ordem é, para Comte, a
organização, a reunião sistemática das partes num todo único. Organismo vivo e
ordem social equivalem-se. Vida é crescimento, progresso na organização. O fato
biológico do crescimento é essencial ao progresso social. Comparativamente, no
organismo sem organização não há vida; na sociedade sem ordem não pode haver
progresso.
Ao comparar biologia a
sociologia, concluiu: ambas têm leis estáticas e dinâmicas; as estáticas
predominam na biologia; as dinâmicas, na sociologia; a biologia deve ocupar-se
dos organismos existentes e a sociologia pela evolução da sociedade.
Comte supunha que a evolução da
humanidade se completaria na era industrial, o estado positivo. Nisto lembrava
Hegel, para quem a história culminava com o Estado Burguês. Comte defendia uma
compreensão abrangente como Hegel, mas não demonstrou a mesma profundidade de
conhecimento. No caso da sociedade considerava:
... todo estudo isolado de seus vários elementos seria, pela natureza
mesma da ciência, profundamente irracional e essencialmente esteri1.37
O principal defensor do enfoque
positivista da história foi Franz Leopold von Ranke (1795-1886). Almejava a
veracidade, libertando sua descrição de qualquer fantasia. Exigia-se criticar
metodicamente as fontes históricas e historiadores, antes que sobre essa base
se erigisse nova construção histórica. Para Ranke, não era papel da história
julgar passados ou ensinar futuros, mas revelar como foram os fatos e como
ocorreram. Escolhia os temas de seus trabalhos a partir de: leitmotif (idéias diretoras) e de
tendências dominantes, detectadas ao longo do tempo, corporificadas nas
políticas de Estados e governantes. A história era para ele fundamentalmente
política. Interessava-se pelas dimensões econômica e social, a partir da ética
luterana e do enfoque conservador quanto ao poder da burguesia.38
Comte afirmou-se como o mais
significativo entre os que representaram intelectual-mente a estrutura da
sociedade. Por se ater ao campo das idéias, está aquém de Marx, que esclareceu
a perspectiva do socialismo por meio do princípio fundamental do materialismo
histórico dialético:
... a noção de que a existência social é o fator condicionante da
consciência social, e não vice-versa.
A engenharia social de Comte
permaneceu limitada ao campo acadêmico; enquanto Marx trouxe as ciências
sociais para o campo dos fatores básicos da mudança social, para a práxis da
vida. Não se limitou à teoria e buscou engajar-se na luta por uma sociedade
mais justa, o estofo de suas constatações conceituais. Diferindo de Comte e
Ranke, o corpo teórico de Marx analisa e testemunha as lutas da segunda metade
do século XIX, nos países onde viveu e participou ativamente da história.
De advogado defensor de pobres
trabalhadores do campo chegou a presidente da Internacional Operária, o que lhe
custou o exílio forçado e a miséria pecuniária decorrentes da perseguição dos
detentores do poder. Vivenciou o destino dos que se opõem objetivamente à
desigualdade social.
A sociologia positivista e suas
formas neopositivistas passaram a disputar com o materialismo histórico
dialético o caráter de verdadeira ciência
social, e o enfoque positivista da história limitou-se a descrevê-la com
suposta imparcialidade, sem participar de sua transformação, não tendo a
postura marxista de conhecer a história fazendo-a.39
MICROSSOCIOLÓGICO ENFOQUE DA
HISTÓRIA
O terceiro agrupamento de teorias
divergentes do materialismo histórico é a microssociologia (sociologia empírica).
Não nega abertamente o conhecimento abrangente da vida em sociedade, mas no
entremeado de fenômenos sociais limita-se a estudar detalhes, aspectos parciais
da realidade capitalista, sem esclarecer as relações que lhe são inerentes. A
teoria não quer considerar as leis de seu desenvolvimento histórico, ocultadas
pelo imediatamente aparente, para manter-se distante da consequente análise
científica da realidade e da necessidade de resolver problemas sociais pela via
clara da formação socioeconômica posterior ao capitalismo, posto que é
conivente com ele.
Não se diga que o estudo
microssociológico não é importante, mas criticável quando nega a preponderância
dos fatores da esfera social sobre as pessoas. Limita-se a analisar laços
subjetivos entre indivíduos em pequenos grupos (destacando-lhes o mundo
interior), subestimar fatores sociais objetivos e centrar enfoque na
personalidade. É tendência vê-lo construtor de seu meio imediato e idealizar os
elementos que orientam suas atividades. Ergue um meio idealizado que não
reflete o mundo real, o objetivo maior, e desvia a atenção para aspectos
subjetivos psicológicos, razão por que encontros e convívio fortuitos
constituem objeto de estudo tão sério quanto classe socia1.40
Ao se discutir o típico, em
arquitetura, associa-se o meio ambiente do pequeno grupo a questões de índole,
a como os indivíduos se relacionam com amigos, famílias e natureza, sob o
regime capitalista. O microambiente é exposto como oásis da paz, de idílicos
hábitos típicos (ou genéricos) de uma suposta cultura regional (ou nacional).
Ora! Relações psicológicas -- simpatias e antipatias -- não dependem unicamente
de características pessoais; em grande parte são secundárias, refletem relações
econô-micas, políticas, ideológicas e espirituais da sociedade.
Para o enfoque materialista
histórico-dialético, a sociedade define a estrutura e as funções dos pequenos
grupos sociais, não o contrário. As relações interindividuais não são negadas, mas
se avalia a influência que o trabalho, fator principal de socialização, tem
sobre elas. Os indivíduos agem como parte da sociedade; as determinantes da
sociedade indicam as atividades materiais dos homens, que não podem ser
reduzidas a estruturas psicológicas. Ao se desviar o enfoque da constituição
social para particularidades psicológicas, escamoteia-se o conhecimento quanto
a classe social, o coletivo de trabalho e formações da vida associativa que
decorrem das relações de produção; quanto à luta de classes e à possibilidade
de paz entre as classes.
N o t a s :
22 - V. I.
Dobenkrov: Neo-freudism on Surch of Truth.
Moscou, 1976.
23 - Idem.
24 - S. Freud: Civilization
and its Discontents. Londres, 1939.
25 - Idem.
26 - N. Brown - Life Against Death. Londres,
1959.
27 - S.
Freud - Una Dificultad de la Psicanálise
Obras Completas, vol. 12. Madri, 1948.
28 – Idem.
29 - E.
Fromm - Mas alla de las cadenas de Ia
ilusion y Ia revolución de la esperanzza, Madri, 1975.
30 - E. Fromm: Conceito
marxista do Homem. Rio, 1975.
31 - op. cit. (nota 30).
32 – Idem.
33 - K. Marx, O Capital.
34 - Idem.
35 - B. Kédrov – La Classification des Sciences, vol. I.
Moscou, 1977.
36 – Idem.
37 - op. cit. (nota 35).
38 - A. Schaff: Duas
Concepções da Ciência da História: o Positivismo e o Presentismo. História e
Verdade. São Paulo - Lisboa, 1987.
39 - R Villar:- História
Marxista, História em Construção. Lisboa, 1976.
40 - D. Anzieu e J. Y. Martin :
La
Dynamyque des Groupes Restreints. Paris, 1973.