Edmilson Carvalho - Arquiteto de formação, trabalhou sempre em
planejamento econômico, área em que se especializou na CEPAL (Comissão
Econômica para a América Latina). Teve destacada atuação na SUDENE, em Recife
(1962 a 1973) e na Secretaria de Planejamento da Bahia. Professor de Economia
Política e Teoria Política. Há cerca de 20 anos participa da Oposição Operária
(Opop), grupo que edita a revista Germinal.
De sua autoria no blog: franksvensson.blogspot.com.br : é Gramsci e a produção das categorias do conhecimento, A cidade do capital, A totalidade, e agora.Porque a essência não pode ser apropriada imediatamente?
De sua autoria no blog: franksvensson.blogspot.com.br : é Gramsci e a produção das categorias do conhecimento, A cidade do capital, A totalidade, e agora.Porque a essência não pode ser apropriada imediatamente?
O conceito é a chave da descoberta da essência que reside no ser e
que o preside, mas que está envolta pela esfera do fenomênico. Uma totalidade contém
o que aparece, o imediatamente captado pela percepção, e o seu oposto, que não
aparece, a sua essência, só pode ser
captada por meio do pensamento abstrato.
A essência não é algo estranho ao
fenômeno, mas parte dele, a mais fundamental, a mais remota, a mais íntima e a
mais profunda, a que corresponde à sua lei. O pensamento dialético leva em
consideração a aparência e a essência do objeto, apenas colocando o problema da
passagem da primeira à segunda instância, o que constitui uma ultrapassagem que
só pode ser lograda pelo uso das categorias e dos conceitos -- numa palavra,
pelo método dialético. A partir de tudo o que foi afirmado até aqui, surge a
pergunta inevitável: por que a essência não é imediatamente apropriada pelo
intelecto? A questão é assim colocada pelo filósofo Karel Kosik (1976, p. 12)
:
O fenômeno não é, portanto, outra coisa senão aquilo que -
diferente-mente da essência oculta - se manifesta diretamente, primeiro e com
maior freqüência. Mas por que a 'coisa em si', a estrutura da coisa, não se
manifesta imediata e diretamente? Por que são necessários um esforço e um
desvio para compreendê-la? Por que a 'coisa em si' se oculta, foge à percepção
imediata? De que ocultação se trata?
O mesmo Kosik tenta dar uma
resposta a essa questão, especialmente em duas passagens da mesma obra. Numa
primeira, ele afirma que
o impulso espontâneo da práxis e do pensamento para isolar os fenômenos,
para cindir a realidade no que é essencial e no que é se-cundário, vem sempre
acompanhado de uma igualmente espontânea percepção do todo, na qual e da qual
são isolados alguns aspectos L..1 (KOSIK, 1976, p. 15).
Ou seja, a percepção apanha a
totalidade do fato -- fenômeno e essência --, mas não pode, por si só, evitar a
cisão da realidade que ela mesma apreende; a própria percepção que, com o
concurso da práxis, cinde e isola a essência do fenômeno, deixa de reconhecer a
essência que ela mesma capta, que carrega embutida em si, mas que, isolada,
está e permanece, contraditoriamente, oculta a si mesma. Numa outra passagem,
ele completa sua explicação:
Os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem
espontaneamente no pensamento comum como realidade (a realidade mesma) não
porque sejam os mais superficiais e mais próximos do conhecimento sensorial,
mas porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana
(KOSIK, 1976, p. 15)
As afirmações de Kosik podem ser
analisadas por mais de um ângulo. Um deles é o seguinte: não é porque as formas
fenomênicas das coisas sejam as mais superficiais e as mais próximas do
conhecimento sensorial que elas se reproduzem espontaneamente no pensamento
comum como a realidade mesma. De
fato, ainda que o conhecimento sensorial e perceptível se coloque de frente aos
fenômenos -- portanto próximo deles -- e que esses mesmos fenômenos, como já
foi visto, já estejam coetânea e ontológica-mente juntos e ligados às suas
respectivas essências -- portanto essas essências também próximas das sensações
--, as sensações e as percepções não podem, como tais, passar do fenomênico,
ultrapassá-lo e desvendar a esfera do essencial. Já aqui existe uma
complicação: se as formas fenomênicas, que se reproduzem no pensamento comum,
já contêm, enquanto totalidades, as suas essências, por que as formas
essenciais também não se reproduzem no pensamento comum simultaneamente?
A gnosiologia presente nos
Cadernos filosóficos de Lenin não deixa dúvidas a esse respeito: na produção do
conhecimento científico, como na produção de qualquer conhecimento, a mediação
da sensação e da percepção nunca poderá ser abolida; como também não existe
hipótese alguma na qual a apreensão sensorial -- obtida sempre ligada à
percepção, como já foi visto mais atrás -- possa captar as formas essenciais
diretamente. Para captar as formas essenciais, as mais profundas, embora também
próximas, o conhecimento sensorial
não basta, e é a partir daí que se faz necessário o conhecimento categorial.
Entrementes, das afirmações
adicionais feitas por Kosik pode-se concluir comodamente que o fracionamento
perceptivo do real na cabeça do homem na esfera do cotidiano é um resultado
normal de uma práxis que já realiza nesse mesmo cotidiano, em si e para si, tal
fracionamento. O homem alcança a
espontânea percepção do todo; porém, desse todo, que contém dentro de si a essência
e o fenomênico, o homem só capta, de imediato, o fenomênico, e a essência, que
está ali embutida, não lhe aparece de imediato -- cisão que é, para Kosik,
produto da práxis cotidiana. É necessário aduzir que existe algo mais do que a
práxis cotidiana no rol de causas da impossibilidade da apreensão direta das
formas essenciais das coisas pelo intelecto humano.
De fato, Kosik (1976, p. 15)
começa por afirmar que
o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana [...
e que] o pensamento comum é a forma ideológica do ser humano de todos os dias.
Mas antes já tinha afirmado que o
elemento subordinado, o pensamento, e o elemento determinante, o impulso
espontâneo da práxis,
tinham a faculdade de isolar os fenômenos [... e] cindir a realidade no
que é essencial e no que é secundário [...] (KOSIK, 1976, p. 15).
Para Kosik, portanto, a cisão da coisa na consciência, de um lado em
fenomênico diretamente apropriável e, de outro, em conceito que contém a
essência inalcançável imediata e diretamente, resulta de uma práxis limitada --
a práxis social cotidiana.
Disso pode ser deduzido -- embora
Kosik não o tenha afirmado explicitamente -- que, se fosse possível realizar
uma práxis capaz de abarcar a coisa
simultaneamente em todos os seus aspectos e em todas as suas dimensões,
ter-se-ia uma compreensão igualmente totalizante da coisa; ter-se-ia, pois, não só sensações e percepções, mas
sensações, percepções e conceitos, unificados imediatamente, captados ou
captáveis, em face da apreensão do todo em todas as suas dimensões -- resumida
e fundamentalmente em essência e fenômeno -- e de um só golpe.
Queremos insistir em que a
afirmação de Kosik induz a pensar que uma abordagem prática simultaneamente
totalizante, na hipótese de tal abordagem ser possível (e tal abordagem só
seria possível numa sociabilidade completamente desfetichizada, vale dizer,
numa sociedade e, portanto, numa sociabilidade comunista), fundiria e exibiria
a sensação, a percepção e o conceito numa só coisa e num só ato sensitivo-perceptivo-intelectivo,
do que resultaria que o pensamento passaria a ser um pensamento imediatamente
científico; ou, dito de outra forma, que a filosofia, a lógica e a ciência
deixariam de constituir um processo de descoberta e elaboração específica e sistemática
para ser atividade humana normal.
A afirmação de Kosik, no sentido
que estamos ressaltando aqui, fica mais evidenciada ainda quando se conhecimento
de que o que ele denomina de prática
cotidiana, ambiente cotidiano, atmosfera comum da vida humana ou, como
é de sua preferência denominar, mundo da
pseudoconcreticidade, nada mais é do que o mundo do tráfico e da
manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens, numa palavra, o mundo
capitalista. É o que ele manifestamente afirma:
A práxis de que se trata neste contexto é historicamente determinada e
unilateral, é a práxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do
trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições
sociais que sobre elas se ergue. (KOSIK, 1976, p. 10)
.
De onde se deduz que, uma vez
superado esse mundo -- o mundo da
pseudoconcreticidade, o mundo do
cotidiano, o mundo cuja práxis e cujo pensamento cindem o real em aparência
e essência --, numa palavra, inaugurada uma sociedade comunista (ausência de
todas as dimensões fetichizadas), que implicaria, por definição, uma outra
práxis, ter-se-ia, com e nessa nova práxis, a não-cisão da coisa em si em aparência e essência. Portanto, a concepção de Kosik
localiza os problemas do pensamento e da produção do conhecimento na práxis que
abarca as determinações sociais da divisão do trabalho, das classes sociais e
da hierarquia social daí resultante.
De fato, do ponto de vista de
Lenin as coisas não acontecem da maneira como pensa Kosik. Porque, segundo
Lenin, mesmo quando for possível abarcar simultaneamente, pela práxis, uma
realidade concreta em todos os seus aspectos, ângulos e dimensões e, ainda
mais, mesmo quando os homens puderem viver numa sociedade sem a atual divisão
do trabalho, sem as classes sociais, sem resíduos de todas as modalidades do
fetiche e sem as ideologias, ainda assim o pensamento continuará a ter de
realizar um détour -- e não ir
diretamente -- para passar da aparência à essência. Não é que Lenin não atribua
importância a esses aspectos sociais -- divisão do trabalho, etc. -- como
barreiras que se antepõem à produção científica do conhecimento; para ele, não
obstante residir, nesses fatores, grande responsabilidade na obnubilação da
visibilidade gnosiológica dos fatos sociais, não se pode deixar de fora
considerações de ordem filosófica que também têm importância decisiva na
ultrapassagem lógica e gnosiológica do fenomênico à essência. De maneira que
estamos aí diante de uma divergência de or-dem gnosiológica que não é uma
divergência qualquer e que precisa, por isso mesmo, ser levada em consideração
Examinemos o problema, em
primeiro plano, pelo ângulo da ideologia que decerto constitui uma ação prática
e social a qual implica uma relação dialética entre uma classe dominante que
emite e outra(s), dominada(s), que intemaliza(m) as formas ideológicas. Sem que
vejamos essa relação como um trânsito de via única e isento de tensões e
mediações muito complexas, o eixo da questão prática e social da fonte e
propagação das ideologias reside aqui:
As ideias da classe dominante são as idéias dominantes em cada época; ou,
dito em outros termos, a classe que exerce o poder material dominante na
sociedade é, ao mesmo tempo, a que exerce seu poder espiritual dominante. A
classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe com
eles, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual. O que faz com que
se lhe submetam, ao mesmo tempo, por termo médio, as idéias dos que carecem dos
meios necessários para produzir espiritualmente. As idéias dominantes não são
outra coisa que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as mesmas
relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, as relações que
fazem de uma determinada classe a classe dominante são também as que conferem o
papel dominante a suas ideias. (MARX; ENGELS, 1970, p. 50-51)
Para que as ideologias possam
cumprir seu papel de formas ideais e espirituais de dominação de classe, é
necessário que elas reiterem a cisão do real em fenômeno de um lado e essência
de outro, um imediatamente captável, outro, não. Essa cisão, assim posta,
também contribui para uma visão invertida dos fatos e das relações sociais, de
maneira que sobretudo as classes dominadas ficam impedidas de tomar consciência
de sua situação no sistema de poder da sociedade. Daí porque nesse âmbito, à
medida que, com o desaparecimento das classes sociais, durante todo um período
de transição adrede dirigido todas as determinações ideológicas sejam
finalmente eliminadas, todos os bloqueios ideológicos à visibilidade da
essência das coisas terão sido
igualmente eliminados e os homens terão rompido com uma das maiores barreiras
que os separa de uma visão científica do mundo social.
Já por este ângulo, todos os
homens terão as mesmas possibilidades de acesso a uma inteligência científica
das totalidades, que hoje lhes são negadas pela sociabilidade capitalista --
vale dizer, todos os homens terão disponíveis os mesmos meios e as mesmas
possibilidades de alcance intelectivo, na sua práxis social, do essencial que
as mais diversas modalidades de totalidades comportam.
Contudo, o imbróglio ideológico é
apenas um dos bloqueios sociais que dificultam o acesso às essências das mais
diversas modalidades de totalidades na sociabilidade da ordem social do capital.
Uma vez quebrado esse bloqueio, grande passo terá sido dado para que qualquer
homem possa pensar como um cientista -- o que não quer dizer que numa sociedade
sem classes todos os homens se tornem de fato cientistas, posto que entre
dispor de todos os meios e tornar-se cientista existe ainda certa diferença.
Mas, de todo modo, os homens médios de uma sociedade sem classes pensarão muito
próximos do que se entende por pensamento científico numa sociedade de classes
como a atual, porque os meios para pensar com método, levando o homem social
médio a elevar o nível e a qualidade de seu pensamento, serão facultados por
uma educação normalmente proporcionada a todos.
De certa forma, é isso o que se
passa no terreno da arte:
[...] numa organização comunista da sociedade desaparece a inclusão do
artista à limitação local e nacional, que corresponde pura e unicamente à
divisão do trabalho, e a inclusão do individuo nesta determinada arte, de tal
modo que só haja exclusivamente pintores, escultores, etc., e o nome mes-mo
expressa com bastante eloqüência a limitação de seu desenvolvimento
profissional e sua dependência à divisão do trabalho. Numa sociedade comunista
não haverá pintores, senão, em suma, homens que, entre outras coisas, se ocupam
também em pintar. (MARX; ENGELS, 1970, p. 470).
Também aqui, no terreno da arte,
da mesma forma que no da ciência, a todos os homens serão dados os mesmos meios
para que possam produzir pintura, música, literatura, teatro, etc. O que Engels
diz aí é que numa sociedade comunista os homens não serão exclusivamente
pintores, escultores, etc., mas homens que, libertados das amarras da divisão
burguesa do trabalho, terão plenas faculdades e meios para pintar, esculpir,
compor, etc. Mas Engels não vê nisso qualquer impedimento para que um ou outro
indivíduo possa desenvolver um grande talento ao pintar, esculpir, compor, etc.
- numa palavra, para que um ou outro indivíduo possa tornar-se um grande
artista. Fica aberta a seguinte possibilidade: todos os indivíduos, por se
terem libertado da ideologia e da divisão social burguesa do trabalho e por receberem
da sociedade os mesmos meios de criação e expressão artística, poderão fazer
também arte, e, entre esses, haverá alguns (certamente muitos) que, motivados
por paixões e tensões subjetivas pessoais (e por que não?), poderão tomar-se
excepcionais artistas, decerto mais livres e maiores do que os artistas das
diversas sociedades de classe, o que, a bem da verdade, não constituirá
problema ou perigo algum para uma sociedade igualitária - muito pelo contrário.
A sociedade comunista liberará
todos os homens de todas as travas que os tomam socialmente desiguais, mas não
tornará todos os homens iguais, ainda que num grau superior, como novos
produtos sociais estandardizados. Todos os homens atingirão um grau máximo de
talento e, desta maneira, todos se elevarão na mesma medida em que
multiplicarão a variedade de expressões individuais; de onde se depreende que,
uma vez rompida a divisão social do trabalho, os homens poderão fazer arte em
iguais condições sociais, mas esse grau de libertação, que é da maior
importância, não basta para fazer de qualquer individuo um artista de gênio e
muito menos para fazer de todos os indivíduos artistas geniais. O processo é o
mesmo para a esfera da produção científica. Mas se, por um lado, todos os
homens estarão livres para pensar com método cientifico, alguns deles podendo
produzir obras de profundo alcance científico, por outro lado o imbróglio do
acesso ao pensamento superior (o que se situa na busca da essência para a
apreensão das totalidades) não terá sido anulado só com o fim das ideologias.
Esta questão suscita uma outra,
também fundamental: durante a transição socialista, as ideologias herdadas da
sociabilidade burguesa não desaparecerão simplesmente com a ruptura das
estruturas sociais (relação-capital, divisão do trabalho, a própria mercadoria,
a troca mercantil, etc.). A superação de tais heranças da sociedade burguesa
exige métodos próprios e especificamente adequados. Com efeito, a esfera
ideológica, ainda que tenha origem, em última instância, como sempre afirmaram
Marx e Engels, nas determinações de classes da sociedade, possuem uma esfera
elástica de autonomia relativa que, por isso mesmo, exigem métodos próprios de
superação.
As transformações estruturais,
que constituirão a base da sociedade durante a transição, facilitarão, como
premissas básicas, a superação dos traços ideológicos e culturais e evitarão,
no futuro, que essas formações ideológicas voltem a aparecer, mas não
garantirão o desaparecimento automático das velhas formas ideológicas e
culturais. E mais: sua erradicação, durante a fase de transição socialista,
jamais será lograda por uma educação
de massas levada a efeito por manuais,
livrinhos vermelhos e outras formas
simplistas e caricatas de educação
que não ensinam os homens a pensar, mas apenas a reproduzir absurdas reduções,
estereótipos, slogans e todo tipo de lugar-comum — um senso comum no lugar de
outro senso comum.
A questão do fetiche, quer se
trate do fetiche da mercadoria e do dinheiro, quer se trate de todas as demais
formas de fetiche que perpassam a produção capitalista como um todo, está
totalmente ligada à divisão social do trabalho no quadro das relações sociais
de produção capitalistas. Uma vez desfeita a propriedade privada dos meios de
produção e supressas todas as restantes relações e formas que, para além da
propriedade (a troca e a circulação mercantil, a hierarquia imutável nas
unidades de produção, a irrevogabilidade dos cargos, etc.), recorrem à
sobrevivência do capital, as (novas) relações sociais de produção tomar-se-ão
absolutamente visíveis e o fetiche, coisa do passado. Deve ser notado que os
efeitos dissimuladores do fetiche como, por exemplo, o da mercadoria, constituem
formas de falsa consciência, mas, por serem formas estruturais, diferem das
formas ideológicas. O desaparecimento das relações sociais fetichizadas também
elevará o conjunto de possibilidades do homem médio a alcançar o nível do
pensamento científico; mas, como tentaremos mostrar mais adiante, isso também
não é tudo.
Posto isto, passemos agora à
divisão do trabalho. Mesmo numa sociedade socialista moderna, ou mesmo numa
sociedade comunista, os trabalhadores diretos já não poderiam mais recorrer a
um processo produtivo, como era o artesanal, pelo qual pudessem, no e pelo ato
da produção, dominar o conhecimento e o manejo de todos os componentes e todas
as operações parcelares dos valores de uso produzidos. Como poderia um
trabalhador que operasse na produção e construção de automóveis, aviões,
máquinas complexas, hidrelétricas, etc., conhecer e dominar todos os
componentes e todas as operações parcelares presentes na produção de tais
produtos?
Como poderia um trabalhador
conhecer e produzir, por exemplo, as mais de 20 mil peças componentes e outras
tantas operações parcelares inscritas na produção de um automóvel? Impossível,
ate porque a produção socialista não devera negar, mas levar adiante, os
avancos positivos -- tecnológicos, científicos, etc. -- herdados da produção
capitalista. Nestes termos, nenhum trabalhador poderia alcançar, pela pratica
direta do trabalho, como quer Kosik (1976), todos os aspectos de um dado
produto, ou seja, a inteireza da totalidade de aspectos, componentes e relações
desse produto e, portanto, de sua produção.
A universalidade perdida pelo
trabalhador (ex-artesao) durante a produção capitalista, que lhe retribuiu com
a sua alienação, seria resgatada num outro plano, no da concepção do produto --
no caso em questão, do valor de uso produzido. A compreensão da totalidade do
produto, que era dada ao artesão pelo trabalho direto em toda a linha de produção
daquele, seria agora reapropriada, não pela já impossível atuação direta do
tra-balhador socialista ou comunista em todas as operações parcelares de um
produto complexo, mas pelo rodizio na linha de produção, portanto, na faculdade
de operar sobre uma gama muito major e livre de posições numa linha de produção
de um valor de uso qualquer e, antes e acima de tudo, pela participação e compreensão
coletiva na concepção do produto e do processo de produção do produto -- sua
finalidade social, sua estrutura essencial, o curso transformativo que ele
devera ter durante seu processo de produção.
Sendo tudo isso uma inevitável exigência
do avanço tecnológico e social da produção socialista, ninguém sozinho poderia,
como sugere Kosik (1976), ter acesso imediato, pela práxis do trabalho, a todos
os aspectos de um dado produto (valor de uso) complexo. A superação da alienação
do trabalho na produção comunista seria dada, em parte, pelo rodizio do
produtor direto em vários estágios da divisão e do processo de trabalho e
completada na sua participação na concepção não só de cada produto, aqui apenas
valor de uso, como também, e principalmente, do próprio processo de trabalho.
A questão deve agora ser posta nos seguintes
termos: a divisão do trabalho comunista, que implicaria a superação da alienação
com o rodizio de trabalhadores no processo de trabalho e produção, acompanhado
da formulação e da concepção do produto e do próprio processo de trabalho,
bastaria para eliminar a cisão de todos os aspectos do real em fenômeno e essência?
Não resta dúvida de que a superação
da divisão capitalista do trabalho, nos termos mais atrás colocados, devolveria
o pleno domínio do conhecimento do produto e de seu processo de produção a seus
produtores diretos; todavia, a questão gnosiológica não se esgota na pura,
exclusiva e imediata esfera da produção dos produtos (valores de uso)
socialmente necessários.
É evidente que, com a eliminação
daqueles traços característicos do mundo social do capital, o processo de
produção científica do conhecimento ficaria imensamente facilitado e acessível
praticamente a todos, mas jamais poderia acontecer naturalmente. O máximo que
uma abordagem simultaneamente totalizante de uma realidade dada ou isenta dos
referidos bloqueios sociais e ideológicos poderia proporcionar ao intelecto
seria uma quantidade maior de aspectos constitutivos da referida
realidade/totalidade e/ou a abordagem dessa realidade/totalidade sem as
interdições estruturais e ideológicas, que desta forma, sim, facilitaria, mas
nunca conduziria naturalmente à produção da síntese conceituai que é própria do
trabalho da consciência. Isto equivale a dizer, na linha de pensamento
acrescentada por Lenin, que ainda teríamos um problema de ordem filosófica a
resolver: o problema gnosiológico. Na mesma ordem de raciocínio, pode-se afirmar
que a eficácia da apreensão conceitual de um objeto aumenta com a abordagem
prática e perceptiva do maior número de aspectos, momentos, relações e
determinações de uma realidade/totalidade; contudo, esse aumento de
possibilidades não culmina, por si só - e, forçosamente, como mera quantidade
disponível --, numa produção que é uma ruptura qualitativa do produto conceitual.
Esse é sempre, como ressaltou Lenin, um trabalho (filosófico) de abstração --e
é preciso que a abstração não seja considerada apenas como um produto da
divisão do trabalho, mas como instrumento do conhecimento (LEFEBVRE,
1969, p. 119).
A transformação mais
revolucionária é a que proporcionará uma abordagem mais completa do objeto a
ser transformado, mas se trata de uma transformação que jamais dispensará o
empreendimento teórico sistemático e correspondente. Seria uma ingenuidade
pueril pensar que uma sociabilidade desfetichizada pudesse anular a diferença
entre fenômeno e essência, sensação e conceito e que, consequentemente,
pudéssemos aposentar de vez a ciência porque a verdade científica seria direta
e integralmente apanhada por cada pessoa, bastando-lhe, para isso, que
participasse de uma práxis realizada no interior de relações sociais não mais
fetichizadas.
O busílis da questão pode ser
finalmente enunciado: numa sociedade desfetichizada e sem divisão alienante do
trabalho, homens e mulheres poderão, no âmbito do processo e da divisão do
trabalho social, ver e tocar os objetos (valores de uso) e fatos sociais por
todos os ângulos possíveis, mas só os alcançarão por meio das sensações e
percepções. A partir daí, ficará muitíssimo mais próxima a formação de
conceitos, mas os conceitos e as categorias científicas nunca serão produzidos
direta e imediatamente, vez que as sensações e as percepções, trilha
gnosiológica indispensável, não são conceitos.' Isso quer dizer que o trabalho
intelectual que os transforma em conceitos não será desnecessário, embora
facilitado e posto ao alcance do indivíduo médio. O trabalho científico de
elaboração de conceitos e categorias científicas seguirá sendo necessário,
ainda que socialmente disponível a todos. O homem social médio terá eliminado
todos os bloqueios sociais ao trabalho científico, mas terá de enfrentar o
último bloqueio -- o gnosiológico, que resulta da recorrência inarredável de
começar pela apreensão sensorial e perceptiva das coisas e dos fatos. Esta conclusão é diretamente deduzida da
gnosiologia leninista dos Cadernos
filosóficos e merece apenas alguns desdobramentos a mais. Conceitos e
categorias não são apanhados diretamente do meio natural e social no âmbito da
práxis social, pelo simples motivo de que são produtos de uma produção
intelectual feita obrigatoriamente a partir do material sensitivo e perceptivo
captado das coisas, das relações, dos fatos e dos processos sociais no âmbito
da mesma práxis social.
Quando o analista possui grande
domínio dos conceitos e das categorias científicas, a distância entre a
apropriação sensorial da coisa e o
trabalho intelectual dos conceitos e das categorias pode tornar-se tão pequena
que tudo se passa como se esses conceitos e essas categorias -- o trabalho
teórico -- substituíssem o fluxo das sensações -- também elas fenomênicas -- e
a essência da coisa estivesse sendo
apropriada direta e automaticamente; é como se tal analista pensasse
teoricamente a coisa já a partir do
imediato contato prático com ela ou como, o que dá na mesma, se os conceitos e
as categorias substituíssem a apropriação sensorial. Por maior que seja o
domínio das categorias científicas pelo analista, ou seja, por mínima que seja
a distância entre a apropriação sensorial e a apropriação conceitual da coisa, esses dois momentos nunca serão
fundidos num só ato, vale dizer, nunca o ato intelectivo da coisa substituirá a mediação da
apropriação sensorial da coisa.
Tampouco o fato, aqui já analisado, de que a prática do trabalho e da ciência
já definem a seleção dos aspectos mais relevantes para a apreensão mais
completa do conhecimento dos fatos naturais e sociais elimina a distinção entre
sensação e percepção e entre essas faculdades e o conceito -- ou seja, essa
potencialização do conhecimento não dispensa o détour assinalado por Lenin.
Por mais que o homem domine as
categorias do pensamento científico, por mais que ele, ao captar os fenômenos,
tenha tais categorias à sua disposição no seu cérebro, ele, a despeito de poder
processar muito rapidamente o conhecimento científico, não pode captar as
formas essenciais, no plano da percepção, da sensação, por meio de ideias
cientificamente elaboradas. O homem colhe sensações, não conceitos e
categorias, dos fatos sociais imediatos. O que há de novo é que numa sociedade
desfetichizada a possibilidade de produzir conhecimento científico será uma
possibilidade social dada a todos, e que, num ambiente assim liberado de todos
os bloqueios à plena realização humana dos indivíduos, produzir conhecimento
científico passa a ser tão comum como ter de preparar alimentos ou fazer
exercícios físicos para a reprodução dos indivíduos livres.
Tudo isso só vem mostrar como os pensadores do século XX, inclusive
marxistas, não deram ainda a devida atenção à riqueza e à densidade científica
dos Cadernos filosóficos de Lenin, um colossal aprofundamento de aspectos
essenciais da gnosiologia pressuposta, mas não desenvolvida, por Marx e Engels
(LEFEBVRE, 1969, p. 111-126).