A teoria da ideologia
de Marx: Uma herança de surpreendente atualidade.
Robert Misik -- (capítulo VII de: Marx para apressados. Eds. ALVA – Brasília 2006.
Tradução: Frank Svensson
O Capital custou a Marx quinze anos de sua vida e uma grande parte
de sua ambição em vê-lo publicado. O trabalho que nele investiu é realmente
enorme. Para esta obra ele suportou pobreza, doença, perseguições públicas e
pessoais, contra sua vontade é certo, mas com um estoicismo determinado do qual
a incrível estabilidade emocionava e espantava todos aqueles que tinham a haver
com ele, como escreveu Isaiah Berlin. Em 5 de maio de 1867, dia do 49°
aniversário, quando recebeu as provas do primeiro volume de O Capital, Marx certamente sentiu-se
muito aliviado. Principalmente por finalmente ver que a teoria por ele
elaborada agora podia ser vista, lida e criticada por todo mundo. Até então ele
tinha desenvolvido componentes de sua visão de mundo, como que de passagem, à
ocasião de controvérsias com outros autores: o materialismo histórico em sua
crítica de Proudhon, e em A Ideologia
Alemã; elementos de uma teoria do Estado encontram-se disseminados na obra
de Marx; não podemos falar de uma teoria bem madura da ideologia, pois todos
esses elementos frequentemente não passam de flashes em seus inumeráveis
escritos. E, do monumento da economia política só a primeira parte está
concluída. Os livros dois e três de O
Capital só existem em estado de notas, ao lado dos quais se acumulam as
teorias sobre a mais valia, que ocupam três tomos da obra de Marx. Tudo isso
teria que ser reelaborado, reformulado, revisto com pente fino. Além disso,
Marx tinha inúmeros outros projetos: Quando eu me desembaraçar do fardo
econômico, escreverei uma dialética, anunciou, confiante, após a aparição do
primeiro livro de O Capital.
Após o fracasso da revolução de
1848, Marx retraiu-se da vida pública. O movimento obreiro, privado de seus
dirigentes que se encontravam em exílio ou prisão, permaneceu por muito tempo
vencido, enquanto o capitalismo continuava sua marcha vitoriosa para o píncaros
desconhecidos nos anos do grande boom econômico. Marx abandonara rapidamente
toda esperança de um novo assalto, de uma nova onda revolucionária. Era,
verdadeiramente, a Era do Capital,
como o diz justamente o livro de Eric J. Hobsbawm. A época, tudo se dava nos
domínios econômico e técnico:
no ferro, derramado sobre o mundo em milhões
de toneladas para permitir aos trens cruzar os continentes, os cabos submarinos
lançados através do Atlântico, a construção do canal de Suez, das grandes
cidades... (Paris, Hachette, 2002, p. 18).
O comércio mundial aumentando de
forma exponencial, a produção de ferro quadruplica, após a invenção do
telégrafo, vem a do telefone (em 1876, já havia 200 telefones funcionando na
Europa); as cidades crescem. Alguns comparam o período entre 1850 e 1870 com a
época das grandes descobertas e conquistas de Cristóvão Colombo, Vasco da Gama e
Pizarro. Em 1872 podia-se, enfim, chegar a Bombaim passando por Londres,
Brindisi, depois, atravessando o canal de Suez, chegar até São Francisco, em
seguida Nova Iorque, após atravessar o For West, tomar o navio para Liverpool e
entrar em Londres de trem -- tudo isso em 80 dias. Uma aventura incrível que
inspirou o célebre romance de Júlio Verne.
O movimento obreiro renasceu aos
poucos de suas cinzas. Com a recessão do ano 1857 retoma-se de um golpe a
consciência de que o futuro fulgurante do capitalismo não continuará
indefinidamente e sem contradição. Depois de meados dos anos 1860, Marx foge
mais e mais do isolamento que havia escolhido. Na Alemanha tornara-se uma força
com facções lideradas por gente como Ferdinand Lasalle, August Bebel e Wilhelm
Liebknecht, sobre os quais Marx e Engels exerciam grande autoridade. Graças à
Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1864 -- conhecida hoje
como Primeira Internacional -- o erudito do British Museum dispunha de um
instrumento que lhe permitia jogar um papei proeminente nas lutas de seu tempo.
Organização pouco estruturada, reunindo correntes distintas, características
contraditórias, bravos sindicalistas, assim como, fervorosos agitadores, a
Internacional foi cedo vista como o órgão manipulador de todas as tentativas de
subversão da época. Foi aos poucos tida como é hoje a Al Quaeda, e Marx obteve
a duvidosa honra de ser considerado o pior de todos os perigosos inimigos do
Estado da Europa. Pelos defensores da ordem estabelecida era denominado o doutor terrorista vermelho, de certa
forma um Osama Bin Laden do 19.° século.
Nos anos 1869/70, uma onda de
revoltas obreiras e greves rebentam sobre o continente, da Alemanha à Franca, à
Itália até à Áustria-Hungria e a Rússia. Essa nova série de rebeliões culmina
em 1871 com a Comuna de Paris, quando, em seguida à derrota da França contra a
Alemanha, o povo parisiense se subleva, caça as classes superiores, os
governantes, e proclama a Comuna. Marx resta energizado. Consagra cada vez
menos tempo a seus estudos econômicos e vê nas medidas tomadas pelos
revolucionários parisienses e sua autogestão, a forma política finalmente
encontrada que permitia realizar a emancipação econômica do trabalho (La Commune de Paris - Paris, Le Temps
des Cerises, 2002, p. 49). Lança-se a corpo perdido na luta. Mesmo após a
derrota da Comuna de Paris, as crescentes dissensões no seio da Internacional
continuam a ocupar a maior parte do tempo de Marx, como lhe ocuparão, em
seguida, os primeiros passos de um partido trabalhista unificado alemão, não
outra coisa que o núcleo social-democrata inicial do atual SPD. Torturado por
suas dores crônicas e pelos azares familiares tornou-se um velho sábio ainda
que jovem Marx vê sua capacidade de trabalho diminuir pouco a pouco. Não
publicará outra grande obra até sua prematura morte em 1883, nem mesmo obra
adequada a ser impressa. É como se a sua vida terminasse com a publicação de O Capital. Morre um ano e meio após a
morte de sua esposa e dois meses após a morte de sua filha Jennychen, a pequena Jenny. Dois duros golpes dos quais o homem de
65 anos não se recupera mais.
Deixou uma obra em que a novidade
de pensamento frequentemente ficou em estado de esboço. Uma obra magnífica e
disparate -- donde as arengas de seus exegetas e as divergências escolásticas
entre as interpretações. O monumento que representam seus escritos inacabados
deixa o campo livre a apreciações de todo tipo. Isso vale particu-larmente para
um ponto importante da obra de Marx, do qual só nos deixou um fragmento: sua
teoria da ideologia. Pois se confere às condições materiais das condições de
existência dos homens uma força histórica essencial, aos homens dá a
possibilidade de intervir no curso das coisas. A revolta só não é uma coisa
simples, não só porque a máquina automática mundial desenvolve sua própria
vontade que os sujeitos têm dificuldade de monitorar, mas também porque a
dominação penetra nos sujeitos. É como se fossem desmontados ou remontados. São
possuídos pela luta que se dá entre as relíquias das velhas tradições, as
ilusões novas e as imagens díspares que lhes servem para interpretar o mundo.
Não são tanto os homens que não são esclarecidos, cujas relações de ordem
interna mistificada não aparecem à
luz do dia.
Vemos aí o que causa todo o
impacto de uma ideologia. Interpretações e mistificações jogam naturalmente
papel essencial, pois é delas que depende, por exemplo, o julgamento feito
pelos homens sobre as relações sociais: justos ou injustos, naturais e
imutáveis ou produzidas pelos homens, e variáveis. Essa relação entre a
estrutura econô-mica e as mistificações nas mentes é para Marx uma relação
sutil que ele tenta decifrar em diferentes momentos de sua obra. Ele chega a
resultados que à primeira vista parecem contraditórios. Numa das passagens mais
célebres - e também uma das mais contestadas - ele elabora, em 1859, a imagem
de uma construção em dois níveis:
Na produção social de sua existência, os
homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua
vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento
determinado de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de
produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a
qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida material
condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral. Não é a
consciência dos homens que determina seu ser social; é inversamente seu ser social
que determina sua consciência. Num certo estágio de seu desenvolvimento, as
forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações
de produção existentes, ou o que nada mais é que a expressão jurídica, com as
relações de proprie-dade no seio das quais estavam emudecidas. De formas de
desenvolvimento das forças produtivas que eram, essas relações tornam-se
entraves. Então se abre uma época de revolução social. A mudança na base
econômica transtorna mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura.
Considerando tais transtornos, temos sempre que distinguir o transtorno
material -- que podemos constatar de uma maneira cientificamente rigorosa --
condições de produção econômicas, e formas jurídicas, políticas, religiosas,
artísticas ou filosóficas, resumindo, formas ideológicas sob as quais os homens
tomam consciência desse conflito e o levam até o fundo. Por mais que se julgue
um indivíduo pela ideia que ele se faça de si mesmo, não saberemos julgar uma
tal época de transtorno sobre a consciência de si. (Contribuição à Crítica da Economia Política, p. 4)
O ser social determina a
consciência -- declaração indiscutível que pode parecer grosseira a primeira
vista; como de fato, ela explica, ainda hoje, a fama intelectual de Marx que
mesmo os não marxistas são forçados a reconhecer. Assim, o filósofo Eric
Voegelin escrevia no 19.° século, a Alemanha produziu quatro personalidades
mundialmente célebres: Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Max
Weber, quatro pensadores que introduziram na história das ideias um motivo
revolucionário novo: a crítica do pensamento das luzes em si. Konrad Paul
Liessman deduziu que Marx é a abertura --
sempre atual -- do discurso do Outro à razão.
Que isso bem pode querer dizer?
Depois da época das luzes, estimava-se que era suficiente que os homens se
servissem de sua razão para serem capazes de sair da imaturidade em que eles
mesmos se mergulharam. Para Marx o caminho é nitidamente mais difícil: ele
recusa a ideia que basta esclarecer os homens quanto às condições de
existência, para que uma vez os erros reconhecidos, eles o remedeiem de
imediato (sur-le-champ); ele recusa, consequentemente,
a pedagogia que quer transformar uma consciência errônea em uma consciência
correta, para em seguida mudar uma má prática em uma boa prática. Ao contrário,
para Marx, as ideias que se fazem os homens das condições de existência são tão
inseparáveis dessas condições que de ações cometidas quotidianamente por esses
mesmos homens: a prática ocorre no contexto de condições dadas, e os homens têm
tanto uma representação como sua prática. Da mesma forma que, mais tarde,
Sigmund Freud em seus estudos psicanalíticos, recusará de tomar os homens pelo
que eles têm consciência de ser. Marx não atribui à consciência humana uma
origem psicológica, mas social: os homens não são, por assim dizer, idênticos a
si mesmos. Adeus ao sonho do pensamento das luzes: o sujeito não é senhor de
seu domínio. Em 1840, Marx desenvolveu essa ideia em A Ideologia Alemã:
Os pensamentos da classe dominante são
também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, dito de outra forma a
classe que é a potência material dominante, é tam-bém a potência dominante
espiritual... Os pensamentos dominantes não são outra coisa que a expressão
ideal das relações materiais dominantes, eles são estas relações materiais
expressas sob forma de ideias... (t. A. p. 44).
Vejamos algo que parece um pouco
grosseiro: se a classe dominante vê seus interesses econômicos e a força
econômica de que dispõe, fica claro que o mundo baseado sobre a propriedade
privada e o principio da concorrência é o melhor dos mundos possíveis, o que
não quer dizer forçosamente que todos os homens devem obrigatoriamente aceitar
esta interpretação; as gentes não cessam de crer em Deus, se bem que a adoração
ao dinheiro tenha se tornado uma nova religião. Sendo assim, atacar o poderio
do dinheiro seria um donquichotismo e a ideologia um fenômeno totalmente
destituído de interesse, pois não passaria de uma relação derivada
unidimensional. O que não é em nenhum caso o ponto de vista de Marx. A ele
importa sobremodo voltar às formas de consciência toda aparência de autonomia -- é nelas que se refletem as relações
sociais hegemônicas, não de forma simples, mas de forma deformada, desfigurada.
Na ideologia, os homens e suas relações nos parecem colocadas de cabeça para
baixo como numa câmera obscura. Moral,
religião, metafísica e outra ideologia são como que fantasmagorias na cabeça
humana. (I.A. p. 20), que contém sempre os traços das condições materiais --
seja a soma das experiências vividas pelos indivíduos, coloridas pelas
condições sociais em que vivem, o saber-fazer de que se apropriaram ou tão só a
linguagem que jamais conserva o antigo, o habitual, chegando mesmo a contaminar
o novo, se bem que este não cessa de imbricar naquilo contra o qual luta. Marx
teve que, ele também, empregar antigos termos filosóficos para formular sua
revolução filosó-fica, por não ter outros à sua disposição. Os homens fazem sua própria história, mas não o fazem de seu próprio
movimento reza uma outra passagem de Marx igualmente célebre, não em circunstâncias de sua escolha, mas em
circunstâncias existentes, dadas e transmitidas. A tradição de todas as
gerações mortas pesa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos (O 18 Brumário de Luís Bonaparte, p. 69). As possibilidades abertas são limitadas,
pelo menos para o que no momento é considerado pensável e para os modelos de
comportamento gravados nos espíritos.
As ideologias são -- se nós nos
inspiramos nos termos de Marx para as mercadorias -- coisas complexas cheias de
sutilezas metafísicas e de caprichos místicos. Não flutuam num espaço vazio e
têm o seu próprio peso; elas são produto de relações, mas movem vida própria;
não são simples reflexos aparentes, sem ser tampouco o produto consci-ente do
homem inteligível; são transmitidas pela tradição, mesmo destituídas de
história para tanto. Nós somos assim continuamente confrontados a um fenômeno
paradoxal: os filósofos procuram descrever a situação de sua época referindo-se
a filósofos de tempos revolutos e mortos há muito tempo. Os pensamentos não são
livres, isso e tudo. A revolução
política, a revolução intelectual, a revolução religiosa, nascem todas de um
mesmo fato fundamental da revolução econômica, interpreta o grande
historiador francês Lucien Febvre: O capital se forma. E em se formando, produz uma mentalidade capitalista. Colore os pensamentos,
os sentimentos e as convicções religiosas em cores capitalistas. (Combats pour l'Histoire", Paris,
Pocket, 1995).
O modo de funcionamento da
ideologia é uma questão que nesses 150 últimos anos tem continuamente
preocupado todos os defensores de tempos melhores e os levado a discutir,
explicar e interpretar abundantemente os fragmentos deixados por Marx. Tiveram
uma boa razão. Tratava-se de um fenômeno altamente atual que ressaltava questões
essenciais: porque as classes inferiores desenvolvem ideias que as reconciliam
com sua opressão? Como é que os oprimidos aprovam tanto sua opressão? Por que a
dominação não se impõe pela força, senão em casos extremos, o mais frequente
com o assentimento dos homens que são submetidos?
Acontece que essas questões
provocam violentas disputas entre os exegetas de Marx. Se o ser determina a
consciência, esta última não passa de vento, de uma coisa totalmente destituída
de importância. Neste caso porque os reformadores do mundo se bateriam para
guiar a cabeça das gentes, se as condições materiais determinam as formas de
consciência e se basta reverter as primeiras para que a névoa ideológica se
dissipe por si mesma? Esta é uma interpretação por demais simplista dos textos
de Marx, contra a qual Engels já se dirigiu no fim de sua vida. Numa letra
endereçada a Joseph Bloch em Köningsberg, em 1890 (Etudes Philosofiques, p. 238), Engels escreve:
A partir da concepção materialista da
história, o fator determinante na história é, em última instância, a produção e
a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu jamais afirmamos tal coisa. Se,
depois, alguém distorce essa colocação para lhe fazer dizer que o fator
econômico é o único determinante ele a transforma numa frase vazia, abstrata,
absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da
superestrutura - as formas políticas da luta de classe e seus resultados -- as
Constituições estabelecidas uma vez a batalha ganha pela classe vitoriosa,
etc., -- as formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no
cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas,
concepções religiosas e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos,
exercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas; em muitos casos
determinam de modo preponderante a forma. Há ação e reação de todos esses
fatores... Senão, a aplicação da teoria a não importa que período histórico
será mais fácil que a solução de uma simples equação de primeiro grau.
Nós fazemos nossa história nós
mesmos, mas com premissas e em condições determinadas. Além disso a história se
faz de tal modo que o resultado finai se libera sempre dos conflitos de um
grande número de conflitos individuais...
É Marx e eu mesmo, parcialmente, que devemos
assumir a responsabilidade do fato a que, às vezes, os jovens atribuem mais
peso que não ao lado econômico...
Mais adiante, Engels insiste:
as superestruturas reagem também umas contra
as outras e contra a base econômica. Não é que a situação econômica seja a
única causa ativa e que tudo mais não passe de um efeito passivo. Mas há
interação no seio da qual o movimento econômico termina por abrir um caminho
necessário através de uma quantidade infinita de azares.
Vejamos aquilo que fica evidente:
o simples mecanismo materialista segundo o qual as ideologias decorrem
simplesmente das condições econômicas não tem mais sustentação que o mecanismo
idealista inverso que quer fazer crer que as relações sociais teriam sua origem
nas ideias e nos desejos dos homens. Afirmando que tudo está ligado e que as
coisas atuam umas sobre as outras, fazemos intervir um mecanismo não menos
estéril, graças ao qual seria felizmente possível de tudo explicar, mas também,
infelizmente, de nada explicar.
Que é ideologia? É um conjunto de
erros determinado por uma base ilimitada de diferentes efeitos dos quais faz
parte as relações materiais, as tradições, as tentativas de engano tanto quanto
os homens não são capazes de se imaginar o que são e expressá-lo com palavras,
ou seja, por meio de termos existentes? Qual a relação das ideologias com a
realidade? Não é elas uma consciência equivocada? Nesse caso os homens iriam
melhor se não se baseassem mais sobre ideologias. Ou ao contrário, necessitam
eles de uma coisa como a ideologia para assumir a realidade? Que ocorre quando
o discurso ideológico torna uma sociedade possível, por aplacar os conflitos?
Qual o papel das instituições públicas e privadas que ensinam essas quimeras --
as escolas, os editores, as igrejas, os estúdios de televisão, as prisões, os
trabalhadores sociais? Essas são questões que preocupam depois de 120 anos os
pensadores influenciados por Marx.
Ideologia é coisa complicada, mesmo se espontaneamente o sentido
comum dirá aqui o contrário -desde que para ele, como escreve belamente Terry
Eagleton, Critiques et Théories
Litteraires, Paris, (PUF, 1994) -- a ideologia como o mau hálito é sempre
os outros que o tem. Não resta muita coisa do edifício configurado, de dois níveis,
do debate entre os sucessores de Marx, sobretudo após ter sua desarrumação por
marxistas não ortodoxos como Antonio Gramsci, Georgy Lukàcs, Karl Korsch ou
Louis Althusser. No discurso sociológico e filosófico de hoje o termo ideologia
descreve efetivamente menos uma espécie de opinião pela qual uma ordem
estabelecida procuraria se justificar, do que um campo semântico com a ajuda do
qual os homens interpretam sua
relação com as condições de existência. Quando nós refletimos sobre isso não
devemos ter em mente um editorial; aproximamo-nos de seu mistério, se nós os
representamos com aquilo que Gramsci chama de senso comum.
Esses campos semânticos
ideológicos são uma espécie de filosofia espontânea própria a cada um, de
formações complexas de montagem de termos, noções e imagens, um conglomerado de
erros, de ilusões e de mistificações, mas também de evidências e de coisas mais
conhecidas. O que a distingue de uma simples persuasão na intenção de dominar é
primeiramente o fato de que os que a propagam e creem eles mesmos e, em segundo
lugar, que a ela se agarram desejos, aspirações e esperanças, tais como, por
exemplo, a necessidade de segurança ou de promessas para o futuro.
O contexto semântico ideológico é
particularmente nítido nas máximas populares, cada um é artesão da sua fortuna. Todo trabalho merece salário.
Funciona por mecanismo de refluxo. Se invertermos o ditado em cada um é artesão de seu infortúnio,
fica menos sedutor. Um fenômeno claro quando a análise social emprega um termo
tirado das ciências da natureza. Então, a maioria das gentes (pessoas) estará
pronta a aprovar espontaneamente que é também impossível rebelar-se contra leis
econômicas como o é rebelar-se contra a lei da gravidade -- sem pensar que a
palavra lei, em física, significa algo totalmente diferente que em ciências
sociais. Primeiro, para as ciências sociais que analisam as relações sociais, a
lei não é nunca mais que algo relativo e aproximativo; em segundo lugar, isto à
condição somente que as condições não mudem.
A ideologia nos explica menos o
que os homens pensam exatamente e porque ela não delimita o imaginável numa
sociedade concreta -- e o que existe além desse horizonte. Portanto, o
imaginável é sempre prescrito pela sociedade e a história. É frequente que as
evidências espontâneas que se encontram em violento conflito com as realidades
conhecidas persistem numa só e mesma sociedade. Assim, o discurso neoliberal
fez admitir totalmente que as comunidades enriquecessem poupando. O Estado
enxugado que gera seu orçamento à un sou
près aparenta ser o fiador da prosperidade, se bem que todo economista,
todo conselho em investimento e todo fabricante sabe pertinentemente que na
nossa sociedade não se enriquece economizando, só se pode enriquecer
investindo.
Em nossa época se deu por palavra
de ordem desideologizar, ela mesma impregnada de ideologia. As ideias trabalham
em nós e faríamos por bem desconfiar disso. Constatamos com que sutileza o
materialismo dominante determina as ideias dominantes e como o ser determina a
consciência de maneira complexa e não sob forma de uma equação do primeiro
grau. Pois as ideologias, os desejos, a ignorância e as evidências -- sem falar
das evidências materiais dos fenômenos da
superestrutura, como o direito, o Estado, a indústria cultural -- impõem
sua autonomia e repercutem de modos os mais diversos sobre a base social. Como
se espantar que o velho Friederich Engels tenha-se posicionado contra os jovens
exegetas de Marx que por vezes dão maior peso que lhe não é devido quanto ao
econômico.
Uma vista d'olhos sobre a
imprensa nos mostra quase quotidianamente como certa velha querela (arenga) em
torno da base e da superestrutura é atual. Temos um reflexo materialista
profundamente enraizado em nós, espécie de preconceito refratário a qualquer
argumento. Nosso bom senso comum se apropriou de vago marxismo quotidiano;
somos instados a ater-nos aos fatos, postulado da imprensa popular que ama
apresentar sob forma de tabloide aquilo que toma por fatos. Durante décadas, a
crítica da ideologia ganhou foros de hermenêutica da suposição (suspeita), que
consiste em buscar nas gentes que alimentam outras que não as suas os motivos
que realmente as animam e lhes desmascaram. Quaisquer que sejam as razões e os
argumentos invocados pelo personagem em questão, são simples motivos econômicos
que lhes animam.
Que alguém ouse ainda afirmar que
Marx seja um cão morto. Entretanto é
incontestável que na hora atual somos todos marxistas, mesmo se primitivos. Um
século e meio após Marx, seu materialismo, vulgarizado, surge como uma nova
teologia que faz de toda impulsão econômica uma espécie de Deus desconhecido
(Gramsci) que tudo decide.
Podemos imaginar a venenosa
reação de Marx a um marxismo de imbecis. Esse mesmo Marx que respondeu a
discípulos franceses, do tipo eu-sei-tudo em tom doutrinário, por uma expressão
que se tornou célebre: Tudo o que sei é
que não sou marxista.
Mas o que é que ocorre se a força
histórica da teoria da ideologia inspirada de Marx se revele justamente em suas
deformações? Com efeito, se bem que esses preconceitos econômicos não
constituam nunca uma aplicação do materialismo histórico, o materialismo
histórico se aplica perfeitamente a eles: o fato de que muitos seres humanos
não sejam capazes de pensar mais que qualquer um deles possa ser movido por
outros motivos que não os materiais ilustra, talvez, o quanto nossas concepções
espontâneas são tingidas de espirito capitalista.