domingo, 17 de novembro de 2013

A EXPLOSÃO DA CIDADE e A TRAJETÓRIA DO CAPITALISMO

por Bruno Lamas  

Apresentação efectuada em Lisboa, a 3 de Outubro de 2013, na sessão "A 'explosão da cidade' e a trajectória do capitalismo" do seminário "Pensamento Crítico Contemporâneo e Cidade", organizado pela Unipop e a revista Imprópria, no âmbito da Trienal de Arquitectura de Lisboa 2013.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/.  O original encontra-se em o-beco.planetaclix.pt/bruno-lamas2.htm.

           

A produção capitalista procura constantemente superar essas barreiras que lhe são imanentes, mas só as supera por meios que lhe antepõem novamente essas barreiras e em escala mais poderosa. A verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital (...).  Karl Marx, Livro III de "O Capital".

Há já alguns anos que se constata o facto histórico certamente assinalável de que o mundo é hoje um lugar predominantemente urbano, ou seja, que mais de metade da população mundial vive em cidades. Mas essa constatação recorrente parece vir sempre acompanhada por dois sentimentos contraditórios: por um lado, uma espécie de celebração do que parece considerar-se ser em si mesmo uma conquista civilizacional; mas, por outro lado, uma profunda sensação de assombro, porque na verdade não sabemos exactamente muito bem como chegámos aqui, porque não se prevê que a tendência geral refreie e porque os problemas usualmente associados à urbanização parecem não parar de aumentar.

É extremamente difícil estimar com exactidão para as épocas pré-modernas a quota-parte urbana da população mundial. O que sabemos é que, após oito mil anos de urbanização, a quota-parte urbana da população mundial no ano de 1800 era de apenas 2% e que desde aí progrediu rapidamente, chegando aos 30% em 1950, aos 47% em 2000 e, de acordo com as Nações Unidas, ultrapassou os 50% em 2008. O que aqui desde logo parece relativamente claro é que a força do crescimento urbano moderno não possui equivalente nas sociedades pré-modernas. Mas também não é difícil verificar que nas épocas pré-modernas a urbanização de uma cidade era bastante independente da urbanização (ou do declínio) de outra, enquanto que a sociedade moderna constituiu um sistema urbano verdadeiramente mundial, onde a urbanização de certas regiões não é autónoma do que acontece noutros pontos do mundo. Este sistema urbano mundial é na verdade pouco mais do que a expressão territorial do sistema mundial de trabalho abstracto que é o fundamento do capitalismo, algo que nenhuma estimativa estatística nos poderá revelar por si mesma. Por isso, a problemática da urbanização moderna também não é apenas a de uma questão quantitativa ou de mudança de ritmo do crescimento das cidades; é antes a da própria relação entre cidades e capitalismo.

Claro que o problema pode ser ultrapassado se simplesmente declararmos, como faz Fernand Braudel, que no Ocidente, capitalismo e cidades, no fundo, foi a mesma coisa (Braudel 1992: 453) ou que se falarmos em dinheiro, o mesmo é dizer as cidades (Braudel 1992: 450). Com isto, não só se afirma uma identidade entre cidade, capitalismo e dinheiro, como se afirma uma identidade trans-histórica de cada um dos fenómenos consigo mesmo. A cidade pré-moderna e moderna são a mesma coisa; o capitalismo nasceu no neolítico e o dinheiro sempre foi capital. Ou seja, está-se no bom caminho para não se perceber nada nem de cidade, nem de capitalismo, nem de dinheiro. Pouca coisa é tão conceptualmente desastrosa e ideologicamente consequente quanto a retroprojecção de categorias e fenómenos especificamente modernos (como o trabalho, o dinheiro, o capital, o mercado, etc.) em todas as sociedades do passado ou a sua hipostasiação como dados da natureza humana.

Ora, o facto de a cidade não ser um fenómeno especificamente moderno não significa que possamos assumir para ela uma mesma identidade trans-histórica em desenvolvimento desde o neolítico. Este entendimento ideológico positivista, que se limita a constatar a continuidade histórico-empírica do artefacto urbano e sua inércia material, nunca consegue ver nas cidades nada para além de um amontoado de pedras, tijolos e cimento. Contra este banal positivismo, não é por isso inteiramente inútil a distinção clássica da cidade como associação humana — civitas — e a cidade como lugar e artefacto físico — urbs. Impõe-se no entanto uma correcção fundamental à interpretação moderna tendencialmente politicista do conceito de civitas e que nele não vê outra coisa senão sucessivas formas políticas de associação humana, conscientemente escolhidas e sem quaisquer pressupostos. É que desse modo escamoteia-se o carácter inconsciente das próprias formas de integração e consciência social até hoje existentes e as correspondentes matrizes apriorísticas (Robert Kurz) autonomizadas de percepção e acção humana; aquilo que Marx tentou captar com o seu conceito de fetichismo. Esse momento fetichista estava aliás flagrantemente presente no significado original do conceito romano de civitas, que exaltava justamente o carácter transcendental e apriorístico de toda a estrutura social romana, enquanto vínculo social metafísico acima dos cidadãos, e que entre outras coisas se traduzia em celebrações religiosas específicas no acto sagrado de fundação das cidades, a maior parte das quais ainda hoje existentes. O que importa talvez assumir da distinção civitas/urbs é que se trata, no fundo, da diferença entre o processo (social) e o resultado (material) intrínsecos à urbanização, mas em que o primeiro está longe de ser verdadeiramente consciente para os próprios agentes e o segundo sobrevive historicamente às formas de integração social que lhe deram origem.

Mas de que modo é que isto nos pode ajudar a compreender a relação entre as cidades e o desenvolvimento histórico do capitalismo? Parece-me que devemos fazê-lo através de um aprofundamento de quatro problemas: em primeiro lugar, realizar uma diferenciação muito clara entre as cidades pré-capitalistas e capitalistas, tanto nas suas diferentes formas sociais fetichistas quanto nas respectivas formas urbanas; em segundo lugar, o processo histórico de constituição do capital, ou seja, o problema da transição do feudalismo para o capitalismo e o papel das cidades nesse processo; em terceiro lugar, a lógica e o funcionamento interno do capitalismo que se move sobre sua própria base (Marx 2011: 195), ou seja, a territorialização progressiva do capitalismo como sociedade do trabalho e modo de produção baseado no valor (Marx), sobretudo desde a segunda metade do século XIX, que se traduziu na explosão urbana do último século; e em quarto lugar, a expressão territorial da crise global no sistema urbano mundial. Claro que não posso aprofundar aqui todas estas questões; mas posso procurar balizar um pouco melhor as problemáticas e alongar-me um pouco mais naquelas onde a retroprojecção das categorias modernas é mais comum.

Um dos anacronismos recorrentes é o de procurar explicar a origem das cidades a partir do mercado. Desse modo claramente ideológico, Jericó (8000 a.C.) e Çatal Huyuk (7500 a.C.), ou pelo menos Ur (3800 a.C.) e Uruk (4000 a.C.), já se destacavam como importantes mercados ou até mesmo como importantes locais de produção simples de mercadorias. Com mais ou menos ênfase, esta ideia aparece em autores tão diferentes como Braudel ou Jane Jacobs. Claro que desse modo também já se fala aí da existência de trabalho, dinheiro, valor e capital. E por isso o marxismo tradicional também participou nesse ontologização das categorias modernas, procurando demonstrar empiricamente as teses de Engels sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem e de que a lei do valor tem validade económica geral pelo menos desde há cinco ou sete milénios (Engels 1986: 328). Por tudo isso, foram sempre desvalorizadas e minoritárias as tentativas modernas de explicar a génese das primeiras cidades sem recorrer às categorias modernas de mercado, mercadoria, trabalho, etc., como aquelas de Rykwert (1988) ou Mumford (1998), que realçavam antes o carácter originalmente religioso das primeiras ocupações humanas, inclusivamente ao nível da própria forma urbana. No entanto, mesmo em textos fundadores do entendimento moderno da origem das cidades não deixam de aparecer pistas para compreensão do carácter fetichista específico das sociedades pré-modernas e sua matriz religiosa: o arqueólogo marxista Gordon Childe, por exemplo, no seu ensaio clássico A Revolução Urbana, constata que um dos dez critérios distintivos das primeiras cidades é:

que cada produtor primário pagasse, a partir do pequeno excedente que ele conseguisse retirar do solo com o seu ainda muito limitado equipamento técnico, uma dízima ou imposto a uma deidade imaginária ou rei divino que assim concentrava o excedente. Sem esta concentração, devida à baixa produtividade da economia rural, nenhum capital efectivo teria estado disponível (Childe 1950: 11-2).

Apesar dos anacronismos evidentes de se falar em economia, dízima, imposto e capital já para o período neolítico, Childe não deixa de constatar que o destinatário dessa quota do excedente material é uma entidade transcendente ou um ser humano divinizado, o qual se revela um verdadeiro problema para o seu entendimento da história como luta de classes. Esta personificação de um princípio transcendente que caracteriza a forma religiosa e que atravessa toda a estrutura social das sociedades pré-modernas subsistiu, com mais ou menos intensidade, até à constituição do mundo moderno capitalista. Mas neste, o princípio social apriorístico não se encontra mais personificado em nenhum ser humano mas é antes objectivado nas mercadorias e no dinheiro (sobre isto ver Kurz, no prelo). E a história desta transformação não deixou de ficar também ela territorializada.

Apesar das inúmeras diferenças entre as cidades pré-modernas, há um elemento comum que, embora não seja absoluto, as distingue em conjunto profundamente das cidades modernas: as muralhas. Diversos historiadores chamaram já a atenção para este aspecto mas parece-me que as respectivas ilações estão longe de estarem suficientemente exploradas. A esmagadora maioria das cidades pré-modernas era muralhada; as excepções são raras e estão identificadas e justificadas, tanto pelas condições naturais da própria cidade ou da região onde se insere (ex.: Veneza, ou Inglaterra e Japão), como pela existência de uma teocracia estável ou de um poder militar de tal modo avassalador que tornavam as muralhas desnecessárias (ex. antigo Egipto, Esparta). Nesse sentido, para as sociedades pré-modernas era absolutamente impensável uma cidade não ser muralhada. Não é por isso mero acaso que as palavras que em inglês, alemão, holandês, russo e chinês designam hoje cidade designavam primitivamente muralha ou seus semelhantes (cerca, muro, baluarte, etc.). O entendimento usual é que as estruturas das muralhas medievais subsistiram até ao advento do mundo moderno e, a partir do século XIX, foram sendo sucessivamente demolidas para dar lugar às expansões urbanas modernas. Esta história é entretanto muito mais complicada e parece-me que nos pode ajudar a compreender um pouco melhor a chamada acumulação original do capital.

A propósito da chamada transição do feudalismo para o capitalismo, historicamente balizada pelos séculos XIV e XVI, duas polémicas são hoje consideradas clássicas para o entendimento do papel da cidade na constituição capitalista: o Debate Dobb-Sweezey (Dobb et al. 1978), desenvolvido na década de 1950 e que foi exclusivamente intramarxista; e o chamado Debate Brenner (Aston and Philpin 1995), desenrolado na segunda metade da década de 1970 e com um carácter teórico e disciplinar mais amplo. Ambos os debates, de modo mais ou menos explícito, tinham a cidade como pano de fundo da discussão, sem no entanto prestarem muita atenção às profundas transformações urbanas desse período. O que aí estava em causa, e mais uma vez de forma anacrónica, era a cidade como mercado e nada mais. Entretanto, uma questão diversas vezes colocada em ambos os debates mas nunca verdadeiramente aprofundada foi a da crescente necessidade dos senhores de novas fontes de receita para alimentar as guerras daquele período. E aqui se verá que a cidade foi muito mais do que pano de fundo.

Ora, antes de mais é preciso ter em mente que aquilo que em termos categoriais está em causa na transição do feudalismo para o capitalismo é o processo histórico de transformação do dinheiro em capital (Marx). É sabido que o dinheiro existia antes do capitalismo, mas de modo algum a sua função social pode ser considerada idêntica à que desempenha no capitalismo. Nas sociedades pré-modernas o dinheiro possui uma função religiosa ou de intermediação de relações de reciprocidade e obrigação pessoal (dádivas, contra-dádivas, oferendas, sacrifícios, etc.), também elas vincadamente religiosas, que de modo nenhum pode ser equiparada à lógica autonomizada de riqueza abstracta (Marx) e encarnação de trabalho abstracto (Marx) que é específica do capitalismo. Diversos historiadores e antropólogos, como Karl Polanyi (2001), Jacques Le Goff (2003) e Marcel Mauss (2001), forneceram pistas no sentido dessa diferenciação, mas sem que estas tenham sido estudadas de forma sistemática, como Robert Kurz (no prelo) procura fazer na sua obra recente Dinheiro sem valor. Por isso, também de modo algum se pode dizer que as sociedades pré-modernas possuíam uma economia; chamada de atenção que aliás há muito foi feita por Moses Finley (1980), no que respeita a antiguidade greco-romana, e por Polanyi de um modo mais abrangente com a sua tese da desincrustação da economia capitalista. A economia, como esfera autonomizada e desvinculada das relações sociais e caracterizada por um mercado impessoal e anónimo, é algo específico da sociedade capitalista. E o que aí está em causa é o dinheiro como pressuposto e finalidade da produção, como deus das mercadorias (Marx), valor que se valoriza a si mesmo, ou seja, capital. 

O que investigações mais aprofundadas poderão mostrar como absolutamente decisivo para a transformação do dinheiro em capital são as exigências impostas por aquilo a que historiografia chama a "revolução militar", quer dizer, os processos históricos estruturais associados à invenção das armas de fogo no século XIV e à formação das máquinas militares e estatais modernas que garantiram a supremacia da Europa do homem branco nos séculos seguintes (seguimos aqui Kurz, no prelo). Foi, por um lado, o canhão (inventado no século XV) e a formação e manutenção de exércitos de mercenários (que são também os primeiros verdadeiros assalariados) e, por outro, as brutais e correspondentes transformações arquitectónicas nas fortificações das cidades que, em conjunto, se tornaram um verdadeiro monstro insaciável de recursos que promoveu a brutal monetarização de toda a reprodução social e a constituição do capital.



Palmanova. Do lado da artilharia temos uma primeira corrida ao armamento, pautada pela procura crescente de metais, o desenvolvimento das indústrias mineira e siderúrgica e o aparecimento de uma proto-indústria das armas de fogo. Do lado das fortificações urbanas temos transformações igualmente marcantes: as velhas muralhas medievais deixaram de cumprir a sua função face ao canhão; foram erguidas novas muralhas mais baixas mas substancialmente mais largas e aumentado o espaço de manobra interno para permitir a deslocação dos canhões de defesa da cidade; no final, o espaço exigido para a nova muralha era quase sempre superior à área da própria cidade (Mumford 1998: 390; Kostof 1992: 31).

Essas novas fortificações, com a conhecida configuração em estrela (a chamada trace italienne) e cujo exemplo mais conhecido é porventura a cidade italiana de Palmanova , eram extremamente difíceis de erguer e ainda mais de alterar. Exigiam uma mobilização de recursos em tudo equivalente à da proto-indústria do armamento, e em conjunto com ela provocaram por toda a Europa a monetarização generalizada de todos os impostos e o correspondente esmiframento da população com o fim de alimentar a ascendente máquina estatal militar desvinculada da reprodução social. Não é à toa que Marx constata:

No tempo do advento da monarquia absoluta, com a transformação de todos os impostos em impostos em dinheiro, o dinheiro aparece de facto como o Moloch ao qual é sacrificada a riqueza real (Marx 2011: 145-6).

 No caso das muralhas, o seu papel até era duplo: por um lado, serviam de defesa da artilharia pesada; por outro, cumpriam igualmente um papel enquanto barreira alfandegária sorvedoura de dinheiro. Foi assim mesmo, de cima para baixo e de forma sangrenta, que o dinheiro tomou conta de toda a produção e reprodução social e foi através desse processo violentíssimo que as cidades-capitais e aquilo a que nós modernos chamamos estado e economia vieram ao mundo. Com eles veio também o trabalho livre e a troca desse trabalho livre por dinheiro a fim de reproduzir e valorizar o dinheiro (Marx 2011: 388).

Mas como Marx (2011: 432) também afirmou: É da natureza do capital mover-se para além de todas as barreiras espaciais. Nesse sentido, as novas muralhas não tardaram por isso a revelar-se elas próprias um obstáculo à plena constituição do capitalismo. Por um lado, a formação do estado moderno havia tornado supérflua a sua função defensiva; por outro lado, a dissolução dos vínculos pessoais associados à propriedade fundiária feudal pela transformação do solo em mercadoria tinha promovido um significado completamente monetarizado de todo aquele amplo espaço ocupado pelas muralhas em centenas de cidades europeias. O sinal destas mudanças foi dado em Paris. A tomada da Bastilha, que marca oficialmente o princípio da Revolução Francesa, foi precedida em dois dias por um acontecimento porventura mais significativo: uma revolta popular generalizada contra a muralha exclusivamente alfandegária erguida por Luis XVI, (chamada de Ferme Générale) desenhada pelo arquitecto Claude-Nicholas Ledoux, e que culminou no saque e incêndio de vários dos seus postos alfandegários.

Até agora limitámo-nos geograficamente ao que se passa fora e no limite das cidades. Mas o processo de constituição do capital foi promovido paralelamente também pelo que se dava dentro das cidades. Considerando que o valor é uma forma de riqueza abstracta baseada no dispêndio de força de trabalho humana sem atender à forma do seu dispêndio (Marx), cuja magnitude é medida em tempo, é evidente que a temporalidade é uma componente fundamental da constituição do capitalismo. A partir de pistas dadas por historiadores medievalistas, o historiador americano Moishe Postone abriu caminho para uma promissora interpretação crítica da temporalidade moderna. Depois do seu crescimento demográfico nos séculos XII e XIII, as cidades medievais começaram a desenvolver uma maior necessidade de regulação do tempo social. Alguns autores defendem que foram as necessidades materiais da densidade e complexidade da vida urbana que levaram ao desenvolvimento das horas constantes; Postone defende, no entanto, e a nosso ver acertadamente, que o surgimento da forma temporal abstracta característica da sociedade moderna não pode ser compreendida adequadamente apenas em termos da natureza da vida urbana per se. Afinal de contas já existiam grandes cidades noutras partes do mundo muito antes do desenvolvimento das horas constantes nas cidades medievais do ocidente; e para além disso, até ao século XIV, o dia de trabalho na Europa medieval continuava a ser medido de forma natural pelo tradicional sol-a-sol, instituído pelo 'tempo da igreja' (horae canonicae). Neste sentido, a razão para o surgimento das horas constantes deve ser baseada numa forma sócio-cultural particular e não num factor material geral como a concentração urbana ou o avanço tecnológico.

Para Postone, os sinos de trabalho eram uma expressão de uma nova forma social que tinha começado a aparecer no fim da Idade Média, particularmente nas cidades que se tinham especializado na produção de tecido, como as da Flandres. Numa primeira fase, o trabalho era pago ao dia pelos próprios mercadores de tecido; isto significou que durante a crise económica dos fins do século XIII que afectou profundamente a tecelagem, os trabalhadores deste ramo ficaram profundamente vulneráveis a situações de pobreza, passando eles próprios a exigir o prolongamento do dia de trabalho, para além do dia tradicional de sol-a-sol, de forma a aumentar os seus salários — não podemos esquecer que a riqueza ainda era medida pela produção absoluta de tecido. De acordo com Le Goff, foi justamente nesta fase, e como forma de controlo pelos mercadores da 'real' dimensão do dia de trabalho, que se multiplicaram os sinos municipais de trabalho pelas diversas cidades medievais europeias, pondo fim ao domínio histórico do tempo da igreja. Não foi preciso muito tempo para que os sinos dessem lugar aos relógios mecânicos, ainda de horas variáveis. Durante a segunda metade do século XIV espalharam-se por todo o mundo urbano europeu diversas torres municipais com relógios de um só ponteiro, que passaram lentamente a reger toda a vida quotidiana urbana. No final desse século a temporalidade abstracta e homogénea das vinte e quatro horas já servia como ordenador temporal de diversos trabalhos concretos nos principais centros urbanos europeus, e com isso a própria cidade do fim da Idade Média ganhava um novo significado. Como constatou o medievalista Aron Guretvich: "Dissemos que a cidade se tinha apropriado do seu próprio tempo e isto é verdadeiro, no sentido em que o tempo escapou ao comando da Igreja. Mas, em contrapartida, foi também precisamente na cidade que o homem deixou de ser dono do tempo. Tendo, com efeito, recebido a possibilidade de se escoar sem ter em conta os indivíduos e os acontecimentos, o tempo impôs a sua própria tirania, à qual os homens tiveram de submeter-se. O tempo subjugou-os ao seu ritmo, forçou-os a agir mais depressa, a despachar-se, a não deixar escapar um instante" (Gurevitch 1990: 174-8). Esta "tirania do tempo" é no fundo a tirania da "valorização do valor" (Marx) como forma social fetichista emergente, intermediada pela paralela coerção estatal e a máquina militar desvinculada. Esta interpretação também poderá dar um novo significado à constatação de Le Goff de que "o século do relógio é também o do canhão" (Le Goff 1980: 70-1).

Mas antes de se generalizar por toda a vida social, como nos diz Kurz,

o tempo começou por se tornar abstracto, independente e absoluto apenas num espaço social determinado, que é precisamente o espaço funcional da economia empresarial desvinculado (Kurz 2004).

No âmbito do processo histórico de valorização do valor emerge assim uma dissociação social, temporal e espacial das actividades produtivas em relação a todas as outras actividades e momentos da reprodução social quotidiana, que passam daí em diante a ser encaradas como um entrave à 'produtividade', uma noção que começava então a surgir. Não se trata por isso da definição de um mero espaço de produção de bens materiais; trata-se antes de um espaço de valorização do trabalho abstracto e de riqueza abstracta. A relevância histórico-social desta desvinculação é mais evidente na separação trabalho-residência, mas na verdade não se trata propriamente de uma separação; é que não estamos perante o simples separar de duas coisas que estavam juntas mas antes da constituição de ambas em separado. A vida quotidiana pré-moderna é um todo social integrado, no qual não existe nem trabalho nem propriamente residência; apenas o capitalismo constituiu tais esferas desvinculadas que se pressupõem reciprocamente, ao mesmo tempo que a cada uma foi atribuída uma conotação sexual específica: os homens para os espaços de trabalho e de valorização da riqueza abstracta e as mulheres para os espaços domésticos e do consumo material-sensível das mercadorias.

Aquilo que progressivamente se generalizou e consolidou, sobretudo a partir do meio do século XIX, foi uma definição de cidade como espaço de concentração e valorização do trabalho abstracto. Desse modo assiste-se a uma generalização da separação social e espacial das práticas humanas, que se expande das fábricas para o espaço urbano, e cujo primeiro exemplo é porventura as obras de Hausmann em Paris. Aqui começamos já a falar do capitalismo como totalidade social constituída, como sociedade do trabalho, ou como Marx falava, do funcionamento do capitalismo sobre a sua própria base.

Ora, a forma temporal da medida da riqueza abstracta implica uma relação contraditória e dinâmica entre valor e trabalho abstracto, entre riqueza abstracta e produtividade material. Mediada pela concorrência, esta contradição inerente à valorização do valor implica uma trajectória histórica e geográfica muito particular: uma produtividade material crescente em unidades temporais cada vez mais pequenas e uma correspondente necessidade de expansão do mercado. Ou seja: a valorização do valor é um processo social dinâmico e objectivo de crescente intensidade temporal (produtividade) e progressiva expansividade geográfica (mercado mundial). Este processo imprime na modernidade uma dinâmica interna, objectiva e inconsciente, completamente desconhecida nas sociedades pré-modernas. Enquanto nestas o princípio social metafísico mantinha-se transcendente e funcionava como matriz religiosa personificada de referência e estabilização social, a metafísica social da valorização do valor é um processo sistemático e contraditório de objectivação em mercadorias, tornando-se assim imanente ao mundo e imprimindo-lhe uma dinâmica histórica de brutal transformação social cega, na qual se inclui evidentemente a urbanização moderna e o actual sistema urbano mundial.

Evidentemente que na base de tudo isto está a contradição basilar insanável da relação de capital: por um lado, ele precisa de absorver trabalho abstracto na maior quantidade possível; por outro lado, a concorrência cria um aumento de produtividade através da qual a força de trabalho se torna supérflua e é substituída por capital objectivado na forma de maquinaria. Esta contradição tem um conhecido mecanismo de compensação que, dito de forma simplificada, se expressa na capacidade do sistema, em cada aumento de produtividade, absorver maiores quantidades absolutas de força de trabalho do que aquelas que foram eliminadas através da racionalização ou introdução de maquinaria. O exemplo disso foi o fordismo: ao mesmo tempo que a linha de montagem reduzia o tempo de trabalho para cada mercadoria, permitia também a absorção de maiores quantidades absolutas de força de trabalho. O resultado foi uma sociedade do trabalho a todo o vapor, o arranque da urbanização mundial generalizada e o progressivo embaratecimento generalizado de mercadorias inicialmente vendidas como bens de luxo (automóvel, frigoríficos, máquinas de lavar, etc.). Datam deste período as teses do urbanismo funcionalista dos CIAM, onde é evidente a metafísica do trabalho e a temporalidade abstracta da valorização do valor, sobretudo em Le Corbusier, para quem a cidade é um instrumento de trabalho (Corbusier 1992: vii) e que o planeamento urbano deve ajudar no nascimento da alegria do trabalho (Corbusier 1995: 68); que defende que a lei das vinte e quatro horas será a medida de qualquer empreendimento urbanístico (1995: 10) e que "a cidade que dispõe de velocidade dispõe do sucesso" (1992: 180).

Obviamente que o mecanismo de compensação interno da trajectória do capitalismo só pode ser eficaz enquanto a velocidade de inovação dos produtos é superior à velocidade de inovação no processo produtivo. Mas no contexto da 3ª Revolução Industrial da micro-electrónica, a relação inverte-se e pela primeira vez a racionalização e cientifização das forças produtivas torna supérflua mais força de trabalho do que aquela que consegue absorver. E aqui não se trata apenas de indivíduos mas de regiões, países e continentes inteiros. O trabalho abstracto, que até aqui tinha funcionado como forma fetichista de integração social, revela aquilo que nunca deixou de ser: uma violentíssima forma de exclusão social. Há muito que isto é evidente na urbanização do continente africano que, incapaz de concorrer no mercado global, apresenta fenómenos de uma miserável hiper-urbanização sem a correspondente criação de emprego, ao contrário do que se verificou na história da urbanização europeia. Mas também há muito que os fenómenos de desemprego estrutural massificado atingem as megalópoles dos países do centro do sistema mundial de trabalho abstracto. E se a isto juntarmos a urbanização financiada a capital fictício e o custo crescente de manutenção de uma infraestrutura social urbana improdutiva do ponto de vista do capital, ela própria garantida através de dívida pública, parece de facto haver motivos para assombro no sistema urbano capitalista mundial. Depois da explosão urbana dos últimos dois séculos, existem agora sérios riscos de muitas cidades se tornarem verdadeiros barris de pólvora.


B I b l I o g r a f i a :

Aston, T. H., and C.H.E. Philpin, eds. ([1985] 1995), The Brenner Debate. Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe. Cambridge: Cambridge University Press.

Braudel, Fernand ([1979] 1992), Civilização Material, Economia e Capitalismo. Séculos XV-XVIII. Tomo 1. As estruturas do quotidiano. Lisboa: Editorial Teorema.

Childe, V. Gordon (1950), "The Urban Revolution", The Town Planning Review 21 (1):3-17.

Corbusier, Le ([1924] 1992), Urbanismo. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora.

——— (1995), Maneira de Pensar o Urbanismo. Mem-Martins: Publicações Europa-América.

Dobb, Maurice, Paul M. Sweezy, H.K. Takahashi, Rodney Hilton, and Christopher Hill ([1970] 1978), Do Feudalismo ao Capitalismo. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

Engels, F. (1986), "Suplemento ao Livro III de "O Capital"", in O Capital. Crítica da Economia Política. Livro Terceiro. O processo global da produção capitalista. Tomo 2., São Paulo: Editora Nova Cultural.

Finley, Moses I. ([1973] 1980), A economia antiga. Porto: Edições Afrontamento.

Gurevitch, Aron ([1972] 1990), As Categorias da Cultura Medieval. Lisboa: Caminho.

Kostof, Spiro (1992), The City Assembled. The elements of urban form through history. London: Thames and Hudson.

Kurz, Robert (2004), A Substância do Capital. O trabalho como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização. Primeira Parte: A qualidade histórico-social negativa da abstracção "trabalho". 2004 [Acedido a 10 de Outubro de 2005. Disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz203.htm.

——— (no prelo), Dinheiro sem valor. Linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política. Lisboa: Antígona.

Le Goff, Jacques ([1977] 1980), Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa.

——— (2003), Em Busca da Idade Média. Lisboa: Editorial Teorema.

Marx, Karl (2011), Grundrisse. Manuscritos económicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial e Editora UFRJ.

Mauss, Marcel ([1950] 2001), Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70.

Mumford, Lewis ([1961] 1998), A Cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. 4ª ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes.

Polanyi, Karl ([1944] 2001), The Great Transformation. The political and economic origins of our time. Boston: Beacon Press.


Rikwert, Joseph ([1963] 1988), The Idea of a Town: The Anthropology of Urban Form in Rome, Italy, and The Ancient World: MIT Press

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

PORQUE A ESSENCIA NÃO PODE SER APROPRIADA IMEDIATAMENTE?


Edmilson Carvalho - Arquiteto de formação trabalhou sempre em planejamento econômico, área em que se especializou na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina). Teve destacada atuação na SUDENE, em Recife (1962 a 1973) e na Secretaria de Planejamento da Bahia. Professor de Economia Política e Teoria Política. Há cerca de 20 anos participa da Oposição Operária (Opop), grupo que edita a revista Germinal. De sua autoria neste blog: Gramsci e a produção das categorias do conhecimento,  A cidade do capital. e A totalidade.


O conceito é a chave da descoberta da essência que reside no ser e que o preside, mas que está envolta pela esfera do fenomênico. Uma totalidade contém o que aparece, o imediatamente captado pela percepção, e o seu oposto, que não aparece, a sua essência, só pode ser captada por meio do pensamento abstrato.

A essência não é algo estranho ao fenômeno, mas parte dele, a mais fundamental, a mais remota, a mais íntima e a mais profunda, a que corresponde à sua lei. O pensamento dialético leva em consideração a aparência e a essência do objeto, apenas colocando o problema da passagem da primeira à segunda instância, o que constitui uma ultrapassagem que só pode ser lograda pelo uso das categorias e dos conceitos -- numa palavra, pelo método dialético. A partir de tudo o que foi afirmado até aqui, surge a pergunta inevitável: por que a essência não é imediatamente apropriada pelo intelecto? A questão é assim colocada pelo filósofo Karel Kosik (1976, p. 12):

O fenômeno não é, portanto, outra coisa senão aquilo que - diferente-mente da essência oculta - se manifesta diretamente, primeiro e com maior freqüência. Mas por que a 'coisa em si', a estrutura da coisa, não se manifesta imediata e diretamente? Por que são necessários um esforço e um desvio para compreendê-la? Por que a 'coisa em si' se oculta, foge à percepção imediata? De que ocultação se trata?

O mesmo Kosik tenta dar uma resposta a essa questão, especialmente em duas passagens da mesma obra. Numa primeira, ele afirma que

o impulso espontâneo da práxis e do pensamento para isolar os fenômenos, para cindir a realidade no que é essencial e no que é se-cundário, vem sempre acompanhado de uma igualmente espontânea percepção do todo, na qual e da qual são isolados alguns aspectos L..1 (KOSIK, 1976, p. 15).

Ou seja, a percepção apanha a totalidade do fato -- fenômeno e essência --, mas não pode, por si só, evitar a cisão da realidade que ela mesma apreende; a própria percepção que, com o concurso da práxis, cinde e isola a essência do fenômeno, deixa de reconhecer a essência que ela mesma capta, que carrega embutida em si, mas que, isolada, está e permanece, contraditoriamente, oculta a si mesma. Numa outra passagem, ele completa sua explicação:

Os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como realidade (a realidade mesma) não porque sejam os mais superficiais e mais próximos do conhecimento sensorial, mas porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana (KOSIK, 1976, p. 15)

As afirmações de Kosik podem ser analisadas por mais de um ângulo. Um deles é o seguinte: não é porque as formas fenomênicas das coisas sejam as mais superficiais e as mais próximas do conhecimento sensorial que elas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como a realidade mesma. De fato, ainda que o conhecimento sensorial e perceptível se coloque de frente aos fenômenos -- portanto próximo deles -- e que esses mesmos fenômenos, como já foi visto, já estejam coetânea e ontológica-mente juntos e ligados às suas respectivas essências -- portanto essas essências também próximas das sensações --, as sensações e as percepções não podem, como tais, passar do fenomênico, ultrapassá-lo e desvendar a esfera do essencial. Já aqui existe uma complicação: se as formas fenomênicas, que se reproduzem no pensamento comum, já contêm, enquanto totalidades, as suas essências, por que as formas essenciais também não se reproduzem no pensamento comum simultaneamente?

A gnosiologia presente nos Cadernos filosóficos de Lenin não deixa dúvidas a esse respeito: na produção do conhecimento científico, como na produção de qualquer conhecimento, a mediação da sensação e da percepção nunca poderá ser abolida; como também não existe hipótese alguma na qual a apreensão sensorial -- obtida sempre ligada à percepção, como já foi visto mais atrás -- possa captar as formas essenciais diretamente. Para captar as formas essenciais, as mais profundas, embora também próximas, o conhecimento sensorial não basta, e é a partir daí que se faz necessário o conhecimento categorial.

Entrementes, das afirmações adicionais feitas por Kosik pode-se concluir comodamente que o fracionamento perceptivo do real na cabeça do homem na esfera do cotidiano é um resultado normal de uma práxis que já realiza nesse mesmo cotidiano, em si e para si, tal fracionamento. O homem alcança a espontânea percepção do todo; porém, desse todo, que contém dentro de si a essência e o fenomênico, o homem só capta, de imediato, o fenomênico, e a essência, que está ali embutida, não lhe aparece de imediato -- cisão que é, para Kosik, produto da práxis cotidiana. É necessário aduzir que existe algo mais do que a práxis cotidiana no rol de causas da impossibilidade da apreensão direta das formas essenciais das coisas pelo intelecto humano.

De fato, Kosik (1976, p. 15) começa por afirmar que

o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana [... e que] o pensamento comum é a forma ideológica do ser humano de todos os dias.

Mas antes já tinha afirmado que o elemento subordinado, o pensamento, e o elemento determinante, o impulso espontâneo da práxis,

tinham a faculdade de isolar os fenômenos [... e] cindir a realidade no que é essencial e no que é secundário [...] (KOSIK, 1976, p. 15).

Para Kosik, portanto, a cisão da coisa na consciência, de um lado em fenomênico diretamente apropriável e, de outro, em conceito que contém a essência inalcançável imediata e diretamente, resulta de uma práxis limitada -- a práxis social cotidiana.

Disso pode ser deduzido -- embora Kosik não o tenha afirmado explicitamente -- que, se fosse possível realizar uma práxis capaz de abarcar a coisa simultaneamente em todos os seus aspectos e em todas as suas dimensões, ter-se-ia uma compreensão igualmente totalizante da coisa; ter-se-ia, pois, não só sensações e percepções, mas sensações, percepções e conceitos, unificados imediatamente, captados ou captáveis, em face da apreensão do todo em todas as suas dimensões -- resumida e fundamentalmente em essência e fenômeno -- e de um só golpe.

Queremos insistir em que a afirmação de Kosik induz a pensar que uma abordagem prática simultaneamente totalizante, na hipótese de tal abordagem ser possível (e tal abordagem só seria possível numa sociabilidade completamente desfetichizada, vale dizer, numa sociedade e, portanto, numa sociabilidade comunista), fundiria e exibiria a sensação, a percepção e o conceito numa só coisa e num só ato sensitivo-perceptivo-intelectivo, do que resultaria que o pensamento passaria a ser um pensamento imediatamente científico; ou, dito de outra forma, que a filosofia, a lógica e a ciência deixariam de constituir um processo de descoberta e elaboração específica e sistemática para ser atividade humana normal.

A afirmação de Kosik, no sentido que estamos ressaltando aqui, fica mais evidenciada ainda quando se conhecimento de que o que ele denomina de prática cotidiana, ambiente cotidiano, atmosfera comum da vida humana ou, como é de sua preferência denominar, mundo da pseudoconcreticidade, nada mais é do que o mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens, numa palavra, o mundo capitalista. É o que ele manifestamente afirma:

A práxis de que se trata neste contexto é historicamente determinada e unilateral, é a práxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais que sobre elas se ergue. (KOSIK, 1976, p. 10).

De onde se deduz que, uma vez superado esse mundo -- o mundo da pseudoconcreticidade, o mundo do cotidiano, o mundo cuja práxis e cujo pensamento cindem o real em aparência e essência --, numa palavra, inaugurada uma sociedade comunista (ausência de todas as dimensões fetichizadas), que implicaria, por definição, uma outra práxis, ter-se-ia, com e nessa nova práxis, a não-cisão da coisa em si em aparência e essência. Portanto, a concepção de Kosik localiza os problemas do pensamento e da produção do conhecimento na práxis que abarca as determinações sociais da divisão do trabalho, das classes sociais e da hierarquia social daí resultante.

De fato, do ponto de vista de Lenin as coisas não acontecem da maneira como pensa Kosik. Porque, segundo Lenin, mesmo quando for possível abarcar simultaneamente, pela práxis, uma realidade concreta em todos os seus aspectos, ângulos e dimensões e, ainda mais, mesmo quando os homens puderem viver numa sociedade sem a atual divisão do trabalho, sem as classes sociais, sem resíduos de todas as modalidades do fetiche e sem as ideologias, ainda assim o pensamento continuará a ter de realizar um détour -- e não ir diretamente -- para passar da aparência à essência. Não é que Lenin não atribua importância a esses aspectos sociais -- divisão do trabalho, etc. -- como barreiras que se antepõem à produção científica do conhecimento; para ele, não obstante residir, nesses fatores, grande responsabilidade na obnubilação da visibilidade gnosiológica dos fatos sociais, não se pode deixar de fora considerações de ordem filosófica que também têm importância decisiva na ultrapassagem lógica e gnosiológica do fenomênico à essência. De maneira que estamos aí diante de uma divergência de or-dem gnosiológica que não é uma divergência qualquer e que precisa, por isso mesmo, ser levada em consideração.

Examinemos o problema, em primeiro plano, pelo ângulo da ideologia que decerto constitui uma ação prática e social a qual implica uma relação dialética entre uma classe dominante que emite e outra(s), dominada(s), que intemaliza(m) as formas ideológicas. Sem que vejamos essa relação como um trânsito de via única e isento de tensões e mediações muito complexas, o eixo da questão prática e social da fonte e propagação das ideologias reside aqui:

As ideias da classe dominante são as idéias dominantes em cada época; ou, dito em outros termos, a classe que exerce o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, a que exerce seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe com eles, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual. O que faz com que se lhe submetam, ao mesmo tempo, por termo médio, as idéias dos que carecem dos meios necessários para produzir espiritualmente. As idéias dominantes não são outra coisa que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as mesmas relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, as relações que fazem de uma determinada classe a classe dominante são também as que conferem o papel dominante a suas ideias. (MARX; ENGELS, 1970, p. 50-51)

Para que as ideologias possam cumprir seu papel de formas ideais e espirituais de dominação de classe, é necessário que elas reiterem a cisão do real em fenômeno de um lado e essência de outro, um imediatamente captável, outro, não. Essa cisão, assim posta, também contribui para uma visão invertida dos fatos e das relações sociais, de maneira que sobretudo as classes dominadas ficam impedidas de tomar consciência de sua situação no sistema de poder da sociedade. Daí porque nesse âmbito, à medida que, com o desaparecimento das classes sociais, durante todo um período de transição adrede dirigido todas as determinações ideológicas sejam finalmente eliminadas, todos os bloqueios ideológicos à visibilidade da essência das coisas terão sido igualmente eliminados e os homens terão rompido com uma das maiores barreiras que os separa de uma visão científica do mundo social.

Já por este ângulo, todos os homens terão as mesmas possibilidades de acesso a uma inteligência científica das totalidades, que hoje lhes são negadas pela sociabilidade capitalista -- vale dizer, todos os homens terão disponíveis os mesmos meios e as mesmas possibilidades de alcance intelectivo, na sua práxis social, do essencial que as mais diversas modalidades de totalidades comportam.

Contudo, o imbróglio ideológico é apenas um dos bloqueios sociais que dificultam o acesso às essências das mais diversas modalidades de totalidades na sociabilidade da ordem social do capital. Uma vez quebrado esse bloqueio, grande passo terá sido dado para que qualquer homem possa pensar como um cientista -- o que não quer dizer que numa sociedade sem classes todos os homens se tornem de fato cientistas, posto que entre dispor de todos os meios e tornar-se cientista existe ainda certa diferença. Mas, de todo modo, os homens médios de uma sociedade sem classes pensarão muito próximos do que se entende por pensamento científico numa sociedade de classes como a atual, porque os meios para pensar com método, levando o homem social médio a elevar o nível e a qualidade de seu pensamento, serão facultados por uma educação normalmente proporcionada a todos.
De certa forma, é isso o que se passa no terreno da arte:

[...] numa organização comunista da sociedade desaparece a inclusão do artista à limitação local e nacional, que corresponde pura e unicamente à divisão do trabalho, e a inclusão do individuo nesta determinada arte, de tal modo que só haja exclusivamente pintores, escultores, etc., e o nome mes-mo expressa com bastante eloqüência a limitação de seu desenvolvimento profissional e sua dependência à divisão do trabalho. Numa sociedade co-munista não haverá pintores, senão, em suma, homens que, entre outras coisas, se ocupam também em pintar. (MARX; ENGELS, 1970, p. 470).

Também aqui, no terreno da arte, da mesma forma que no da ciência, a todos os homens serão dados os mesmos meios para que possam produzir pintura, música, literatura, teatro, etc. O que Engels diz aí é que numa sociedade comunista os homens não serão exclusivamente pintores, escultores, etc., mas homens que, libertados das amarras da divisão burguesa do trabalho, terão plenas faculdades e meios para pintar, esculpir, compor, etc. Mas Engels não vê nisso qualquer impedimento para que um ou outro indivíduo possa desenvolver um grande talento ao pintar, esculpir, compor, etc. - numa palavra, para que um ou outro indivíduo possa tornar-se um grande artista. Fica aberta a seguinte possibilidade: todos os indivíduos, por se terem libertado da ideologia e da divisão social burguesa do trabalho e por receberem da sociedade os mesmos meios de criação e expressão artística, poderão fazer também arte, e, entre esses, haverá alguns (certamente muitos) que, motivados por paixões e tensões subjetivas pessoais (e por que não?), poderão tomar-se excepcionais artistas, decerto mais livres e maiores do que os artistas das diversas sociedades de classe, o que, a bem da verdade, não constituirá problema ou perigo algum para uma sociedade igualitária - muito pelo contrário.

A sociedade comunista liberará todos os homens de todas as travas que os tomam socialmente desiguais, mas não tornará todos os homens iguais, ainda que num grau superior, como novos produtos sociais estandardizados. Todos os homens atingirão um grau máximo de talento e, desta maneira, todos se elevarão na mesma medida em que multiplicarão a variedade de expressões individuais; de onde se depreende que, uma vez rompida a divisão social do trabalho, os homens poderão fazer arte em iguais condições sociais, mas esse grau de libertação, que é da maior importância, não basta para fazer de qualquer individuo um artista de gênio e muito menos para fazer de todos os indivíduos artistas geniais. O processo é o mesmo para a esfera da produção científica. Mas se, por um lado, todos os homens estarão livres para pensar com método cientifico, alguns deles podendo produzir obras de profundo alcance científico, por outro lado o imbróglio do acesso ao pensamento superior (o que se situa na busca da essência para a apreensão das totalidades) não terá sido anulado só com o fim das ideologias.

Esta questão suscita uma outra, também fundamental: durante a transição socialista, as ideologias herdadas da sociabilidade burguesa não desaparecerão simplesmente com a ruptura das estruturas sociais (relação-capital, divisão do trabalho, a própria mercadoria, a troca mercantil, etc.). A superação de tais heranças da sociedade burguesa exige métodos próprios e especificamente adequados. Com efeito, a esfera ideológica, ainda que tenha origem, em última instância, como sempre afirmaram Marx e Engels, nas determinações de classes da sociedade, possuem uma esfera elástica de autonomia relativa que, por isso mesmo, exigem métodos próprios de superação.

As transfor-mações estruturais, que constituirão a base da sociedade durante a transição, facilitarão, como premissas básicas, a superação dos traços ideológicos e culturais e evitarão, no futuro, que essas formações ideológicas voltem a aparecer, mas não garantirão o desaparecimento automático das velhas formas ideológicas e culturais. E mais: sua erradicação, durante a fase de transição socialista, jamais será lograda por uma educação de massas levada a efeito por manuais, livrinhos vermelhos e outras formas simplistas e caricatas de educação que não ensinam os homens a pensar, mas apenas a reproduzir absurdas reduções, estereótipos, slogans e todo tipo de lugar-comum — um senso comum no lugar de outro senso comum.

A questão do fetiche, quer se trate do fetiche da mercadoria e do dinheiro, quer se trate de todas as demais formas de fetiche que perpassam a produção capitalista como um todo, está totalmente ligada à divisão social do trabalho no quadro das relações sociais de produção capitalistas. Uma vez desfeita a propriedade privada dos meios de produção e supressas todas as restantes relações e formas que, para além da propriedade (a troca e a circulação mercantil, a hierarquia imutável nas unidades de produção, a irrevogabilidade dos cargos, etc.), recorrem à sobrevivência do capital, as (novas) relações sociais de produção tomar-se-ão absolutamente visíveis e o fetiche, coisa do passado. Deve ser notado que os efeitos dissimuladores do fetiche como, por exemplo, o da mercadoria, constituem formas de falsa consciência, mas, por serem formas estruturais, diferem das formas ideológicas. O desaparecimento das relações sociais fetichizadas também elevará o conjunto de possibilidades do homem médio a alcançar o nível do pensamento científico; mas, como tentaremos mostrar mais adiante, isso também não é tudo.

Posto isto, passemos agora à divisão do trabalho. Mesmo numa sociedade socialista moderna, ou mesmo numa sociedade comunista, os trabalhadores diretos já não poderiam mais recorrer a um processo produtivo, como era o artesanal, pelo qual pudessem, no e pelo ato da produção, dominar o conhecimento e o manejo de todos os componentes e todas as operações parcelares dos valores de uso produzidos. Como poderia um trabalhador que operasse na produção e construção de automóveis, aviões, máquinas complexas, hidrelétricas, etc., conhecer e dominar todos os componentes e todas as operações parcelares presentes na produção de tais produtos?

Como poderia um trabalhador conhecer e produzir, por exemplo, as mais de 20 mil peças componentes e outras tantas operações parcelares inscritas na produção de um automóvel? Impossível, ate porque a produção socialista não devera negar, mas levar adiante, os avancos positivos -- tecnológicos, científicos, etc. -- herdados da produção capitalista. Nestes termos, nenhum trabalhador poderia alcançar, pela pratica direta do trabalho, como quer Kosik (1976), todos os aspectos de um dado produto, ou seja, a inteireza da totalidade de aspectos, componentes e relações desse produto e, portanto, de sua produção.

A universalidade perdida pelo trabalhador (ex-artesão) durante a produção capitalista, que lhe retribuiu com a sua alienação, seria resgatada num outro plano, no da concepção do produto -- no caso em questão, do valor de uso produzido. A compreensão da totalidade do produto, que era dada ao artesão pelo trabalho direto em toda a linha de produção daquele, seria agora reapropriada, não pela já impossível atuação direta do tra-balhador socialista ou comunista em todas as operações parcelares de um produto complexo, mas pelo rodizio na linha de produção, portanto, na faculdade de operar sobre uma gama muito major e livre de posições numa linha de produção de um valor de uso qualquer e, antes e acima de tudo, pela participação e compreensão coletiva na concepção do produto e do processo de produção do produto -- sua finalidade social, sua estrutura essencial, o curso transformativo que ele devera ter durante seu processo de produção.

Sendo tudo isso uma inevitável exigência do avanço tecnológico e social da produção socialista, ninguém sozinho poderia, como sugere Kosik (1976), ter acesso imediato, pela práxis do trabalho, a todos os aspectos de um dado produto (valor de uso) complexo. A superação da alienação do trabalho na produção comunista seria dada, em parte, pelo rodizio do produtor direto em vários estágios da divisão e do processo de trabalho e completada na sua participação na concepção não só de cada produto, aqui apenas valor de uso, como também, e principalmente, do próprio processo de trabalho.
 A questão deve agora ser posta nos seguintes termos: a divisão do trabalho comunista, que implicaria a superação da alienação com o rodizio de trabalhadores no processo de trabalho e produção, acompanhado da formulação e da concepção do produto e do próprio processo de trabalho, bastaria para eliminar a cisão de todos os aspectos do real em fenômeno e essência?

Não resta dúvida de que a superação da divisão capitalista do trabalho, nos termos mais atrás colocados, devolveria o pleno domínio do conhecimento do produto e de seu processo de produção a seus produtores diretos; todavia, a questão gnosiológica não se esgota na pura, exclusiva e imediata esfera da produção dos produtos (valores de uso) socialmente necessários.

É evidente que, com a eliminação daqueles traços característicos do mundo social do capital, o processo de produção científica do conhecimento ficaria imensamente facilitado e acessível praticamente a todos, mas jamais poderia acontecer naturalmente. O máximo que uma abordagem simultaneamente totalizante de uma realidade dada ou isenta dos referidos bloqueios sociais e ideológicos poderia proporcionar ao intelecto seria uma quantidade maior de aspectos constitutivos da referida realidade/totalidade e/ou a abordagem dessa realidade/totalidade sem as interdições estruturais e ideológicas, que desta forma, sim, facilitaria, mas nunca conduziria naturalmente à produção da síntese conceituai que é própria do trabalho da consciência. Isto equivale a dizer, na linha de pensamento acrescentada por Lenin, que ainda teríamos um problema de ordem filosófica a resolver: o problema gnosiológico. Na mesma ordem de raciocínio, pode-se afirmar que a eficácia da apreensão conceitual de um objeto aumenta com a abordagem prática e perceptiva do maior número de aspectos, momentos, relações e determinações de uma realidade/totalidade; contudo, esse aumento de possibilidades não culmina, por si só - e, forçosamente, como mera quantidade disponível --, numa produção que é uma ruptura qualitativa do produto conceitual. Esse é sempre, como ressaltou Lenin, um trabalho (filosófico) de abstração -- e

é preciso que a abstração não seja considerada apenas como um produto da divisão do trabalho, mas como instrumento do conhecimento (LEFEBVRE, 1969, p. 119).

A transformação mais revolucionária é a que proporcionará uma abordagem mais completa do objeto a ser transformado, mas se trata de uma transformação que jamais dispensará o empreendimento teórico sistemático e correspondente. Seria uma ingenuidade pueril pensar que uma sociabilidade desfetichizada pudesse anular a diferença entre fenômeno e essência, sensação e conceito e que, consequentemente, pudéssemos aposentar de vez a ciência porque a verdade científica seria direta e integralmente apanhada por cada pessoa, bastando-lhe, para isso, que participasse de uma práxis realizada no interior de relações sociais não mais fetichizadas.

O busílis da questão pode ser finalmente enunciado: numa sociedade desfetichizada e sem divisão alienante do trabalho, homens e mulheres poderão, no âmbito do processo e da divisão do trabalho social, ver e tocar os objetos (valores de uso) e fatos sociais por todos os ângulos possíveis, mas só os alcançarão por meio das sensações e percepções. A partir daí, ficará muitíssimo mais próxima a formação de conceitos, mas os conceitos e as categorias científicas nunca serão produzidos direta e imediatamente, vez que as sensações e as percepções, trilha gnosiológica indispensável, não são conceitos.' Isso quer dizer que o trabalho intelectual que os transforma em conceitos não será desnecessário, embora facilitado e posto ao alcance do indivíduo médio. O trabalho científico de elaboração de conceitos e categorias científicas seguirá sendo necessário, ainda que socialmente disponível a todos. O homem social médio terá eliminado todos os bloqueios sociais ao trabalho científico, mas terá de enfrentar o último bloqueio -- o gnosiológico, que resulta da recorrência inarredável de começar pela apreensão sensorial e perceptiva das coisas e dos fatos. Esta conclusão é diretamente deduzida da gnosiologia leninista dos Cadernos filosóficos e merece apenas alguns desdobramentos a mais. Conceitos e categorias não são apanhados diretamente do meio natural e social no âmbito da práxis social, pelo simples motivo de que são produtos de uma produção intelectual feita obrigatoriamente a partir do material sensitivo e perceptivo captado das coisas, das relações, dos fatos e dos processos sociais no âmbito da mesma práxis social.

Quando o analista possui grande domínio dos conceitos e das categorias científicas, a distância entre a apropriação sensorial da coisa e o trabalho intelectual dos conceitos e das categorias pode tornar-se tão pequena que tudo se passa como se esses conceitos e essas categorias -- o trabalho teórico -- substituíssem o fluxo das sensações -- também elas fenomênicas -- e a essência da coisa estivesse sendo apropriada direta e automaticamente; é como se tal analista pensasse teoricamente a coisa já a partir do imediato contato prático com ela ou como, o que dá na mesma, se os conceitos e as categorias substituíssem a apropriação sensorial. Por maior que seja o domínio das categorias científicas pelo analista, ou seja, por mínima que seja a distância entre a apropriação sensorial e a apropriação conceitual da coisa, esses dois momentos nunca serão fundidos num só ato, vale dizer, nunca o ato intelectivo da coisa substituirá a mediação da apropriação sensorial da coisa. Tampouco o fato, aqui já analisado, de que a prática do trabalho e da ciência já definem a seleção dos aspectos mais relevantes para a apreensão mais completa do conhecimento dos fatos naturais e sociais elimina a distinção entre sensação e percepção e entre essas faculdades e o conceito -- ou seja, essa potencialização do conhecimento não dispensa o détour assinalado por Lenin.

Por mais que o homem domine as categorias do pensamento científico, por mais que ele, ao captar os fenômenos, tenha tais categorias à sua disposição no seu cérebro, ele, a despeito de poder processar muito rapidamente o conhecimento científico, não pode captar as formas essenciais, no plano da percepção, da sensação, por meio de ideias cientificamente elaboradas. O homem colhe sensações, não conceitos e categorias, dos fatos sociais imediatos. O que há de novo é que numa sociedade desfetichizada a possibilidade de produzir conhecimento científico será uma possibilidade social dada a todos, e que, num ambiente assim liberado de todos os bloqueios à plena realização humana dos indivíduos, produzir conhecimento científico passa a ser tão comum como ter de preparar alimentos ou fazer exercícios físicos para a reprodução dos indivíduos livres.


Tudo isso só vem mostrar como os pensadores do século XX, inclusive marxistas, não deram ainda a devida atenção à riqueza e à densidade científica dos Cadernos filosóficos de Lenin, um colossal aprofundamento de aspectos essenciais da gnosiologia pressuposta, mas não desenvolvida, por Marx e Engels (LEFEBVRE, 1969, p. 111-126).