Rita Velloso 09/06/2013
Relatando o encontro de planejamento urbano acontecido em Recife, em maio, a pesquisadora Rita Velloso apresenta as linhas de uma crítica ao desenvolvimentismo prevalecente no planejamento da metrópole brasileira, na atual fase de expansão capitalista. Essa crítica não se estabelece ‘desde cima’, mediante soluções-planos, racionais e socializantes, concebidos de fora dos próprios processos. Mas, sim, das bases materiais onde ocorre o trabalho vivo hoje, cooperativo e resistente, isto é, dos “embates, configuracões provisórias, desejos e a potência da vida dos moradores.” Nesse sentido, se esboça uma alternativa constituinte, capaz de atravessar as formas de organização da cidade, transformá-las e atribuir uma qualidade nova às instituições. (N.E.)
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Sobre a hipótese do
planejamento conflitual e as vozes de novos sujeitos políticos
Rita Velloso
Terminou em Recife na última semana de maio o encontro bianual de planejamento urbano – reunião na qual houve alta concentração de escolas, programas de pós-graduação do país e alguns pesquisadores estrangeiros viajando pelo Brasil. Foram cinco dias de muita conversa, dessa vez sob o título de XV ENANPUR – Desenvolvimento, Planejamento e Governança. Como é fácil depreender deste elenco de conceitos que o nomeiam, o tom predominante do encontro foi dado pelas falas ao redor do novo desenvolvimentismo, tema quase onipresente que incluiu desde a discussão sobre um novo macro ambiente institucional e político no Brasil até as especulações acerca do imaginário espacial do desenvolvimentismo, o qual está ancorado nos costumeiros fetiches institucionais (“as escalas múltiplas ou a região metropolitana – qual é a projeção do novo Brasil?”), não sem passar pelas tentativas de denominar o período que atravessamos ( uma transição? Um híbrido? O desenvolvi-mento como intenção?), e, obviamente, pelas ponderações sobre o projeto de inserção internacional do país baseado em sua (re)afirmação como plataforma de exploração de recursos naturais e de valorização financeira, com as implicações em desindustria-lização e ruptura de cadeias produtivas nacionais.
Terminou em Recife na última semana de maio o encontro bianual de planejamento urbano – reunião na qual houve alta concentração de escolas, programas de pós-graduação do país e alguns pesquisadores estrangeiros viajando pelo Brasil. Foram cinco dias de muita conversa, dessa vez sob o título de XV ENANPUR – Desenvolvimento, Planejamento e Governança. Como é fácil depreender deste elenco de conceitos que o nomeiam, o tom predominante do encontro foi dado pelas falas ao redor do novo desenvolvimentismo, tema quase onipresente que incluiu desde a discussão sobre um novo macro ambiente institucional e político no Brasil até as especulações acerca do imaginário espacial do desenvolvimentismo, o qual está ancorado nos costumeiros fetiches institucionais (“as escalas múltiplas ou a região metropolitana – qual é a projeção do novo Brasil?”), não sem passar pelas tentativas de denominar o período que atravessamos ( uma transição? Um híbrido? O desenvolvi-mento como intenção?), e, obviamente, pelas ponderações sobre o projeto de inserção internacional do país baseado em sua (re)afirmação como plataforma de exploração de recursos naturais e de valorização financeira, com as implicações em desindustria-lização e ruptura de cadeias produtivas nacionais.
Molduras teóricas hegemônicas à
parte, o debate mais potente do encontro foi propiciado pelo grupo de
pesquisadores coordenados por Fabrício Leal de Oliveira e Carlos Vainer, cuja
sessão de apresentação se denominou Planejamento e Conflito: experiências de planejamento urbano em
contexto de conflitos sociais.
Já em 2011, no ENANPUR
precedente, Vainer denunciava a exaustão do “participacionismo de resultados” e
o planejamento refreado no impasse da participação institucionalizada,
valendo-se desde então da frase de efeito que resume sua posição sobre
conselhos cogestores de políticas setoriais, conselhos tripartites de cidades,
conferências e planos diretores participativos – “o Brasil tem tantos ou mais
conselhos que a Rússia em 1918!”. O aprofundamento da pesquisa agora
apresentada evidencia uma contraposição a tal estado de coisas: o trabalho tem
como fundamento a superação dos “processos ditos participativos”, na medida em
que esses evocam a participação para legitimar a mediação e o contorno do
conflito social, concebido como patologia ou disfunção social. Trata-se, afinal
e pelos casos expostos, de fazer a conceituação de um planejamento conflitual,
embora o autor insista em dizer que “não se trata de uma metodologia ou
sistema” de planejamento urbano.
Não resta dúvida de que há muitos
avanços no que Vainer expressa como “planejar para lutar, lutar para planejar”.
Contudo, é preciso demarcar os limites dessa hipótese que, me parece, encontra
seu próprio impasse justamente quando não supera alguns fundamentos
tradicionais (melhor seria dizer funcionalistas) relativos à enunciação e
representação dos planos e projetos componentes da pesquisa, preferindo não tencionar
as possibilidades da linguagem que expressa o conflito.
No pequeno texto que apresentou a
mesa redonda leio que conflitual refere-se às “formas contra-hegemônicas de
planejamento que ressignificam do ponto de vista teórico-conceitual
metodologias e práticas da ação planejadora em sua expressão dominante”. Tal
estratégia de planejamento afirma como ponto de chegada, em primeiro lugar, o
diálogo dos habitantes com técnicos e especialistas de formação
interdisciplinar de modo a possibilitar que o habitante atue como planejador
popular e coletivo – segundo os autores, “com domínio cognitivo de enunciação
do projeto para o bairro onde mora ou espera morar”.
A considerar os discursos que
acompanham a exposição oral e os documentos gráficos e imagéticos dos projetos
(o plano popular da vila autódromo, no rio de janeiro; o bairro Saramandaia, em
Salvador; a região metropolitana de Recife; a ocupação Dandara em Belo Horizonte)
muito pouco ou nada se deixa ver desse habitante. A narrativa da pesquisa não
dá conta de qualificar o termo popular, tampouco esclarece o que exatamente
designa o mesmo termo. Ali ainda não se encontrou uma forma de fazer-dizer os
habitantes, para além dos diagnósticos, imagens e fotografias de casas e
prédios. Se o grupo apresenta o trabalho como esforço de auto planejamento
urbano, como é possível narrar estudos, projetos e planos sem de fato enfrentar
a dificuldade de deixar-falar os processos de luta encerrados (e de certa forma
petrificados) no desenho, nas construções de pauta para os debates nas
reuniões, e nas evidenciações das disputas entre grupos de moradores?
Ora, quando se trata de projetos
que pretendem instalar e pensar a experiência urbana enquanto um processo
político – e, se entendo corretamente, o trabalho pretende conjugar autonomia e
aprendizado do/para o urbano – como é possível narrá-los sem constituir a
língua do conflito, isto é, sem construir uma espécie de dizer-do-conflito, o
que esteve em jogo quanto à constituição desse conjunto de novos sujeitos
políticos, que coletivamente “se constrói como novo sujeito planejador, na
prática mesma do conflito e do planejamento”?
Não que a descrição dos processos
de projeto não se tenha feito de modo acurado, inclusive com apresentação – no
caso do Rio de Janeiro- da série histórica de intervenções levadas a cabo pelos
pesquisadores em diferentes situações urbanas desde 1983 até 2012. É certo que
se deixa mostrar no relato os processos de acompanhamento da população pelos
técnicos, a movimentação e as exigências que demarcam as atuações de
defensorias públicas e ministério público junto às populações dos bairros e das
favelas, a realização das oficinas, a formação de um conselho de bairro para o
plano, etc.
O que se contra argumenta aqui é
que toda essa demonstração dos processos não escapa aos vícios do planejamento
modernista – a descrição é insuficiente, pois apresenta de modo tristemente
descarnado os percursos, os embates, as configurações provisórias, os desejos e
a potência da vida dos moradores. Ao fim e ao cabo, os sujeitos políticos
constituídos na luta pelo próprio espaço não tem voz na narrativa dessa mesma
luta, quando expressa num relato escrito e enunciado pelo planejador.
O que fazer, então, quanto a tencionar
as possibilidades da linguagem que expressa o conflito? Seria necessário
escrever uma narrativa radicada na assunção do conflito como linha de fratura
(finíssima e profunda), a única capaz de expor o território, que de outro modo
restaria escondido sob a superfície homogênea da localização. Para além de
indagar onde e como se manifestam os conflitos é preciso responder o que se
deixa ver através dele. A rigor, o conflito desenha o diagrama de um lugar, e o
singulariza, determinando e constituindo sua mobilização enquanto território
praticado. É certo que o conflito deve ser exposto enquanto processo, mas,
então, será preciso se deter em seus momentos espaço-temporais de contradição,
de fechamento de ciclos, suas configurações agudas, os antagonismos. Cada um
desses momentos contém a possibilidade das alternativas de apropriação e
reapropriacão do espaço. O conflito, por que é uma prática socioespacial,
permite expor o território – mais do que traduzi-lo ou explicitá-lo – em termos
das formas de vida que contém; em outras palavras, em termos da constituição
produtiva do território, narrando-o como palco das lutas que criam novas formas
de comunidade, novos gestos de cooperação.
Talvez esteja na linguagem a
pré-condição de determinação do espaço social1, conforme especulou Henri
Lefebvre. Se o conflito configura um momento da produção de um espaço social,
então é na linguagem que deve-se reproduzir o desenvolvimento desse momento que
finalmente será práxis espacial. As lutas travadas num dado território tem na
linguagem uma questão central, por conseguinte o que tece a produção e a práxis
é a comunicação em suas redes, os significados e sentidos linguísticos. O controle do sentido equivale à
reapropriação da vida no todo complexo que essa é; equivale a, sem qualquer
compartimentação do mundo da vida, ter livre acesso ao conhecimento, à
informação, aos afetos.
Produzir a vida na linguagem;
isso requer dizer e ouvir os modos pelos quais falam os sujeitos, sua
gramática, os dialetos. Assim se vai além do diálogo entre técnicos,
especialistas e moradores, assim se alcança, de fato, o aprofundamento da dupla
hermenêutica exigida pelos habitantes e pelos usos arraigados no território.
Sobre a práxis do conflito,
trata-se, como falou Antonio Negri, de pensar um constituir-se como sujeito por
meio da linguagem, sujeito capaz de resistência e solidariedade.
“A linguagem é a forma principal
da constituição do comum, e é quando o trabalho vivo e linguagem se cruzam, e
se definem como máquina ontológica, que a experiência fundadora do comum
adquire realidade.”2
Através da linguagem sempre emergirão
formas originais de cooperação. Ambas, linguagem e cooperação, devem ser
atravessadas pela afirmação da centralidade de uma experiência do comum que é
união concreta do saber e da ação dentro dos processos do conflito.
Carlos Vainer relembra, na explanação
do seu trabalho, a afirmativa de E.P. Thompson, segundo a qual “a classe
operária existe por que luta, e não, luta por que existe’”. Para dar conta dos
pressupostos de um planejamento conflitual, essa mesma afirmação precisa ser
levada às últimas consequências– a experiência de luta dos sujeitos políticos
precisa existir na linguagem – precisa encontrar sua forma de enunciação. Os
encontros e as reivindicações que produzem confrontos precisam ser narrados de
modo radical numa estratégia de planejamento que pretenda vetar o vigente
banimento da política dos rumos da produção do espaço contemporâneo.
Fala-se, no planejamento
conflitual – assumindo a terminologia da pesquisa em questão – , da constituição de um sujeito
político que faz, por meio da linguagem e do espaço, a experiência da luta. Não
obstante, exige-se pensar de modo extenso esse sujeito a quem se atribui o nome
popular. É que na práxis espacial e nos usos do território, à medida em que a
desigualdade é experimentada, configura-se uma subjetividade capaz de
resistência. Subjetividade política no sentido mais pleno, pois constrói no
interior de sua vida suas alternativas de participação nas estruturas sociais,
sem possibilidade de transcendê-las. E justamente essa é a força desses novos
sujeitos políticos: sua capacidade de resistir, tecida no cotidiano, é não
menos que um contra poder. Seu horizonte, bem ao contrário do planejador, não é
puramente o da crítica, mas sim a determinação prática (material) que envolve a
produtividade dos seus corpos, o valor dos afetos. Esse novo sujeito político
que exercita planejar seu lugar, sua moradia, seu território o faz como
militante – sua atitude de resistência não é representativa, é constituinte.
Há que se ressaltar, por fim,
dentre os pressupostos do trabalho, uma das questões que pretendem dar conta de
uma descrição do conflito que expõe a potencialidade do urbano, qual seja: de
que maneira a desigualdade sócio espacial se expõe a partir de informações
sistematizadas dos conflitos?. Ora, Carlos Vainer é muito enfático ao afirmar
que o trabalho instala uma estratégia política de enfrentamento do modus operandi do Estado no que concerne
ao planejamento urbano; segundo o professor, não se trata de elaborar uma
metodologia para o plano mas, em última instância, de combater consultoria com
consultoria – toda a equipe de pesquisa assume a posição do planejador que toma
partido dos que estão em desvantagem nas argumentacões técnicas, por isso
enfrentando projeto (apaziguador) com projeto (que não resolve o conflito, mas
pretende expô-lo).
Na medida em que estabelece
teoria e hipóteses de implantação e configuração dos lugares urbanos, fazendo a
crítica à autoridade dos especialistas e da, como chamam, “ciência da definição
dos espaços urbanos”, é certo que a pesquisa representa um avanço importante no
campo do planejamento urbano, principalmente por que se coloca na circunstância
de enfrentar tensões internas à área de conhecimento. Ainda que com todos os
limites aqui apontados, é um trabalho de hermenêutica rigorosa que se desdobra
em raciocinar sobre realidades constituídas e seus respectivos elementos
constituintes. Mas, voltando a sua pergunta – que é, sim, metodológica – talvez
Oliveira e Vainer pudessem recorrer ao que Negri chamou de pregnância prática
da pesquisa para superar a descricão como método, indo na direção da já tão
conhecida pesquisa-ação (“a velha tradição operária da pesquisa-ação como forma
exemplar de método”3). Esboço de uma metodologia talvez cabível ao tempo atual,
é a pesquisa-ação que porventura fará a prática atravessar a crítica, passando
a falar de dentro, posto que não há mais um fora – o que me parece ser
confortavelmente suposto na descrição. Nesse sentido, mesmo que longa, penso
que vale a pena a citação:
“…conhecer, mediante a pesquisa,
os níveis de conscientização e de consciência dos processos nos quais os
trabalhadores, como sujeitos produtivos, estavam implicados. Se eu entro na
fábrica e me ponho em contato com os operários, conduzindo com eles uma
pesquisa sobre as condições do seu trabalho, a pesquisa-ação consiste sim,
obviamente, na descrição do ciclo do ciclo produtivo, na identificacão das
funções de cada um dentro do ciclo; ao mesmo tempo, porém, é também uma
avaliação em geral dos níveis de exploração que cada um e todos sofrem, da
capacidade de reação que os operários têm no que concerne à consciência de sua
exploração no sistema das máquinas e diante das estruturas do comando; de modo
que, na mesma medida em que a pesquisa prossegue, a pesquisa-ação constrói
horizontes de luta na fábrica, define linhas ou dispositivos de cooperação fora
da fábrica, e assim por diante. Evidentemente, aqui existe uma hegemonia e uma
centralidade da práxis dentro da pesquisa: uma práxis que permite aprofundar o
conhecimento do ciclo de produção e de exploração, e que se exalta quando
determinará resistência e agitação, ou seja, quando desenvolverá as lutas.
Assim é praticamente possível constituir um sujeito antagonista…”4.
É esperançoso imaginar que se
levadas a cabo, na conjuntura de um planejamento que não se faça acima das
subjetividades criativas que são propriamente a vida urbana, as tarefas da
linguagem e da pesquisa-ação transformarão determinados horizontes de
compreensão. Até mesmo aquele que se contenta em resumir num bordão o
esgotamento das ferramentas institucionais, os tais conselhos em número “igual
ou maior que na Rússia de 1918”. Quem sabe se, com constelações de conceitos
mais propensos a pensar até o fundo novas formas democráticas, novos poderes
constituintes, estejamos prontos para atravessar e subverter, com uma prática
potente, essa institucionalidade descarnada a que se chama ‘participação’.
—–
1- LEFEBVRE, H. La Production de l’espace. Paris: Anthropos, 1999, p. 16.
2- NEGRI, A. Cinco Lições sobre
Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.173.
3- NEGRI, A. Cinco Lições sobre Império. Rio
de Janeiro: DP&A, 2003, p.227.
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