por Bruno Lamas
Apresentação efectuada em Lisboa, a 3 de Outubro de 2013, na
sessão "A 'explosão da cidade' e a trajectória do capitalismo" do
seminário "Pensamento Crítico Contemporâneo e Cidade", organizado
pela Unipop e a revista Imprópria, no âmbito da Trienal de Arquitectura de
Lisboa 2013.
Este artigo encontra-se
em http://resistir.info/. O original encontra-se
em o-beco.planetaclix.pt/bruno-lamas2.htm.
A produção capitalista procura constantemente superar essas barreiras que
lhe são imanentes, mas só as supera por meios que lhe antepõem novamente essas
barreiras e em escala mais poderosa. A verdadeira barreira da produção
capitalista é o próprio capital (...). Karl Marx, Livro III de "O
Capital".
Há já alguns anos que se constata
o facto histórico certamente assinalável de que o mundo é hoje um lugar
predominantemente urbano, ou seja, que mais de metade da população mundial vive
em cidades. Mas essa constatação recorrente parece vir sempre acompanhada por
dois sentimentos contraditórios: por um lado, uma espécie de celebração do que
parece considerar-se ser em si mesmo uma conquista civilizacional; mas, por
outro lado, uma profunda sensação de assombro, porque na verdade não sabemos
exactamente muito bem como chegámos aqui, porque não se prevê que a tendência
geral refreie e porque os problemas usualmente associados à urbanização parecem
não parar de aumentar.
É extremamente difícil estimar
com exactidão para as épocas pré-modernas a quota-parte urbana da população
mundial. O que sabemos é que, após oito mil anos de urbanização, a quota-parte
urbana da população mundial no ano de 1800 era de apenas 2% e que desde aí
progrediu rapidamente, chegando aos 30% em 1950, aos 47% em 2000 e, de acordo
com as Nações Unidas, ultrapassou os 50% em 2008. O que aqui desde logo parece
relativamente claro é que a força do crescimento urbano moderno não possui
equivalente nas sociedades pré-modernas. Mas também não é difícil verificar que
nas épocas pré-modernas a urbanização de uma cidade era bastante independente
da urbanização (ou do declínio) de outra, enquanto que a sociedade moderna
constituiu um sistema urbano verdadeiramente mundial, onde a urbanização de
certas regiões não é autónoma do que acontece noutros pontos do mundo. Este
sistema urbano mundial é na verdade pouco mais do que a expressão territorial
do sistema mundial de trabalho abstracto que é o fundamento do capitalismo,
algo que nenhuma estimativa estatística nos poderá revelar por si mesma. Por
isso, a problemática da urbanização moderna também não é apenas a de uma
questão quantitativa ou de mudança de ritmo do crescimento das cidades; é antes
a da própria relação entre cidades e capitalismo.
Claro que o problema pode ser
ultrapassado se simplesmente declararmos, como faz Fernand Braudel, que no Ocidente, capitalismo e cidades, no
fundo, foi a mesma coisa (Braudel 1992: 453) ou que se falarmos em dinheiro, o mesmo é dizer as cidades
(Braudel 1992: 450). Com isto, não só se afirma uma identidade entre cidade,
capitalismo e dinheiro, como se afirma uma identidade trans-histórica de cada
um dos fenómenos consigo mesmo. A cidade pré-moderna e moderna são a mesma
coisa; o capitalismo nasceu no neolítico e o dinheiro sempre foi capital. Ou
seja, está-se no bom caminho para não se perceber nada nem de cidade, nem de
capitalismo, nem de dinheiro. Pouca coisa é tão conceptualmente desastrosa e
ideologicamente consequente quanto a retroprojecção de categorias e fenómenos
especificamente modernos (como o trabalho, o dinheiro, o capital, o mercado,
etc.) em todas as sociedades do passado ou a sua hipostasiação como dados da natureza humana.
Ora, o facto de a cidade não ser
um fenómeno especificamente moderno não significa que possamos assumir para ela
uma mesma identidade trans-histórica em desenvolvimento desde o neolítico. Este
entendimento ideológico positivista, que se limita a constatar a continuidade
histórico-empírica do artefacto urbano e sua inércia material, nunca consegue
ver nas cidades nada para além de um amontoado de pedras, tijolos e cimento.
Contra este banal positivismo, não é por isso inteiramente inútil a distinção
clássica da cidade como associação humana — civitas — e a cidade como lugar e artefacto
físico — urbs. Impõe-se no entanto uma correcção fundamental à interpretação
moderna tendencialmente politicista do conceito de civitas e que nele não vê
outra coisa senão sucessivas formas políticas de associação humana,
conscientemente escolhidas e sem quaisquer pressupostos. É que desse modo
escamoteia-se o carácter inconsciente das próprias formas de integração e
consciência social até hoje existentes e as correspondentes matrizes apriorísticas (Robert Kurz)
autonomizadas de percepção e acção humana; aquilo que Marx tentou captar com o
seu conceito de fetichismo. Esse
momento fetichista estava aliás flagrantemente presente no significado original
do conceito romano de civitas, que exaltava justamente o carácter
transcendental e apriorístico de toda a estrutura social romana, enquanto
vínculo social metafísico acima dos cidadãos, e que entre outras coisas se
traduzia em celebrações religiosas específicas no acto sagrado de fundação das
cidades, a maior parte das quais ainda hoje existentes. O que importa talvez
assumir da distinção civitas/urbs é que se trata, no fundo, da diferença entre
o processo (social) e o resultado (material) intrínsecos à urbanização, mas em
que o primeiro está longe de ser verdadeiramente consciente para os próprios agentes
e o segundo sobrevive historicamente às formas de integração social que lhe
deram origem.
Mas de que modo é que isto nos
pode ajudar a compreender a relação entre as cidades e o desenvolvimento
histórico do capitalismo? Parece-me que devemos fazê-lo através de um
aprofundamento de quatro problemas: em primeiro lugar, realizar uma
diferenciação muito clara entre as cidades pré-capitalistas e capitalistas,
tanto nas suas diferentes formas sociais fetichistas quanto nas respectivas
formas urbanas; em segundo lugar, o processo histórico de constituição do
capital, ou seja, o problema da transição
do feudalismo para o capitalismo e o papel das cidades nesse processo; em
terceiro lugar, a lógica e o funcionamento interno do capitalismo que se move sobre sua própria base (Marx
2011: 195), ou seja, a territorialização progressiva do capitalismo como sociedade do trabalho e modo de produção baseado no valor
(Marx), sobretudo desde a segunda metade do século XIX, que se traduziu na explosão urbana do último século; e em
quarto lugar, a expressão territorial da crise global no sistema urbano
mundial. Claro que não posso aprofundar aqui todas estas questões; mas posso
procurar balizar um pouco melhor as problemáticas e alongar-me um pouco mais
naquelas onde a retroprojecção das categorias modernas é mais comum.
Um dos anacronismos recorrentes é
o de procurar explicar a origem das cidades a partir do mercado. Desse modo claramente ideológico, Jericó (8000 a.C.) e
Çatal Huyuk (7500 a.C.), ou pelo menos Ur (3800 a.C.) e Uruk (4000 a.C.), já se
destacavam como importantes mercados ou até mesmo como importantes locais de produção simples de mercadorias. Com
mais ou menos ênfase, esta ideia aparece em autores tão diferentes como Braudel
ou Jane Jacobs. Claro que desse modo também já se fala aí da existência de
trabalho, dinheiro, valor e capital. E por isso o marxismo tradicional também
participou nesse ontologização das categorias modernas, procurando demonstrar
empiricamente as teses de Engels sobre o papel
do trabalho na transformação do macaco em homem e de que a lei do valor tem validade económica geral pelo menos desde há cinco ou sete milénios (Engels 1986: 328). Por tudo isso, foram
sempre desvalorizadas e minoritárias as tentativas modernas de explicar a
génese das primeiras cidades sem recorrer às categorias modernas de mercado,
mercadoria, trabalho, etc., como aquelas de Rykwert (1988) ou Mumford (1998),
que realçavam antes o carácter originalmente religioso das primeiras ocupações
humanas, inclusivamente ao nível da própria forma urbana. No entanto, mesmo em
textos fundadores do entendimento moderno da origem das cidades não deixam de
aparecer pistas para compreensão do carácter fetichista específico das
sociedades pré-modernas e sua matriz religiosa: o arqueólogo marxista Gordon
Childe, por exemplo, no seu ensaio clássico A
Revolução Urbana, constata que um dos dez critérios distintivos das
primeiras cidades é:
que cada produtor primário pagasse, a
partir do pequeno excedente que ele conseguisse retirar do solo com o seu ainda
muito limitado equipamento técnico, uma dízima ou imposto a uma deidade
imaginária ou rei divino que assim concentrava o excedente. Sem esta
concentração, devida à baixa produtividade da economia rural, nenhum capital
efectivo teria estado disponível (Childe 1950: 11-2).
Apesar dos anacronismos evidentes
de se falar em economia, dízima, imposto e capital já para
o período neolítico, Childe não deixa de constatar que o destinatário dessa
quota do excedente material é uma entidade transcendente ou um ser humano
divinizado, o qual se revela um verdadeiro problema para o seu entendimento da
história como luta de classes. Esta
personificação de um princípio transcendente que caracteriza a forma religiosa
e que atravessa toda a estrutura social das sociedades pré-modernas subsistiu,
com mais ou menos intensidade, até à constituição do mundo moderno capitalista.
Mas neste, o princípio social apriorístico não se encontra mais personificado
em nenhum ser humano mas é antes objectivado nas mercadorias e no dinheiro
(sobre isto ver Kurz, no prelo). E a história desta transformação não deixou de
ficar também ela territorializada.
Apesar das inúmeras diferenças
entre as cidades pré-modernas, há um elemento comum que, embora não seja
absoluto, as distingue em conjunto profundamente das cidades modernas: as
muralhas. Diversos historiadores chamaram já a atenção para este aspecto mas
parece-me que as respectivas ilações estão longe de estarem suficientemente
exploradas. A esmagadora maioria das cidades pré-modernas era muralhada; as
excepções são raras e estão identificadas e justificadas, tanto pelas condições
naturais da própria cidade ou da região onde se insere (ex.: Veneza, ou
Inglaterra e Japão), como pela existência de uma teocracia estável ou de um
poder militar de tal modo avassalador que tornavam as muralhas desnecessárias
(ex. antigo Egipto, Esparta). Nesse sentido, para as sociedades pré-modernas
era absolutamente impensável uma cidade não ser muralhada. Não é por isso mero
acaso que as palavras que em inglês, alemão, holandês, russo e chinês designam
hoje cidade designavam primitivamente
muralha ou seus semelhantes (cerca,
muro, baluarte, etc.). O entendimento usual é que as estruturas das muralhas
medievais subsistiram até ao advento do mundo moderno e, a partir do século
XIX, foram sendo sucessivamente demolidas para dar lugar às expansões urbanas
modernas. Esta história é entretanto muito mais complicada e parece-me que nos
pode ajudar a compreender um pouco melhor a chamada acumulação original do capital.
A propósito da chamada transição do feudalismo para o capitalismo,
historicamente balizada pelos séculos XIV e XVI, duas polémicas são hoje
consideradas clássicas para o entendimento do papel da cidade na constituição
capitalista: o Debate Dobb-Sweezey
(Dobb et al. 1978), desenvolvido na década de 1950 e que foi exclusivamente
intramarxista; e o chamado Debate Brenner
(Aston and Philpin 1995), desenrolado na segunda metade da década de 1970 e com
um carácter teórico e disciplinar mais amplo. Ambos os debates, de modo mais ou
menos explícito, tinham a cidade como pano de fundo da discussão, sem no
entanto prestarem muita atenção às profundas transformações urbanas desse
período. O que aí estava em causa, e mais uma vez de forma anacrónica, era a
cidade como mercado e nada mais. Entretanto, uma questão diversas vezes
colocada em ambos os debates mas nunca verdadeiramente aprofundada foi a da
crescente necessidade dos senhores de novas fontes de receita para alimentar as
guerras daquele período. E aqui se verá que a cidade foi muito mais do que pano
de fundo.
Ora, antes de mais é preciso ter
em mente que aquilo que em termos categoriais está em causa na transição do
feudalismo para o capitalismo é o processo histórico de transformação do dinheiro em capital (Marx). É sabido que o
dinheiro existia antes do capitalismo, mas de modo algum a sua função social
pode ser considerada idêntica à que desempenha no capitalismo. Nas sociedades
pré-modernas o dinheiro possui uma função religiosa ou de intermediação de
relações de reciprocidade e obrigação pessoal (dádivas, contra-dádivas,
oferendas, sacrifícios, etc.), também elas vincadamente religiosas, que de modo
nenhum pode ser equiparada à lógica autonomizada de riqueza abstracta (Marx) e encarnação
de trabalho abstracto (Marx) que é específica do capitalismo. Diversos
historiadores e antropólogos, como Karl Polanyi (2001), Jacques Le Goff (2003)
e Marcel Mauss (2001), forneceram pistas no sentido dessa diferenciação, mas
sem que estas tenham sido estudadas de forma sistemática, como Robert Kurz (no
prelo) procura fazer na sua obra recente Dinheiro
sem valor. Por isso, também de modo algum se pode dizer que as sociedades
pré-modernas possuíam uma economia;
chamada de atenção que aliás há muito foi feita por Moses Finley (1980), no que
respeita a antiguidade greco-romana, e por Polanyi de um modo mais abrangente
com a sua tese da desincrustação da
economia capitalista. A economia, como esfera autonomizada e desvinculada das
relações sociais e caracterizada por um mercado impessoal e anónimo, é algo
específico da sociedade capitalista. E o que aí está em causa é o dinheiro como
pressuposto e finalidade da produção, como deus
das mercadorias (Marx), valor que se valoriza a si mesmo, ou seja, capital.
O que investigações mais
aprofundadas poderão mostrar como absolutamente decisivo para a transformação do dinheiro em capital são
as exigências impostas por aquilo a que historiografia chama a "revolução militar",
quer dizer, os processos históricos estruturais associados à invenção das armas
de fogo no século XIV e à formação das máquinas militares e estatais modernas
que garantiram a supremacia da Europa do homem branco nos séculos seguintes
(seguimos aqui Kurz, no prelo). Foi, por um lado, o canhão (inventado no século
XV) e a formação e manutenção de exércitos de mercenários (que são também os
primeiros verdadeiros assalariados) e, por outro, as brutais e correspondentes
transformações arquitectónicas nas fortificações das cidades que, em conjunto,
se tornaram um verdadeiro monstro insaciável de recursos que promoveu a brutal
monetarização de toda a reprodução social e a constituição do capital.
Palmanova. Do lado da artilharia
temos uma primeira corrida ao armamento, pautada pela procura crescente de
metais, o desenvolvimento das indústrias mineira e siderúrgica e o aparecimento
de uma proto-indústria das armas de fogo. Do lado das fortificações urbanas
temos transformações igualmente marcantes: as velhas muralhas medievais
deixaram de cumprir a sua função face ao canhão; foram erguidas novas muralhas
mais baixas mas substancialmente mais largas e aumentado o espaço de manobra
interno para permitir a deslocação dos canhões de defesa da cidade; no final, o
espaço exigido para a nova muralha era quase sempre superior à área da própria
cidade (Mumford 1998: 390; Kostof 1992: 31).
Essas novas fortificações, com a
conhecida configuração em estrela (a chamada trace italienne) e cujo exemplo
mais conhecido é porventura a cidade italiana de Palmanova , eram extremamente
difíceis de erguer e ainda mais de alterar. Exigiam uma mobilização de recursos
em tudo equivalente à da proto-indústria do armamento, e em conjunto com ela
provocaram por toda a Europa a monetarização generalizada de todos os impostos
e o correspondente esmiframento da
população com o fim de alimentar a ascendente máquina estatal militar
desvinculada da reprodução social. Não é à toa que Marx constata:
No tempo do advento da monarquia absoluta, com a transformação de todos
os impostos em impostos em dinheiro, o dinheiro aparece de facto como o Moloch
ao qual é sacrificada a riqueza real (Marx 2011: 145-6).
No caso das muralhas, o seu papel até era
duplo: por um lado, serviam de defesa da artilharia pesada; por outro, cumpriam
igualmente um papel enquanto barreira alfandegária sorvedoura de dinheiro. Foi
assim mesmo, de cima para baixo e de forma sangrenta, que o dinheiro tomou
conta de toda a produção e reprodução social e foi através desse processo
violentíssimo que as cidades-capitais e aquilo a que nós modernos chamamos estado e economia vieram ao mundo. Com eles veio também o trabalho livre e a troca desse trabalho livre por dinheiro a fim de
reproduzir e valorizar o dinheiro (Marx 2011: 388).
Mas como Marx (2011: 432) também
afirmou: É da natureza do capital
mover-se para além de todas as barreiras espaciais. Nesse sentido, as novas
muralhas não tardaram por isso a revelar-se elas próprias um obstáculo à plena
constituição do capitalismo. Por um lado, a formação do estado moderno havia
tornado supérflua a sua função defensiva; por outro lado, a dissolução dos
vínculos pessoais associados à propriedade fundiária feudal pela transformação
do solo em mercadoria tinha promovido um significado completamente monetarizado
de todo aquele amplo espaço ocupado pelas muralhas em centenas de cidades
europeias. O sinal destas mudanças foi dado em Paris. A tomada da Bastilha, que
marca oficialmente o princípio da
Revolução Francesa, foi precedida em dois dias por um acontecimento porventura
mais significativo: uma revolta popular generalizada contra a muralha
exclusivamente alfandegária erguida por Luis XVI, (chamada de Ferme Générale)
desenhada pelo arquitecto Claude-Nicholas Ledoux, e que culminou no saque e
incêndio de vários dos seus postos alfandegários.
Até agora limitámo-nos
geograficamente ao que se passa fora e no limite das cidades. Mas o processo de
constituição do capital foi promovido paralelamente também pelo que se dava
dentro das cidades. Considerando que o valor é uma forma de riqueza abstracta baseada no dispêndio de força de trabalho humana sem
atender à forma do seu dispêndio (Marx), cuja magnitude é medida em tempo,
é evidente que a temporalidade é uma componente fundamental da constituição do
capitalismo. A partir de pistas dadas por historiadores medievalistas, o
historiador americano Moishe Postone abriu caminho para uma promissora
interpretação crítica da temporalidade moderna. Depois do seu crescimento
demográfico nos séculos XII e XIII, as cidades medievais começaram a
desenvolver uma maior necessidade de regulação do tempo social. Alguns autores
defendem que foram as necessidades materiais da densidade e complexidade da vida
urbana que levaram ao desenvolvimento das horas constantes; Postone defende, no
entanto, e a nosso ver acertadamente, que o surgimento da forma temporal
abstracta característica da sociedade moderna não pode ser compreendida
adequadamente apenas em termos da natureza da vida urbana per se. Afinal de
contas já existiam grandes cidades noutras partes do mundo muito antes do
desenvolvimento das horas constantes nas cidades medievais do ocidente; e para
além disso, até ao século XIV, o dia de trabalho na Europa medieval continuava
a ser medido de forma natural pelo tradicional sol-a-sol, instituído pelo
'tempo da igreja' (horae canonicae). Neste sentido, a razão para o surgimento
das horas constantes deve ser baseada numa forma sócio-cultural particular e
não num factor material geral como a concentração urbana ou o avanço
tecnológico.
Para Postone, os sinos de
trabalho eram uma expressão de uma nova forma social que tinha começado a
aparecer no fim da Idade Média, particularmente nas cidades que se tinham especializado
na produção de tecido, como as da Flandres. Numa primeira fase, o trabalho era
pago ao dia pelos próprios mercadores de tecido; isto significou que durante a
crise económica dos fins do século XIII que afectou profundamente a tecelagem,
os trabalhadores deste ramo ficaram profundamente vulneráveis a situações de
pobreza, passando eles próprios a exigir o prolongamento do dia de trabalho,
para além do dia tradicional de sol-a-sol, de forma a aumentar os seus salários
— não podemos esquecer que a riqueza ainda era medida pela produção absoluta de
tecido. De acordo com Le Goff, foi justamente nesta fase, e como forma de
controlo pelos mercadores da 'real' dimensão do dia de trabalho, que se
multiplicaram os sinos municipais de trabalho pelas diversas cidades medievais
europeias, pondo fim ao domínio histórico do tempo da igreja. Não foi preciso
muito tempo para que os sinos dessem lugar aos relógios mecânicos, ainda de
horas variáveis. Durante a segunda metade do século XIV espalharam-se por todo
o mundo urbano europeu diversas torres municipais com relógios de um só
ponteiro, que passaram lentamente a reger toda a vida quotidiana urbana. No
final desse século a temporalidade abstracta e homogénea das vinte e quatro
horas já servia como ordenador temporal de diversos trabalhos concretos nos
principais centros urbanos europeus, e com isso a própria cidade do fim da
Idade Média ganhava um novo significado. Como constatou o medievalista Aron
Guretvich: "Dissemos que a cidade se tinha apropriado do seu próprio tempo
e isto é verdadeiro, no sentido em que o tempo escapou ao comando da Igreja.
Mas, em contrapartida, foi também precisamente na cidade que o homem deixou de
ser dono do tempo. Tendo, com efeito, recebido a possibilidade de se escoar sem
ter em conta os indivíduos e os acontecimentos, o tempo impôs a sua própria
tirania, à qual os homens tiveram de submeter-se. O tempo subjugou-os ao seu
ritmo, forçou-os a agir mais depressa, a despachar-se, a não deixar escapar um
instante" (Gurevitch 1990: 174-8). Esta "tirania do tempo" é no
fundo a tirania da "valorização do valor" (Marx) como forma social
fetichista emergente, intermediada pela paralela coerção estatal e a máquina
militar desvinculada. Esta interpretação também poderá dar um novo significado
à constatação de Le Goff de que "o século do relógio é também o do
canhão" (Le Goff 1980: 70-1).
Mas antes de se generalizar por
toda a vida social, como nos diz Kurz,
o tempo começou por se tornar abstracto, independente e absoluto apenas
num espaço social determinado, que é precisamente o espaço funcional da
economia empresarial desvinculado (Kurz 2004).
No âmbito do processo histórico
de valorização do valor emerge assim uma dissociação social, temporal e
espacial das actividades produtivas em relação a todas as outras actividades e
momentos da reprodução social quotidiana, que passam daí em diante a ser
encaradas como um entrave à 'produtividade', uma noção que começava então a
surgir. Não se trata por isso da definição de um mero espaço de produção de bens
materiais; trata-se antes de um espaço de valorização do trabalho abstracto e
de riqueza abstracta. A relevância
histórico-social desta desvinculação é mais evidente na separação
trabalho-residência, mas na verdade não se trata propriamente de uma separação;
é que não estamos perante o simples separar de duas coisas que estavam juntas
mas antes da constituição de ambas em separado. A vida quotidiana pré-moderna é
um todo social integrado, no qual não existe nem trabalho nem propriamente
residência; apenas o capitalismo constituiu tais esferas desvinculadas que se
pressupõem reciprocamente, ao mesmo tempo que a cada uma foi atribuída uma
conotação sexual específica: os homens para os espaços de trabalho e de
valorização da riqueza abstracta e as
mulheres para os espaços domésticos e do consumo material-sensível das
mercadorias.
Aquilo que progressivamente se
generalizou e consolidou, sobretudo a partir do meio do século XIX, foi uma
definição de cidade como espaço de concentração e valorização do trabalho
abstracto. Desse modo assiste-se a uma generalização da separação social e
espacial das práticas humanas, que se expande das fábricas para o espaço
urbano, e cujo primeiro exemplo é porventura as obras de Hausmann em Paris.
Aqui começamos já a falar do capitalismo como totalidade social constituída,
como sociedade do trabalho, ou como
Marx falava, do funcionamento do capitalismo sobre a sua própria base.
Ora, a forma temporal da medida
da riqueza abstracta implica uma
relação contraditória e dinâmica entre valor e trabalho abstracto, entre
riqueza abstracta e produtividade material. Mediada pela concorrência, esta
contradição inerente à valorização do
valor implica uma trajectória histórica e geográfica muito particular: uma
produtividade material crescente em unidades temporais cada vez mais pequenas e
uma correspondente necessidade de expansão do mercado. Ou seja: a valorização do valor é um processo
social dinâmico e objectivo de crescente intensidade temporal (produtividade) e
progressiva expansividade geográfica (mercado mundial). Este processo imprime
na modernidade uma dinâmica interna, objectiva e inconsciente, completamente
desconhecida nas sociedades pré-modernas. Enquanto nestas o princípio social
metafísico mantinha-se transcendente e funcionava como matriz religiosa
personificada de referência e estabilização social, a metafísica social da valorização do valor é um processo
sistemático e contraditório de objectivação em mercadorias, tornando-se assim
imanente ao mundo e imprimindo-lhe uma dinâmica histórica de brutal
transformação social cega, na qual se inclui evidentemente a urbanização
moderna e o actual sistema urbano mundial.
Evidentemente que na base de tudo
isto está a contradição basilar insanável da relação de capital: por um lado,
ele precisa de absorver trabalho abstracto na maior quantidade possível; por
outro lado, a concorrência cria um aumento de produtividade através da qual a
força de trabalho se torna supérflua e é substituída por capital objectivado na
forma de maquinaria. Esta contradição tem um conhecido mecanismo de compensação
que, dito de forma simplificada, se expressa na capacidade do sistema, em cada
aumento de produtividade, absorver maiores quantidades absolutas de força de
trabalho do que aquelas que foram eliminadas através da racionalização ou
introdução de maquinaria. O exemplo disso foi o fordismo: ao mesmo tempo que a
linha de montagem reduzia o tempo de trabalho para cada mercadoria, permitia
também a absorção de maiores quantidades absolutas de força de trabalho. O
resultado foi uma sociedade do trabalho
a todo o vapor, o arranque da urbanização mundial generalizada e o progressivo
embaratecimento generalizado de mercadorias inicialmente vendidas como bens de
luxo (automóvel, frigoríficos, máquinas de lavar, etc.). Datam deste período as
teses do urbanismo funcionalista dos CIAM, onde é evidente a metafísica do
trabalho e a temporalidade abstracta da valorização do valor, sobretudo em Le
Corbusier, para quem a cidade é um
instrumento de trabalho (Corbusier 1992: vii) e que o planeamento urbano
deve ajudar no nascimento da alegria do
trabalho (Corbusier 1995: 68); que defende que a lei das vinte e quatro horas será a medida de qualquer empreendimento
urbanístico (1995: 10) e que "a cidade que dispõe de velocidade dispõe
do sucesso" (1992: 180).
Obviamente que o mecanismo de
compensação interno da trajectória do capitalismo só pode ser eficaz enquanto a
velocidade de inovação dos produtos é superior à velocidade de inovação no
processo produtivo. Mas no contexto da 3ª Revolução Industrial da
micro-electrónica, a relação inverte-se e pela primeira vez a racionalização e
cientifização das forças produtivas torna supérflua mais força de trabalho do
que aquela que consegue absorver. E aqui não se trata apenas de indivíduos mas
de regiões, países e continentes inteiros. O trabalho abstracto, que até aqui
tinha funcionado como forma fetichista de integração social, revela aquilo que
nunca deixou de ser: uma violentíssima forma de exclusão social. Há muito que
isto é evidente na urbanização do continente africano que, incapaz de concorrer
no mercado global, apresenta fenómenos de uma miserável hiper-urbanização sem a
correspondente criação de emprego, ao contrário do que se verificou na história
da urbanização europeia. Mas também há muito que os fenómenos de desemprego
estrutural massificado atingem as megalópoles dos países do centro do sistema
mundial de trabalho abstracto. E se a isto juntarmos a urbanização financiada a
capital fictício e o custo crescente de manutenção de uma infraestrutura social
urbana improdutiva do ponto de vista do capital, ela própria garantida através
de dívida pública, parece de facto haver motivos para assombro no sistema
urbano capitalista mundial. Depois da explosão
urbana dos últimos dois séculos, existem agora sérios riscos de muitas
cidades se tornarem verdadeiros barris de
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