domingo, 21 de dezembro de 2014

VKHUTEMAS, a "Bauhaus de Moscou"

As Oficinas Superiores de Arte e Técnica, na Rússia, competiam com a Bauhaus. Mas ao contrário da escola alemã, a russa praticamente caiu no esquecimento, apesar de seus feitos arquitetônicos e artísticos.

Projeto da fachada da Vkhutemas para o 10° aniversário da revolução comunista
Um novo ser humano e uma nova forma de sociedade: a década de 1920 foi um período em que a arte deveria atender a tal exigência. Na Europa, sob a direção do arquiteto Walter Gropius, a Bauhaus estabelecia as bases de uma nova era para a arquitetura e o design.
Mas também na antiga União Soviética, intelectuais, artistas e arquitetos acreditavam nessa utopia com uma euforia pós-revolucionária. Tanto ali quanto na Alemanha surgiram as primeiras instituições de ensino que promoviam a vanguarda na arte e, principalmente, na arquitetura. Em 1919, surgia em Weimar a escola Bauhaus, e, um ano mais tarde, foram fundadas em Moscou as Oficinas Superiores de Arte e Técnica – as Vkhutemas.
As duas escolas são, muitas vezes, motivo de comparação. Frequentemente, as Vkhutemas são chamadas de "Bauhaus russa". E, de fato, as escolas russas têm semelhanças com a Bauhaus na Alemanha, principalmente na abordagem pedagógica e compreensão da arte.
Houve também uma cooperação: nos anos de 1927 e 1928, os estudantes realizaram intercâmbios de visitas e ideias. Na década seguinte, tanto a Bauhaus quanto as Vkhutemas fecharam.
Passados cerca de 80 anos, o espaço de exposição Martin Gropius Bau, em Berlim, apresenta a mostra Vkhutemas. Um laboratório russo do modernismo. No entanto, os curadores da mostra não quiseram colocar as duas escolas em pé de igualdade. Pois, além das semelhanças, há também inúmeras diferenças entre elas.

"Uma centena de Gropius"
Qualquer um, mesmo sem conhecimentos especiais anteriores, podia estudar nas Vkhutemas, que foram abertas por decreto do governo soviético. Isso também teve impacto sobre o número de alunos. Enquanto somente no primeiro ano, as Vkhutemas registraram 2 mil matrículas, na Bauhaus, estavam inscritos somente 150 alunos, distribuídos nas faculdades de Pintura, Escultura, Têxteis, Gravura, Cerâmica, Madeira e Metalurgia. A Bauhaus dava destaque ao design industrial, e, nas oficinas russas, o foco estava na arquitetura.
Estudantes da Vkhutemas executando tarefas práticas
Nas Vkhutemas, os estudantes podiam escolher o professor ou professora cujo curso queriam frequentar. Essa decisão não era fácil. Enquanto na Bauhaus, Walter Gropius era o diretor criativo no círculo de seus seguidores, na Vkhutemas, havia "uma centena de Gropius", explica Gereon Sievernich, diretor do Martin Gropius Bau. Estes incluem arquitetos como Alexey Shchusev, Nikolai Ladovsky e Konstantin Melnikov ou pintores como Kazimir Malevitch, El Lissitzky e Vassily Kandinsky, que, mais tarde, manteve o espírito das Vkhutemas ao ensinar na Bauhaus.

Alunos superam professores
Nas Vkhutemas, o ensino se baseava no chamado "princípio sintético", que previa uma proficiência tanto em atividades artísticas quanto artesanais. Os alunos começavam com composições abstratas, para aprender conceitos de espaço, forma e equilíbrio. Posteriormente, recebiam tarefas práticas, tendo que projetar bancas de jornal, caixas d'água e centros comunitários.
Projeto de Ivan Leonidov para o Instituto Lênin
Algumas vezes, os projetos estudantis apresentavam uma extravagância que ficaram tão conhecidos quanto os projetos de seus professores e professoras. Por exemplo, após a defesa do trabalho de conclusão de curso por Ivan Leonidov, que projetou o Instituto e Biblioteca Lênin em Moscou, os docentes se levantaram de seus assentos em sinal de respeito: o aluno superara seus mestres.

Vkhutemas: uma lição para o futuro?
Apesar do sucesso, a "centena de Gropius" não conseguiu encontrar uma linguagem comum. Cada novo reitor – no total foram três – mudava radicalmente a política da instituição de ensino: as estruturas, o corpo docente e os objetivos. Em 1930, as Vkhutemas foram dissolvidas na esteira de outra reforma da educação.
Habitação comunitária: projeto de Nikolai Ladovski
As oficinas foram fechadas e caíram no esquecimento durante décadas. A vanguarda soviética foi substituída pelo "realismo socialista". Apesar de seu importante papel para o desenvolvimento da arte e da arquitetura, na Rússia e em toda a Europa, as Vkhutemas, diferentemente da Bauhaus, não se tornaram conhecidas mundialmente.

* Para alguns historiadores da arte, isso ainda vai mudar: está por vir a época em que as conquistas das Vkhutemas receberão reconhecimento. De qualquer forma, até o dia 6 de abril de 2015, quem for ou estiver em Berlim poderá visitar a mostra, organizada em cooperação com o Museu Estatal de Arquitetura Shchusev, em Moscou.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

CONTRIBUIÇÃO À COMISSÃO DA MEMÓRIA E DA VERDADE DA UNB

Depoimento prestado pelo professor aposentado da FAU-UNB Frank A. E. Svensson em Jornada de Filosofa Política. Beijódromo Darci Ribeiro da UnB, 16 de outubro de 2014 .

Amigos, gente boa, agradeço o convite de vir mexer um pouco no baú da memória.    No início eu entendi que devia escolher um tema de minha preferência, de enfoque marxista. Falaria sobre a crise do planejamento urbano no Brasil. Depois, eu recebi o cartaz deste seminário, cujo título é A Ditadura e a Universidade, e eu sendo anunciado como quem deveria dar um depoimento. Assim deixei de lado a escolha inicial e penso abordar alguns tópicos justamente sobre o problema da universidade na ditadura, ou a ditadura e a UnB.

Desde 1959 sou militante do Partido Comunista Brasileiro. Anuncio isso sem pretensão alguma de mostrar: “olhe eu aqui”, mas para abordarmos a relação entre a universidade e a ditadura, talvez seja bom eu deixar isso claro. Sou graduado pela Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais em Belo Horizonte em 1962.

A primeira tarefa que me foi dada como militante foi dirigir uma reunião no Sindicato dos Bancários de Belo Horizonte. Lá ia falar um profissional do partido, Mario Alves  (depois trucidado pelo regime militar). Meu pai, marceneiro, aos poucos se tornou pastor evangélico, e veio para o Brasil fazer católico virar crente. Por isso eu sabia mais ou menos como é que uma reunião deveria ser conduzida.

Nela estiveram presentes vários sindicalistas: Sinval Bambirra, Armando Ziller, e outros da origem do PCB em Belo Horizonte. Depois eu deveria levar o orador para uma pousada. No caminho ele quis saber quem era eu, e eu disse: sou estudante e milito na base de arquitetos e estudantes de arquitetura. Era uma base vigorosa que tinha recebido muito estímulo através de estudantes latino-americanos de esquerda que vinham pela Operação Pan-americana, uma instituição do governo Juscelino Kubitschek de internacionalizar a universidade brasileira, e na esperança de que os estudantes estrangeiros voltassem para os seus respectivos países favorecendo um melhor relacionamento com o Brasil. Não se esqueçam de que Juscelino Kubitschek se declarava socialdemocrata, não necessariamente trabalhista e chegou a ser um dos vice-presidentes da Internacional Socialista.

Havia uma perspectiva de terceira via surgindo no Brasil e na América Latina. Para terminar a história dessa reunião, Mario Alves me deu um conselho que eu nunca esqueci, uma marca muito importante da militância do Partido Comunista Brasileiro, pelo menos até 1964: “jovem, para ser um bom comunista, é muito importante ser um bom profissional. Fazer-se indispensável à sociedade pelo saber-fazer”. Depois, infelizmente, viveríamos uma época em que o mais importante era vencer eleições, não necessariamente saber fazer as coisas.

Oscar Niemeyer tinha ojeriza por andar de avião. Ele anunciava que ficou muito traumatizado com a morte de um colega arquiteto, o qual eu até hoje não sei quem foi num desastre de avião. Oscar tinha um carrinho sueco da marca SAAB e fazia o percurso por terra entre o Rio de Janeiro e Brasília, pernoitando ali no Hotel Amazonas. Nós, estudantes de Arquitetura (quatro militantes do PCB) decidimos procurá-lo numa dessas noites em que vimos o carro ali estacionado. Na ocasião nos convidou a vir passar os períodos de férias em Brasília. De 1959 a 1962 (nos períodos de férias) eu estagiei, em Brasília, no escritório de Oscar Niemeyer.  Funcionava numa caserna perto do Palace Hotel. Dormíamos em barracões anexos do hotel e tomávamos refeições no mesmo.

Oscar era militante do PCB. Esse seu lado militante de partido hoje é pouco conhecido. Tanto porque o partido era ilegal (é o partido comunista que esteve por mais tempo como ilegal no mundo, 56 anos), fazendo com que seus membros fossem forçados a ser cautelosos e discretos. O PCB pode ostentar toda uma galeria de cientistas, escritores, artistas e pesquisadores desse período, reconhecidos pela importância de suas atividades profissionais.

Meus estágios em Brasília deram-me oportunidade de conhecer um pouco mais a história do início da UnB. Numa das vezes, eu fiquei hospedado na casa de Geraldo Joffily, presidente nacional do Juizado de menores. Era um dos intelectuais, não filiados ao partido, mas intimamente relacionados com o mesmo. Num fim de dia ele me perguntou: “tu queres conhecer o Prestes?” Surpreso eu disse, claro, seria interessante. De noite fui levado eu e mais dois camaradas para a casa de Maria Las Casas, uma poetisa, que naquela época morava na SQN 104 sul.   Lá tivemos oportunidade de falar da universidade que se previa.

O PCB tinha uma série de aliados e intelectuais interessados no problema da educação. Não eram membros militantes, mas eram unidos pela preocupação de como a Revolução Industrial alteraria o mundo, inclusive em termos de formação, de educação e cultura. Eu posso citar Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Darcy Ribeiro, Leite Lopes entre outros. Anísio Teixeira era a figura central que articulava essas pessoas. Monteiro Lobato ficou conhecido por seus livros altamente pedagógicos para crianças, para a juventude brasileira. Cecília Meireles tem livros escritos e ilustrados, porque ela desenhava também.

Já havia no Ministério da Educação um grupo formulando um projeto para a universidade sob a direção de Anísio Teixeira. Não sei bem como Darcy Ribeiro chega nesse grupo. Mas havia uma personalidade, que eu faço questão de mencionar, militante, intelectual orgânico do Partido Comunista Brasileiro; Heron de Alencar, cearense oriundo da região do Cariri, médico tendo estudado em Salvador, onde se graduou obstetra.  Dedicando-se a questões de culturas regionais Heron de Alencar, a partir da presença inicial no Instituto Pedagógico da Bahia, tinha ido parar em Paris. Veio a ser durante cinco anos o diretor do Departamento de Pedagogia e Desenvolvimento, da Sorbonne, dirigido pelo famoso Padre Lebret que se dedicava a questões de Planejamento e Desenvolvimento no 3º Mundo.

Quando as discussões e os propósitos do projeto da Universidade de Brasília enfrentaram o problema de traduzi-los, espacial e arquitetonicamente, Anísio Teixeira aconselhou Darcy Ribeiro – este já tinha sido indicado reitor da Universidade – trazer Heron de Alencar como assessor para Brasília. Anísio Teixeira havia começado, a partir da Bahia, o Instituto Nacional de Assuntos Pedagógicos, que teve filiais em várias capitais do País. Eu mesmo fiz teste vocacional numa das agências do mesmo em Belo Horizonte. Não deu pra ser arquiteto. Eu deveria ser diplomata ou médico, mas a vida trouxe condicionamentos de outros tipos que fizeram com que eu cursasse inicialmente a escola de Arquitetura. Lembro-me muito bem de como o INAP funcionava junto à Escola Normal na Avenida Mantiqueira, em Belo Horizonte).

Aqui quero salientar, como arquiteto, um ponto importante que está esquecido com relação ao surgimento da Universidade de Brasília. Como espacializar os propósitos anunciados pela equipe do Ministério da Educação. Houve aqui em Brasília uma experiência muito rica de projetação participativa..

Heron trazia consigo uma experiência de formulação e de precisão conceitual dessa dualidade entre universidade, região e cultura. Veio a ser conhecido muito mais como um homem das letras do que da medicina. Tem trabalhos escritos sobre José de Alencar, analisando o seu realismo nacionalista.  Tem um livro sobre Machado de Assis. Quando chegou a Brasília não só participou dessa experiência de projetação arquitetônica participativa, como foi quem iniciou a estruturação do ensino de letras, literatura e afins. Essa projetação participativa contava com Oscar Niemeyer, convidado não sei por que fatores específicos, mais porque já estava atingindo um papel importante na arquitetura moderna brasileira, e depois mundial.

Fundou-se aqui o primeiro curso de mestrado em Arquitetura desse país. Havia antes, nas seis escolas de arquitetura no país, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio, Minas Gerais, Salvador e Recife cursos de cinco anos de aprendizado de arquitetura, com a possibilidade de mais 2 anos de urbanismo. Para mestrado em Arquitetura, especificamente como tal, Brasília foi a primeira.

Para aqui acorreram arquitetos recém-formados de diferentes regiões do país, que aprendiam e ensinavam. Aprendiam com a experiência do Oscar e depois de Alcides da Rocha Miranda que veio pra instalar o Patrimônio Histórico no Planalto Central. Este  trouxe consigo a sua biblioteca, teórica e histórica, e a colocou à disposição desses alunos do mestrado. Com Oscar desenvolviam a prática do exercício do projeto. Edgard Graeff, da Escola de Arquitetura e Urbanismo de Porto Alegre foi convidado para ser professor de Teoria e História da Arquitetura em Brasília. Baseava suas aulas em livros de Lewis Mumford, socialdemocrata autodidata norte-americano que participara do júri para o concurso do Plano Piloto de Brasília. Os alunos do mestrado de arquitetura orientavam como monitores, à tarde, os alunos de graduação.

Os professores da UNB, intelectuais progressistas convidados para as diferentes áreas do conhecimento e da prática humana, participavam da programação do ensino. Não se adotou a comum forma de estabelecer um programa teórico e depois encomendar arquitetos para resolver, segundo sua habilidade artística, a configuração dos lugares necessários a tanto. Houve uma intensa discussão sobre o que e como se queria a universidade.

Heron foi figura central para coordenar as indicações no estabelecimento de um programa de arquitetura. Tive a oportunidade de conhecer um exemplar do mesmo, uma vez asilado na Argélia (na equipe do Oscar), e lamento muito não ter feito uma cópia, mas ainda deve existir em algum lugar; O pensamento dialético, aparece muito claramente na proposta. A universidade era para ser de excelência, equiparada às grandes universidades do mundo. Devia ser fundamentalmente produtora de conhecimento para solução dos problemas candentes da região e do país, constituir referência para a Reforma Universitária no Brasil. Nunca se trabalhou tanto e tão seriamente prevendo o imprevisível em termos de arquitetura.

Herón de Alencar propôs que a universidade tivesse cinco grandes áreas, que vieram a ser chamadas de Institutos: Instituto das Ciências da Saúde, Instituto de Humanas, Instituto de Matemática, Física e Ciências Exatas, Instituto de Engenharias e, finalmente, por empenho de Alcides da Rocha Miranda, um Instituto Central de Artes.

Um Instituto abrigava faculdades, que formariam profissionais necessários à aplicação do conhecimento no país. Daí surgiu Faculdade de Medicina, Faculdade de Psicologia, Faculdade de Engenharia, Faculdade de Geologia etc. Além disso o Instituto fomentava, todas as formas de pesquisas necessárias, ou interessantes, para a produção de conhecimento, para a solução dos problemas nacionais e para a implementação no plano pedagógico. Isso implicou numa série de definições administrativas, hoje esquecidas. A universidade não tinha departamentos. Trabalhava-se fundamentalmente apoiado em grupos de trabalho, em cima de temas deliberados, onde se permitia e se estimulava a interdisciplinaridade.

Cheguei como professor para a UnB em 1970, vindo da SUDENE que foi a maior experiência interdisciplinar do hemisfério sul, na época. Éramos 2500 profissionais, metade de formação universitária e a outra metade administrativa e funcional. Trouxemos pela vida à fora uma experiência riquíssima de tornarmo-nos melhores profissionais, através do exercício da interdisciplinaridade.

A interdisciplinaridade, enquanto num plano teórico, é muito problemática. Cada disciplina acha que é a principal e tem dificuldades de se entender com as outras, mas em cima de problemas objetivos, candentes, como eram os definidos pela Super-intendência, nós tínhamos que chegar a um resultado e os desentendimentos não poderiam ser excludentes profissionalmente. Eu confesso que me tornei, não digo que sou bom, muito melhor arquiteto pelo sofrimento das diferenças profissionais do que pela uniformidade em escritórios de arquitetura herdados da profissão liberal.

Lembro-me que o aluno passava um período de dois anos de curso básico, por uma espécie de reciclagem do seu curso secundário, direcionando-se para essa nova experiência pedagógica que, de certa forma, seria também o início da reforma universitária no Brasil da época.  Depois em seu curso de graduação ele tinha que completar uma quantidade de créditos para subir para trabalho de conclusão de curso. Eu não me lembro de nada assim muito em detalhe, mas eu tenho uma vaga memória de que o aluno devia completar 120 créditos, e esses créditos eram avaliados por uma orientação, permitindo buscar informações tanto na faculdade específica da sua profissão, como em outras áreas da universidade.

Tive, como professor de Arquitetura durante três anos, alunos de História, de Engenharia, de Ciências Sociais. O que garantia o bom resultado dessa formação para trabalhos de graduação era a escolha de objetos de estudo comuns. Dessa forma nós estudamos os novos assentamentos ao longo das novas rodovias, tanto da Transamazônica com da Belém-Brasília. Chegando numa cidade como Ceres, por exemplo, os estudantes me perguntavam: o que é que nós viemos fazer aqui? Aqui não precisam de Arquitetura. Indo conversar com o prefeito da cidade mostrou-nos quais eram as necessidades.

Ceres é uma das cidades planejadas do governo Vargas, como Brasília e outras duas dezenas que se construíram no país. O prefeito disse: olha, o que está mais urgente aqui é murar o cemitério. Os bichos estão cavoucando as covas. Nós precisamos aumentar a estação rodoviária porque os ônibus da Belém-Brasília estavam aumentando em quantidade e não cabiam na existente. Nós precisamos de uma espécie de praça de alimentação na Feira. O sorvete e a pizza tinha chegado no Planalto, concorrendo com a pamonha e o curau. Nós precisamos de mais escolas. Foi ficando evidente para os estudantes, de diferentes formações profissionais, que o objeto comum da cidade de Ceres e sua região, era comum mas exigia enfoques distintos, orientados a partir das respectivas faculdades de formação profissional. Isso é só pra dar um exemplo de todos os mecanismos de síntese do pensamento dialético que estimulou a fazer parte do projeto inicial da Universidade.

No meu caso, que vinha com a experiência da SUDENE, fui destituído da Universidade, acusado de conscientização comunista. Eu nunca fiz proselitismo partidário. A conscientização que esse tipo de pedagogia estimulou nos alunos, sem nunca trocarmos palavra sobre militância político-partidária, incomodou o regime militar da ditadura.. Foi o trabalho em si que fez estimular a consciência da necessidade de arquitetura, pondo em questão toda uma história de estilística anterior.

Eu vim da SUDENE pra Brasília quando a essa começou a ser desmontada. O regime militar impediu relacionamentos da SUDENE com a CEPAL e passamos a ser dirigidos pela orientação da OEA Organização dos Estados Americanos, a partir de Washington. Os projetos da SUDENE foram entregues a companhias internacionais de planejamento, cadastradas junto ao Banco Mundial. Não havia uma única empresa ou companhia de planejamento brasileira. Não vou entrar em como a SUDENE e o primeiro Plano Trienal de Desenvolvimento Nacional foram alterados.

O PCB, a partir de sua célula de arquitetura em São Paulo, achou que eu podia vir a Brasília trazer essa experiência da SUDENE. Eu não devia ser exposto como comunista. Deveria fazer uma ligação de assessoria ao deputado Francisco Pinto, da Bahia, que era membro do PCB mas militava no MDB. Essa ligação não conseguiu ficar oculta por muito tempo e aos poucos não souberam manter o fato da minha militância em sigilo.

Havia duas células do PCB na UnB, uma no Minhocão e outra no Hospital de Sobradinho. Na do Minhocão coube a mim ser dirigente, durante dois, três anos. Tudo isso resultou em que eu sou o único professor da UnB enquadrado no AI 5, proibido – com a chancela do Ministro da Educação, Jarbas Passarinho – de exercer serviço público e de lecionar em todo território nacional

Isso pesa no meu currículo. Eu não digo isso para me valorizar. Mas para saberem que na UnB houve também um professor enquadrado no ato AI 5. Fui julgado por um tribunal militar e depois inocentado por falta de provas. Mas perdi o cargo e desempregado, me aproximei da minha origem europeia passando 16 anos involuntariamente fora do Brasil. Sempre militando nos partidos comunistas onde estive, na Suécia, na França, na Argélia onde o partido era clandestino e em Angola.

Quero sublinhar uma convicção quanto à importância histórica do trabalho coletivo interdisciplinar. Nos séculos XV e XVI surgem as primeiras universidades na Europa: Salamanca, com a tradução da Bíblia, depois Paris, Uppsala na Suécia e outras. Isso pela necessidade de que o conhecimento não cabia mais em áreas unitárias. Precisava-se de uma instituição que favorecesse a pluralidade do conhecimento quando da formação de profissionais e quando da aplicação do conhecimento profissional.

Isso coincide com o surgimento da imprensa, com a Reforma, com a nova fase do capitalismo mercantil, com o surgimento do Brasil como exemplo de novas formas de colonialismo. Configura-se um momento de globalização extremamente importante, sendo um dos frutos o surgimento da Universidade, mas a universidade continuou tendo raízes na sociedade de classes.

Os professores nomeados pelo rei, ou pelos reis, para serem catedráticos responsáveis por pesquisa e ensino, reitores responsáveis pela parte administrativa, com direito a assistentes leitores que eram os professores que liam as aulas formuladas pelo catedrático. Este era vitalício tendo responsabilidades de resolver problemas surgidos na Sociedade. Se um prédio desmoronasse, como ocorre frequentemente no Brasil de hoje, era o professor catedrático de sistemas estruturais que era nomeado para dirigir a comissão de sindicância, e esclarecer ao governo por que aconteceu aquilo e o que devia se fazer. Da mesma forma em Medicina (pestes que surgiam…). Quando eu estive morando um tempo na Suécia, as focas do mar Báltico estavam morrendo envenenadas por um tipo de alga. Então foram nomeados dois professores catedráticos para pesquisar e debelar esse mal. Quando surgiu um movimento pela paz, foi instituída uma cátedra, em Estocolmo, de como estimular a indústria bélica a ser tornar uma indústria pacífica, e diminuir a produção de armamento. Isso só pra dar algum exemplo.

A universidade, como de elite, naturalmente estava organizada pelos interesses da mesma. Mas foram surgindo os partidos obreiros, em diferentes pontos e, por fim, o Partido Comunista na Bélgica. Verificou-se que o partido obreiro não era só pra fazer oposição aos partidos burgueses. Da sua prática nasce um novo tipo de conhecimento social diferente da Engenharia Social de Augusto Comte. Nas democracias obreiras  Ciências Sociais passaram a ser eram estudadas em escolas do partido em nítida interação com a práxis social. Isso eu presenciei em cursos que fiz na Alemanha Oriental, Moscou, Praga, e na experiência vivida em Angola. Na medida em que as tensões da sociedade de classe vão sendo superadas, há, necessariamente, um estímulo a uma crescente convivência entre os partidos trabalhistas e a universidade.

Quando veio o golpe militar – agora falando da Ditadura – eu não estava presente na UNB. Voltei para o Brasil oficialmente em março de 1970, para reabertura do Instituto Central de Artes. Oscar Niemeyer foi convidado pra reabrir a experiência do Instituto Central de Artes, mas disse: “eu não posso, só posso se os 200 que foram demitidos voltarem”. O PCB foi contra a demissão, quer dizer, foram mais as tendências social-democratas, trotskistas, e de outros radicalistas que achavam que seriam convidados de volta porque o governo não saberia desenvolver a universidade sem eles – o que não ocorreu. Bom, o Oscar sugeriu que se consultasse o Instituto de Arquitetos no Brasil, e esse formulasse uma comissão para a reabertura do ICA~FAU Nesse tempo era reitor o doutor Amadeu Cury e vice-reitor o almirante Azevedo (depois isso se alterou, e o Azevedo passou a ser reitor). Mais ou menos este disse o seguinte: “eu sei que vocês são comunistas, mas desde que vocês não militem na universidade, e me garantam que vão fazer funcionar o Instituto de Artes, dá para conviver”. Não foram exatamente essas palavras, mas foi mais ou menos o acordo que se fez. E o ICA-FAU teve um papel preponderante na reabertura; nos períodos, que muitos conhecem melhor do que eu, quando se tentou fazer funcionar a Universidade sem professores progressistas.

Só mais uma palavra a respeito das características da solução arquitetônica no campus, histórica, porém esquecida.  Oscar Niemeyer não era um pesquisador de teorias, mas era um militante na célula do PCB na parte sul do Rio de Janeiro. Tinha como colegas de militância Nelson Werneck Sodré, João Saldanha, Horácio Macedo e várias outras figuras que abrilhantaaram a História deste país.

Na época estava na moda ler os estudos de Georges Lukács, pensador marxista húngaro, sobre a estética da arquitetura. O grande mérito de Lukács, é que ele desenvolve a visão de Hegel sobre arquitetura e diferencia arquitetura, de escultura, por ser espaço necessário e ocupado. Ele vincula a espacialização com a própria vida. Sobre conhecimento de construção, de fazer monumentos segundo a forma, a história já tinha fornecido muita coisa, mas conhecimento sobre a vida, o fato do homem ser um ser locacional, do homem não sabe viver sem lugares era raro. Ele configura lugares para suas atividades. E quando isso entra, através do enfoque marxista, no conhecimento da arquitetura, a coisa implica novas conclusões. Em termos de estética, o Lukács coloca: a proporção, a fluidez espacial, a surpresa vinculando a experiência da arquitetura às emoções. Oscar, o Niemeyer bebeu muito disso.

Desafiar o esforço material das estruturas é criar emoções parentes da emoção estética diante de outros ramos artísticos. Desafiar as forças da natureza com os grandes vãos. Para tanto, ele se caracteriza por um outro aspecto: qual material a ser usado? A arquitetura estava superando a limitação da geometria euclidiana de ângulos retos e linhas paralelas. Começavam surgir, com mais possibilidade, as superfícies curvas, aproximando-se da assimetria da natureza e permitindo uma melhor integração, com a paisagem natural. Havia surgido um material, uma mistura de diferentes elementos: areia, brita, cimento e água que permitindo criar uma massa que ganha a forma da forma que lhe for atribuída. Conseguiu ainda a convivência com um matemático e cientista, Joaquim Cardoso, que lhe permitiu, principalmente na arquitetura para Brasília, soluções arrojadas de concreto armado. Concreto armado que poderia ser misturado praticamente por qualquer operário, desde que orientado tecnicamente.

Material permitindo uma aproximação de formas como reinterpretação do barroco colonial brasileiro, num modernismo neobarroco. Eu digo isso pra combater a ideia de que a arquitetura do Oscar Niemayer não faz sentido porque não é funcional etc. Isso  porque ninguém se aprofunda no conhecimento de como ela foi feita, inclusive socialmente; e também para valorizar a cultura brasileira. A arquitetura desenvolvida a partir de Oscar, e ele não foi o único, não dá pra confundir, por exemplo, com a arquitetura mexicana moderna que continuou totêmica, ela tem identidade cultural. Bom, eu não vou falar muito mais disso.

Eu só quero sublinhar a militância política de arquitetos da época, e que nas seis escolas de arquitetura havia as células de arquitetos e estudantes da arquitetura, até 64. Depois veio uma onda de neoliberalismo, de cada um pra si, e de saudosismo pseudo-histórico, numa interpretação muito primaria da história, não incluindo a força de transformação que a mesma anuncia.

Isto posto eu coloquei um pouco a relação do que eu sei e do que eu vivi na Universidade de Brasília no tempo da ditadura, e principalmente no resgaste da democracia que veio depois. E aí eu não vou dizer muita coisa, mas se implantou, com o neoliberalismo, a ideologia da não ideologia. Hoje não é científico, não é sério, não é admissível que o conhecimento seja enfocado politicamente, mas isso não vai se aguentar. Nós vamos caminhando para dias tensos, em que passamos do capitalismo do período industrial para o capitalismo do período da informática, em que tudo é visto de forma virtual afastando-nos do conhecimento da essência da realidade. Eu acho que esse foi o maior contributo do regime militar. Ele escancarou as portas para o subjetivismo depreciando o pensamento objetivo e crítico na busca do conhecimento e no exercício de sua aplicação.


 Muito obrigado!