terça-feira, 11 de junho de 2013

CAMARA OBSCURA Ou: SERÃO AS IDEIAS DOMINANTES AS IDEIAS DOS DOMINANTES?

A teoria da ideologia de Marx: Uma herança de surpreendente atualidade.

Robert Misik -- (capítulo VII de: Marx para apressados. Eds. ALVA – Brasília 2006.

Tradução: Frank Svensson


O Capital custou a Marx quinze anos de sua vida e uma grande parte de sua ambição em vê-lo publicado. O trabalho que nele investiu é realmente enorme. Para esta obra ele suportou pobreza, doença, perseguições públicas e pessoais, contra sua vontade é certo, mas com um estoicismo determinado do qual a incrível estabilidade emocionava e espantava todos aqueles que tinham a haver com ele, como escreveu Isaiah Berlin. Em 5 de maio de 1867, dia do 49° aniversário, quando recebeu as provas do primeiro volume de O Capital, Marx certamente sentiu-se muito aliviado. Principalmente por finalmente ver que a teoria por ele elaborada agora podia ser vista, lida e criticada por todo mundo. Até então ele tinha desenvolvido componentes de sua visão de mundo, como que de passagem, à ocasião de controvérsias com outros autores: o materialismo histórico em sua crítica de Proudhon, e em A Ideologia Alemã; elementos de uma teoria do Estado encontram-se disseminados na obra de Marx; não podemos falar de uma teoria bem madura da ideologia, pois todos esses elementos frequentemente não passam de flashes em seus inumeráveis escritos. E, do monumento da economia política só a primeira parte está concluída. Os livros dois e três de O Capital só existem em estado de notas, ao lado dos quais se acumulam as teorias sobre a mais valia, que ocupam três tomos da obra de Marx. Tudo isso teria que ser reelaborado, reformulado, revisto com pente fino. Além disso, Marx tinha inúmeros outros projetos: Quando eu me desembaraçar do fardo econômico, escreverei uma dialética, anunciou, confiante, após a aparição do primeiro livro de O Capital.

Após o fracasso da revolução de 1848, Marx retraiu-se da vida pública. O movimento obreiro, privado de seus dirigentes que se encontravam em exílio ou prisão, permaneceu por muito tempo vencido, enquanto o capitalismo continuava sua marcha vitoriosa para o píncaros desconhecidos nos anos do grande boom econômico. Marx abandonara rapidamente toda esperança de um novo assalto, de uma nova onda revolucionária. Era, verdadeiramente, a Era do Capital, como o diz justamente o livro de Eric J. Hobsbawm. A época, tudo se dava nos domínios econômico e técnico:

no ferro, derramado sobre o mundo em milhões de toneladas para permitir aos trens cruzar os continentes, os cabos submarinos lançados através do Atlântico, a construção do canal de Suez, das grandes cidades... (Paris, Hachette, 2002, p. 18).

O comércio mundial aumentando de forma exponencial, a produção de ferro quadruplica, após a invenção do telégrafo, vem a do telefone (em 1876, já havia 200 telefones funcionando na Europa); as cidades crescem. Alguns comparam o período entre 1850 e 1870 com a época das grandes descobertas e conquistas de Cristóvão Colombo, Vasco da Gama e Pizarro. Em 1872 podia-se, enfim, chegar a Bombaim passando por Londres, Brindisi, depois, atravessando o canal de Suez, chegar até São Francisco, em seguida Nova Iorque, após atravessar o For West, tomar o navio para Liverpool e entrar em Londres de trem -- tudo isso em 80 dias. Uma aventura incrível que inspirou o célebre romance de Júlio Verne.

O movimento obreiro renasceu aos poucos de suas cinzas. Com a recessão do ano 1857 retoma-se de um golpe a consciência de que o futuro fulgurante do capitalismo não continuará indefinidamente e sem contradição. Depois de meados dos anos 1860, Marx foge mais e mais do isolamento que havia escolhido. Na Alemanha tornara-se uma força com facções lideradas por gente como Ferdinand Lasalle, August Bebel e Wilhelm Liebknecht, sobre os quais Marx e Engels exerciam grande autoridade. Graças à Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1864 -- conhecida hoje como Primeira Internacional -- o erudito do British Museum dispunha de um instrumento que lhe permitia jogar um papei proeminente nas lutas de seu tempo. Organização pouco estruturada, reunindo correntes distintas, características contraditórias, bravos sindicalistas, assim como, fervorosos agitadores, a Internacional foi cedo vista como o órgão manipulador de todas as tentativas de subversão da época. Foi aos poucos tida como é hoje a Al Quaeda, e Marx obteve a duvidosa honra de ser considerado o pior de todos os perigosos inimigos do Estado da Europa. Pelos defensores da ordem estabelecida era denominado o doutor terrorista vermelho, de certa forma um Osama Bin Laden do 19.° século.

Nos anos 1869/70, uma onda de revoltas obreiras e greves rebentam sobre o continente, da Alemanha à Franca, à Itália até à Áustria-Hungria e a Rússia. Essa nova série de rebeliões culmina em 1871 com a Comuna de Paris, quando, em seguida à derrota da França contra a Alemanha, o povo parisiense se subleva, caça as classes superiores, os governantes, e proclama a Comuna. Marx resta energizado. Consagra cada vez menos tempo a seus estudos econômicos e vê nas medidas tomadas pelos revolucionários parisienses e sua autogestão, a forma política finalmente encontrada que permitia realizar a emancipação econômica do trabalho (La Commune de Paris - Paris, Le Temps des Cerises, 2002, p. 49). Lança-se a corpo perdido na luta. Mesmo após a derrota da Comuna de Paris, as crescentes dissensões no seio da Internacional continuam a ocupar a maior parte do tempo de Marx, como lhe ocuparão, em seguida, os primeiros passos de um partido trabalhista unificado alemão, não outra coisa que o núcleo social-democrata inicial do atual SPD. Torturado por suas dores crônicas e pelos azares familiares tornou-se um velho sábio ainda que jovem Marx vê sua capacidade de trabalho diminuir pouco a pouco. Não publicará outra grande obra até sua prematura morte em 1883, nem mesmo obra adequada a ser impressa. É como se a sua vida terminasse com a publicação de O Capital. Morre um ano e meio após a morte de sua esposa e dois meses após a morte de sua filha Jennychen, a pequena Jenny. Dois duros golpes dos quais o homem de 65 anos não se recupera mais.

Deixou uma obra em que a novidade de pensamento frequentemente ficou em estado de esboço. Uma obra magnífica e disparate -- donde as arengas de seus exegetas e as divergências escolásticas entre as interpretações. O monumento que representam seus escritos inacabados deixa o campo livre a apreciações de todo tipo. Isso vale particu-larmente para um ponto importante da obra de Marx, do qual só nos deixou um fragmento: sua teoria da ideologia. Pois se confere às condições materiais das condições de existência dos homens uma força histórica essencial, aos homens dá a possibilidade de intervir no curso das coisas. A revolta só não é uma coisa simples, não só porque a máquina automática mundial desenvolve sua própria vontade que os sujeitos têm dificuldade de monitorar, mas também porque a dominação penetra nos sujeitos. É como se fossem desmontados ou remontados. São possuídos pela luta que se dá entre as relíquias das velhas tradições, as ilusões novas e as imagens díspares que lhes servem para interpretar o mundo. Não são tanto os homens que não são esclarecidos, cujas relações de ordem interna mistificada não aparecem à luz do dia.

Vemos aí o que causa todo o impacto de uma ideologia. Interpretações e mistificações jogam naturalmente papel essencial, pois é delas que depende, por exemplo, o julgamento feito pelos homens sobre as relações sociais: justos ou injustos, naturais e imutáveis ou produzidas pelos homens, e variáveis. Essa relação entre a estrutura econô-mica e as mistificações nas mentes é para Marx uma relação sutil que ele tenta decifrar em diferentes momentos de sua obra. Ele chega a resultados que à primeira vista parecem contraditórios. Numa das passagens mais célebres - e também uma das mais contestadas - ele elabora, em 1859, a imagem de uma construção em dois níveis:

Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina seu ser social; é inversamente seu ser social que determina sua consciência. Num certo estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou o que nada mais é que a expressão jurídica, com as relações de proprie-dade no seio das quais estavam emudecidas. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, essas relações tornam-se entraves. Então se abre uma época de revolução social. A mudança na base econômica transtorna mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura. Considerando tais transtornos, temos sempre que distinguir o transtorno material -- que podemos constatar de uma maneira cientificamente rigorosa -- condições de produção econômicas, e formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, resumindo, formas ideológicas sob as quais os homens tomam consciência desse conflito e o levam até o fundo. Por mais que se julgue um indivíduo pela ideia que ele se faça de si mesmo, não saberemos julgar uma tal época de transtorno sobre a consciência de si. (Contribuição à Crítica da Economia Política, p. 4)

O ser social determina a consciência -- declaração indiscutível que pode parecer grosseira a primeira vista; como de fato, ela explica, ainda hoje, a fama intelectual de Marx que mesmo os não marxistas são forçados a reconhecer. Assim, o filósofo Eric Voegelin escrevia no 19.° século, a Alemanha produziu quatro personalidades mundialmente célebres: Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Max Weber, quatro pensadores que introduziram na história das ideias um motivo revolucionário novo: a crítica do pensamento das luzes em si. Konrad Paul Liessman deduziu que Marx é a abertura -- sempre atual -- do discurso do Outro à razão.

Que isso bem pode querer dizer? Depois da época das luzes, estimava-se que era suficiente que os homens se servissem de sua razão para serem capazes de sair da imaturidade em que eles mesmos se mergulharam. Para Marx o caminho é nitidamente mais difícil: ele recusa a ideia que basta esclarecer os homens quanto às condições de existência, para que uma vez os erros reconhecidos, eles o remedeiem de imediato (sur-le-champ); ele recusa, consequentemente, a pedagogia que quer transformar uma consciência errônea em uma consciência correta, para em seguida mudar uma má prática em uma boa prática. Ao contrário, para Marx, as ideias que se fazem os homens das condições de existência são tão inseparáveis dessas condições que de ações cometidas quotidianamente por esses mesmos homens: a prática ocorre no contexto de condições dadas, e os homens têm tanto uma representação como sua prática. Da mesma forma que, mais tarde, Sigmund Freud em seus estudos psicanalíticos, recusará de tomar os homens pelo que eles têm consciência de ser. Marx não atribui à consciência humana uma origem psicológica, mas social: os homens não são, por assim dizer, idênticos a si mesmos. Adeus ao sonho do pensamento das luzes: o sujeito não é senhor de seu domínio. Em 1840, Marx desenvolveu essa ideia em A Ideologia Alemã:

Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, dito de outra forma a classe que é a potência material dominante, é tam-bém a potência dominante espiritual... Os pensamentos dominantes não são outra coisa que a expressão ideal das relações materiais dominantes, eles são estas relações materiais expressas sob forma de ideias... (t. A. p. 44).

Vejamos algo que parece um pouco grosseiro: se a classe dominante vê seus interesses econômicos e a força econômica de que dispõe, fica claro que o mundo baseado sobre a propriedade privada e o principio da concorrência é o melhor dos mundos possíveis, o que não quer dizer forçosamente que todos os homens devem obrigatoriamente aceitar esta interpretação; as gentes não cessam de crer em Deus, se bem que a adoração ao dinheiro tenha se tornado uma nova religião. Sendo assim, atacar o poderio do dinheiro seria um donquichotismo e a ideologia um fenômeno totalmente destituído de interesse, pois não passaria de uma relação derivada unidimensional. O que não é em nenhum caso o ponto de vista de Marx. A ele importa sobremodo voltar às formas de consciência toda aparência de autonomia -- é nelas que se refletem as relações sociais hegemônicas, não de forma simples, mas de forma deformada, desfigurada. Na ideologia, os homens e suas relações nos parecem colocadas de cabeça para baixo como numa câmera obscura. Moral, religião, metafísica e outra ideologia são como que fantasmagorias na cabeça humana. (I.A. p. 20), que contém sempre os traços das condições materiais -- seja a soma das experiências vividas pelos indivíduos, coloridas pelas condições sociais em que vivem, o saber-fazer de que se apropriaram ou tão só a linguagem que jamais conserva o antigo, o habitual, chegando mesmo a contaminar o novo, se bem que este não cessa de imbricar naquilo contra o qual luta. Marx teve que, ele também, empregar antigos termos filosóficos para formular sua revolução filosó-fica, por não ter outros à sua disposição. Os homens fazem sua própria história, mas não o fazem de seu próprio movimento reza uma outra passagem de Marx igualmente célebre, não em circunstâncias de sua escolha, mas em circunstâncias existentes, dadas e transmitidas. A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos (O 18 Brumário de Luís Bonaparte, p. 69). As possibilidades abertas são limitadas, pelo menos para o que no momento é considerado pensável e para os modelos de comportamento gravados nos espíritos.

As ideologias são -- se nós nos inspiramos nos termos de Marx para as mercadorias -- coisas complexas cheias de sutilezas metafísicas e de caprichos místicos. Não flutuam num espaço vazio e têm o seu próprio peso; elas são produto de relações, mas movem vida própria; não são simples reflexos aparentes, sem ser tampouco o produto consci-ente do homem inteligível; são transmitidas pela tradição, mesmo destituídas de história para tanto. Nós somos assim continuamente confrontados a um fenômeno paradoxal: os filósofos procuram descrever a situação de sua época referindo-se a filósofos de tempos revolutos e mortos há muito tempo. Os pensamentos não são livres, isso e tudo. A revolução política, a revolução intelectual, a revolução religiosa, nascem todas de um mesmo fato fundamental da revolução econômica, interpreta o grande historiador francês Lucien Febvre: O capital se forma. E em se formando, produz uma mentalidade capitalista. Colore os pensamentos, os sentimentos e as convicções religiosas em cores capitalistas. (Combats pour l'Histoire", Paris, Pocket, 1995).

O modo de funcionamento da ideologia é uma questão que nesses 150 últimos anos tem continuamente preocupado todos os defensores de tempos melhores e os levado a discutir, explicar e interpretar abundantemente os fragmentos deixados por Marx. Tiveram uma boa razão. Tratava-se de um fenômeno altamente atual que ressaltava questões essenciais: porque as classes inferiores desenvolvem ideias que as reconciliam com sua opressão? Como é que os oprimidos aprovam tanto sua opressão? Por que a dominação não se impõe pela força, senão em casos extremos, o mais frequente com o assentimento dos homens que são submetidos?

Acontece que essas questões provocam violentas disputas entre os exegetas de Marx. Se o ser determina a consciência, esta última não passa de vento, de uma coisa totalmente destituída de importância. Neste caso porque os reformadores do mundo se bateriam para guiar a cabeça das gentes, se as condições materiais determinam as formas de consciência e se basta reverter as primeiras para que a névoa ideológica se dissipe por si mesma? Esta é uma interpretação por demais simplista dos textos de Marx, contra a qual Engels já se dirigiu no fim de sua vida. Numa letra endereçada a Joseph Bloch em Köningsberg, em 1890 (Etudes Philosofiques, p. 238), Engels escreve:

A partir da concepção materialista da história, o fator determinante na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu jamais afirmamos tal coisa. Se, depois, alguém distorce essa colocação para lhe fazer dizer que o fator econômico é o único determinante ele a transforma numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura - as formas políticas da luta de classe e seus resultados -- as Constituições estabelecidas uma vez a batalha ganha pela classe vitoriosa, etc., -- as formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, concepções religiosas e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos, exercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas; em muitos casos determinam de modo preponderante a forma. Há ação e reação de todos esses fatores... Senão, a aplicação da teoria a não importa que período histórico será mais fácil que a solução de uma simples equação de primeiro grau.

Nós fazemos nossa história nós mesmos, mas com premissas e em condições determinadas. Além disso a história se faz de tal modo que o resultado finai se libera sempre dos conflitos de um grande número de conflitos individuais...

É Marx e eu mesmo, parcialmente, que devemos assumir a responsabilidade do fato a que, às vezes, os jovens atribuem mais peso que não ao lado econômico...

Mais adiante, Engels insiste:

as superestruturas reagem também umas contra as outras e contra a base econômica. Não é que a situação econômica seja a única causa ativa e que tudo mais não passe de um efeito passivo. Mas há interação no seio da qual o movimento econômico termina por abrir um caminho necessário através de uma quantidade infinita de azares.

Vejamos aquilo que fica evidente: o simples mecanismo materialista segundo o qual as ideologias decorrem simplesmente das condições econômicas não tem mais sustentação que o mecanismo idealista inverso que quer fazer crer que as relações sociais teriam sua origem nas ideias e nos desejos dos homens. Afirmando que tudo está ligado e que as coisas atuam umas sobre as outras, fazemos intervir um mecanismo não menos estéril, graças ao qual seria felizmente possível de tudo explicar, mas também, infelizmente, de nada explicar.

Que é ideologia? É um conjunto de erros determinado por uma base ilimitada de diferentes efeitos dos quais faz parte as relações materiais, as tradições, as tentativas de engano tanto quanto os homens não são capazes de se imaginar o que são e expressá-lo com palavras, ou seja, por meio de termos existentes? Qual a relação das ideologias com a realidade? Não é elas uma consciência equivocada? Nesse caso os homens iriam melhor se não se baseassem mais sobre ideologias. Ou ao contrário, necessitam eles de uma coisa como a ideologia para assumir a realidade? Que ocorre quando o discurso ideológico torna uma sociedade possível, por aplacar os conflitos? Qual o papel das instituições públicas e privadas que ensinam essas quimeras -- as escolas, os editores, as igrejas, os estúdios de televisão, as prisões, os trabalhadores sociais? Essas são questões que preocupam depois de 120 anos os pensadores influenciados por Marx.

Ideologia é coisa complicada, mesmo se espontaneamente o sentido comum dirá aqui o contrário -desde que para ele, como escreve belamente Terry Eagleton, Critiques et Théories Litteraires, Paris, (PUF, 1994) -- a ideologia como o mau hálito é sempre os outros que o tem. Não resta muita coisa do edifício configurado, de dois níveis, do debate entre os sucessores de Marx, sobretudo após ter sua desarrumação por marxistas não ortodoxos como Antonio Gramsci, Georgy Lukàcs, Karl Korsch ou Louis Althusser. No discurso sociológico e filosófico de hoje o termo ideologia descreve efetivamente menos uma espécie de opinião pela qual uma ordem estabelecida procuraria se justificar, do que um campo semântico com a ajuda do qual os homens interpretam sua relação com as condições de existência. Quando nós refletimos sobre isso não devemos ter em mente um editorial; aproximamo-nos de seu mistério, se nós os representamos com aquilo que Gramsci chama de senso comum.

Esses campos semânticos ideológicos são uma espécie de filosofia espontânea própria a cada um, de formações complexas de montagem de termos, noções e imagens, um conglomerado de erros, de ilusões e de mistificações, mas também de evidências e de coisas mais conhecidas. O que a distingue de uma simples persuasão na intenção de dominar é primeiramente o fato de que os que a propagam e creem eles mesmos e, em segundo lugar, que a ela se agarram desejos, aspirações e esperanças, tais como, por exemplo, a necessidade de segurança ou de promessas para o futuro.

O contexto semântico ideológico é particularmente nítido nas máximas populares, cada um é artesão da sua fortuna. Todo trabalho merece salário. Funciona por mecanismo de refluxo. Se invertermos o ditado em cada um é artesão de seu infortúnio, fica menos sedutor. Um fenômeno claro quando a análise social emprega um termo tirado das ciências da natureza. Então, a maioria das gentes (pessoas) estará pronta a aprovar espontaneamente que é também impossível rebelar-se contra leis econômicas como o é rebelar-se contra a lei da gravidade -- sem pensar que a palavra lei, em física, significa algo totalmente diferente que em ciências sociais. Primeiro, para as ciências sociais que analisam as relações sociais, a lei não é nunca mais que algo relativo e aproximativo; em segundo lugar, isto à condição somente que as condições não mudem.

A ideologia nos explica menos o que os homens pensam exatamente e porque ela não delimita o imaginável numa sociedade concreta -- e o que existe além desse horizonte. Portanto, o imaginável é sempre prescrito pela sociedade e a história. É frequente que as evidências espontâneas que se encontram em violento conflito com as realidades conhecidas persistem numa só e mesma sociedade. Assim, o discurso neoliberal fez admitir totalmente que as comunidades enriquecessem poupando. O Estado enxugado que gera seu orçamento à un sou près aparenta ser o fiador da prosperidade, se bem que todo economista, todo conselho em investimento e todo fabricante sabe pertinentemente que na nossa sociedade não se enriquece economizando, só se pode enriquecer investindo.

Em nossa época se deu por palavra de ordem desideologizar, ela mesma impregnada de ideologia. As ideias trabalham em nós e faríamos por bem desconfiar disso. Constatamos com que sutileza o materialismo dominante determina as ideias dominantes e como o ser determina a consciência de maneira complexa e não sob forma de uma equação do primeiro grau. Pois as ideologias, os desejos, a ignorância e as evidências -- sem falar das evidências materiais dos fenômenos da superestrutura, como o direito, o Estado, a indústria cultural -- impõem sua autonomia e repercutem de modos os mais diversos sobre a base social. Como se espantar que o velho Friederich Engels tenha-se posicionado contra os jovens exegetas de Marx que por vezes dão maior peso que lhe não é devido quanto ao econômico.

Uma vista d'olhos sobre a imprensa nos mostra quase quotidianamente como certa velha querela (arenga) em torno da base e da superestrutura é atual. Temos um reflexo materialista profundamente enraizado em nós, espécie de preconceito refratário a qualquer argumento. Nosso bom senso comum se apropriou de vago marxismo quotidiano; somos instados a ater-nos aos fatos, postulado da imprensa popular que ama apresentar sob forma de tabloide aquilo que toma por fatos. Durante décadas, a crítica da ideologia ganhou foros de hermenêutica da suposição (suspeita), que consiste em buscar nas gentes que alimentam outras que não as suas os motivos que realmente as animam e lhes desmascaram. Quaisquer que sejam as razões e os argumentos invocados pelo personagem em questão, são simples motivos econômicos que lhes animam.

Que alguém ouse ainda afirmar que Marx seja um cão morto. Entretanto é incontestável que na hora atual somos todos marxistas, mesmo se primitivos. Um século e meio após Marx, seu materialismo, vulgarizado, surge como uma nova teologia que faz de toda impulsão econômica uma espécie de Deus desconhecido (Gramsci) que tudo decide.

Podemos imaginar a venenosa reação de Marx a um marxismo de imbecis. Esse mesmo Marx que respondeu a discípulos franceses, do tipo eu-sei-tudo em tom doutrinário, por uma expressão que se tornou célebre: Tudo o que sei é que não sou marxista.


Mas o que é que ocorre se a força histórica da teoria da ideologia inspirada de Marx se revele justamente em suas deformações? Com efeito, se bem que esses preconceitos econômicos não constituam nunca uma aplicação do materialismo histórico, o materialismo histórico se aplica perfeitamente a eles: o fato de que muitos seres humanos não sejam capazes de pensar mais que qualquer um deles possa ser movido por outros motivos que não os materiais ilustra, talvez, o quanto nossas concepções espontâneas são tingidas de espirito capitalista.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

TANTO QUANTO NA RUSSIA de 1918.



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Rita Velloso  09/06/2013

Relatando o encontro de planejamento urbano acontecido em Recife, em maio, a pesquisadora Rita Velloso apresenta as linhas de uma crítica ao desenvolvimentismo prevalecente no planejamento da metrópole brasileira, na atual fase de expansão capitalista. Essa crítica não se estabelece ‘desde cima’, mediante soluções-planos, racionais e socializantes, concebidos de fora dos próprios processos. Mas, sim, das bases materiais onde ocorre o trabalho vivo hoje, cooperativo e resistente, isto é, dos “embates, configuracões provisórias, desejos e a potência da vida dos moradores.” Nesse sentido, se esboça uma alternativa constituinte, capaz de atravessar as formas de organização da cidade, transformá-las e atribuir uma qualidade nova às instituições. (N.E.)


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Sobre a hipótese do planejamento conflitual e as vozes de novos sujeitos políticos

Rita Velloso

Terminou em Recife na última semana de maio o encontro bianual de planejamento urbano – reunião na qual houve alta concentração de escolas, programas de pós-graduação do país e alguns pesquisadores estrangeiros viajando pelo Brasil. Foram cinco dias de muita conversa, dessa vez sob o título de XV ENANPUR – Desenvolvimento, Planejamento e Governança. Como é fácil depreender deste elenco de conceitos que o nomeiam, o tom predominante do encontro foi dado pelas falas ao redor do novo desenvolvimentismo, tema quase onipresente que incluiu desde a discussão sobre um novo macro ambiente institucional e político no Brasil até as especulações acerca do imaginário espacial do desenvolvimentismo, o qual está ancorado nos costumeiros fetiches institucionais (“as escalas múltiplas ou a região metropolitana – qual é a projeção do novo Brasil?”), não sem passar pelas tentativas de denominar o período que atravessamos ( uma transição? Um híbrido? O desenvolvi-mento como intenção?), e, obviamente, pelas ponderações sobre o projeto de inserção internacional do país baseado em sua (re)afirmação como plataforma de exploração de recursos naturais e de valorização financeira, com as implicações em desindustria-lização e ruptura de cadeias produtivas nacionais.

Molduras teóricas hegemônicas à parte, o debate mais potente do encontro foi propiciado pelo grupo de pesquisadores coordenados por Fabrício Leal de Oliveira e Carlos Vainer, cuja sessão de apresentação se denominou Planejamento e Conflito: experiências de planejamento urbano em contexto de conflitos sociais.

Já em 2011, no ENANPUR precedente, Vainer denunciava a exaustão do “participacionismo de resultados” e o planejamento refreado no impasse da participação institucionalizada, valendo-se desde então da frase de efeito que resume sua posição sobre conselhos cogestores de políticas setoriais, conselhos tripartites de cidades, conferências e planos diretores participativos – “o Brasil tem tantos ou mais conselhos que a Rússia em 1918!”. O aprofundamento da pesquisa agora apresentada evidencia uma contraposição a tal estado de coisas: o trabalho tem como fundamento a superação dos “processos ditos participativos”, na medida em que esses evocam a participação para legitimar a mediação e o contorno do conflito social, concebido como patologia ou disfunção social. Trata-se, afinal e pelos casos expostos, de fazer a conceituação de um planejamento conflitual, embora o autor insista em dizer que “não se trata de uma metodologia ou sistema” de planejamento urbano.

Não resta dúvida de que há muitos avanços no que Vainer expressa como “planejar para lutar, lutar para planejar”. Contudo, é preciso demarcar os limites dessa hipótese que, me parece, encontra seu próprio impasse justamente quando não supera alguns fundamentos tradicionais (melhor seria dizer funcionalistas) relativos à enunciação e representação dos planos e projetos componentes da pesquisa, preferindo não tencionar as possibilidades da linguagem que expressa o conflito.

No pequeno texto que apresentou a mesa redonda leio que conflitual refere-se às “formas contra-hegemônicas de planejamento que ressignificam do ponto de vista teórico-conceitual metodologias e práticas da ação planejadora em sua expressão dominante”. Tal estratégia de planejamento afirma como ponto de chegada, em primeiro lugar, o diálogo dos habitantes com técnicos e especialistas de formação interdisciplinar de modo a possibilitar que o habitante atue como planejador popular e coletivo – segundo os autores, “com domínio cognitivo de enunciação do projeto para o bairro onde mora ou espera morar”.

A considerar os discursos que acompanham a exposição oral e os documentos gráficos e imagéticos dos projetos (o plano popular da vila autódromo, no rio de janeiro; o bairro Saramandaia, em Salvador; a região metropolitana de Recife; a ocupação Dandara em Belo Horizonte) muito pouco ou nada se deixa ver desse habitante. A narrativa da pesquisa não dá conta de qualificar o termo popular, tampouco esclarece o que exatamente designa o mesmo termo. Ali ainda não se encontrou uma forma de fazer-dizer os habitantes, para além dos diagnósticos, imagens e fotografias de casas e prédios. Se o grupo apresenta o trabalho como esforço de auto planejamento urbano, como é possível narrar estudos, projetos e planos sem de fato enfrentar a dificuldade de deixar-falar os processos de luta encerrados (e de certa forma petrificados) no desenho, nas construções de pauta para os debates nas reuniões, e nas evidenciações das disputas entre grupos de moradores?

Ora, quando se trata de projetos que pretendem instalar e pensar a experiência urbana enquanto um processo político – e, se entendo corretamente, o trabalho pretende conjugar autonomia e aprendizado do/para o urbano – como é possível narrá-los sem constituir a língua do conflito, isto é, sem construir uma espécie de dizer-do-conflito, o que esteve em jogo quanto à constituição desse conjunto de novos sujeitos políticos, que coletivamente “se constrói como novo sujeito planejador, na prática mesma do conflito e do planejamento”?

Não que a descrição dos processos de projeto não se tenha feito de modo acurado, inclusive com apresentação – no caso do Rio de Janeiro- da série histórica de intervenções levadas a cabo pelos pesquisadores em diferentes situações urbanas desde 1983 até 2012. É certo que se deixa mostrar no relato os processos de acompanhamento da população pelos técnicos, a movimentação e as exigências que demarcam as atuações de defensorias públicas e ministério público junto às populações dos bairros e das favelas, a realização das oficinas, a formação de um conselho de bairro para o plano, etc.

O que se contra argumenta aqui é que toda essa demonstração dos processos não escapa aos vícios do planejamento modernista – a descrição é insuficiente, pois apresenta de modo tristemente descarnado os percursos, os embates, as configurações provisórias, os desejos e a potência da vida dos moradores. Ao fim e ao cabo, os sujeitos políticos constituídos na luta pelo próprio espaço não tem voz na narrativa dessa mesma luta, quando expressa num relato escrito e enunciado pelo planejador.

O que fazer, então, quanto a tencionar as possibilidades da linguagem que expressa o conflito? Seria necessário escrever uma narrativa radicada na assunção do conflito como linha de fratura (finíssima e profunda), a única capaz de expor o território, que de outro modo restaria escondido sob a superfície homogênea da localização. Para além de indagar onde e como se manifestam os conflitos é preciso responder o que se deixa ver através dele. A rigor, o conflito desenha o diagrama de um lugar, e o singulariza, determinando e constituindo sua mobilização enquanto território praticado. É certo que o conflito deve ser exposto enquanto processo, mas, então, será preciso se deter em seus momentos espaço-temporais de contradição, de fechamento de ciclos, suas configurações agudas, os antagonismos. Cada um desses momentos contém a possibilidade das alternativas de apropriação e reapropriacão do espaço. O conflito, por que é uma prática socioespacial, permite expor o território – mais do que traduzi-lo ou explicitá-lo – em termos das formas de vida que contém; em outras palavras, em termos da constituição produtiva do território, narrando-o como palco das lutas que criam novas formas de comunidade, novos gestos de cooperação.

Talvez esteja na linguagem a pré-condição de determinação do espaço social1, conforme especulou Henri Lefebvre. Se o conflito configura um momento da produção de um espaço social, então é na linguagem que deve-se reproduzir o desenvolvimento desse momento que finalmente será práxis espacial. As lutas travadas num dado território tem na linguagem uma questão central, por conseguinte o que tece a produção e a práxis é a comunicação em suas redes, os significados e sentidos linguísticos. O controle do sentido equivale à reapropriação da vida no todo complexo que essa é; equivale a, sem qualquer compartimentação do mundo da vida, ter livre acesso ao conhecimento, à informação, aos afetos.

Produzir a vida na linguagem; isso requer dizer e ouvir os modos pelos quais falam os sujeitos, sua gramática, os dialetos. Assim se vai além do diálogo entre técnicos, especialistas e moradores, assim se alcança, de fato, o aprofundamento da dupla hermenêutica exigida pelos habitantes e pelos usos arraigados no território.

Sobre a práxis do conflito, trata-se, como falou Antonio Negri, de pensar um constituir-se como sujeito por meio da linguagem, sujeito capaz de resistência e solidariedade.

“A linguagem é a forma principal da constituição do comum, e é quando o trabalho vivo e linguagem se cruzam, e se definem como máquina ontológica, que a experiência fundadora do comum adquire realidade.”2

Através da linguagem sempre emergirão formas originais de cooperação. Ambas, linguagem e cooperação, devem ser atravessadas pela afirmação da centralidade de uma experiência do comum que é união concreta do saber e da ação dentro dos processos do conflito.

Carlos Vainer relembra, na explanação do seu trabalho, a afirmativa de E.P. Thompson, segundo a qual “a classe operária existe por que luta, e não, luta por que existe’”. Para dar conta dos pressupostos de um planejamento conflitual, essa mesma afirmação precisa ser levada às últimas consequências– a experiência de luta dos sujeitos políticos precisa existir na linguagem – precisa encontrar sua forma de enunciação. Os encontros e as reivindicações que produzem confrontos precisam ser narrados de modo radical numa estratégia de planejamento que pretenda vetar o vigente banimento da política dos rumos da produção do espaço contemporâneo.

Fala-se, no planejamento conflitual – assumindo a terminologia da pesquisa em   questão – , da constituição de um sujeito político que faz, por meio da linguagem e do espaço, a experiência da luta. Não obstante, exige-se pensar de modo extenso esse sujeito a quem se atribui o nome popular. É que na práxis espacial e nos usos do território, à medida em que a desigualdade é experimentada, configura-se uma subjetividade capaz de resistência. Subjetividade política no sentido mais pleno, pois constrói no interior de sua vida suas alternativas de participação nas estruturas sociais, sem possibilidade de transcendê-las. E justamente essa é a força desses novos sujeitos políticos: sua capacidade de resistir, tecida no cotidiano, é não menos que um contra poder. Seu horizonte, bem ao contrário do planejador, não é puramente o da crítica, mas sim a determinação prática (material) que envolve a produtividade dos seus corpos, o valor dos afetos. Esse novo sujeito político que exercita planejar seu lugar, sua moradia, seu território o faz como militante – sua atitude de resistência não é representativa, é constituinte.

Há que se ressaltar, por fim, dentre os pressupostos do trabalho, uma das questões que pretendem dar conta de uma descrição do conflito que expõe a potencialidade do urbano, qual seja: de que maneira a desigualdade sócio espacial se expõe a partir de informações sistematizadas dos conflitos?. Ora, Carlos Vainer é muito enfático ao afirmar que o trabalho instala uma estratégia política de enfrentamento do modus operandi do Estado no que concerne ao planejamento urbano; segundo o professor, não se trata de elaborar uma metodologia para o plano mas, em última instância, de combater consultoria com consultoria – toda a equipe de pesquisa assume a posição do planejador que toma partido dos que estão em desvantagem nas argumentacões técnicas, por isso enfrentando projeto (apaziguador) com projeto (que não resolve o conflito, mas pretende expô-lo).

Na medida em que estabelece teoria e hipóteses de implantação e configuração dos lugares urbanos, fazendo a crítica à autoridade dos especialistas e da, como chamam, “ciência da definição dos espaços urbanos”, é certo que a pesquisa representa um avanço importante no campo do planejamento urbano, principalmente por que se coloca na circunstância de enfrentar tensões internas à área de conhecimento. Ainda que com todos os limites aqui apontados, é um trabalho de hermenêutica rigorosa que se desdobra em raciocinar sobre realidades constituídas e seus respectivos elementos constituintes. Mas, voltando a sua pergunta – que é, sim, metodológica – talvez Oliveira e Vainer pudessem recorrer ao que Negri chamou de pregnância prática da pesquisa para superar a descricão como método, indo na direção da já tão conhecida pesquisa-ação (“a velha tradição operária da pesquisa-ação como forma exemplar de método”3). Esboço de uma metodologia talvez cabível ao tempo atual, é a pesquisa-ação que porventura fará a prática atravessar a crítica, passando a falar de dentro, posto que não há mais um fora – o que me parece ser confortavelmente suposto na descrição. Nesse sentido, mesmo que longa, penso que vale a pena a citação:

…conhecer, mediante a pesquisa, os níveis de conscientização e de consciência dos processos nos quais os trabalhadores, como sujeitos produtivos, estavam implicados. Se eu entro na fábrica e me ponho em contato com os operários, conduzindo com eles uma pesquisa sobre as condições do seu trabalho, a pesquisa-ação consiste sim, obviamente, na descrição do ciclo do ciclo produtivo, na identificacão das funções de cada um dentro do ciclo; ao mesmo tempo, porém, é também uma avaliação em geral dos níveis de exploração que cada um e todos sofrem, da capacidade de reação que os operários têm no que concerne à consciência de sua exploração no sistema das máquinas e diante das estruturas do comando; de modo que, na mesma medida em que a pesquisa prossegue, a pesquisa-ação constrói horizontes de luta na fábrica, define linhas ou dispositivos de cooperação fora da fábrica, e assim por diante. Evidentemente, aqui existe uma hegemonia e uma centralidade da práxis dentro da pesquisa: uma práxis que permite aprofundar o conhecimento do ciclo de produção e de exploração, e que se exalta quando determinará resistência e agitação, ou seja, quando desenvolverá as lutas. Assim é praticamente possível constituir um sujeito antagonista…”4.

É esperançoso imaginar que se levadas a cabo, na conjuntura de um planejamento que não se faça acima das subjetividades criativas que são propriamente a vida urbana, as tarefas da linguagem e da pesquisa-ação transformarão determinados horizontes de compreensão. Até mesmo aquele que se contenta em resumir num bordão o esgotamento das ferramentas institucionais, os tais conselhos em número “igual ou maior que na Rússia de 1918”. Quem sabe se, com constelações de conceitos mais propensos a pensar até o fundo novas formas democráticas, novos poderes constituintes, estejamos prontos para atravessar e subverter, com uma prática potente, essa institucionalidade descarnada a que se chama ‘participação’.

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1- LEFEBVRE, H. La Production de l’espace. Paris: Anthropos, 1999, p. 16.

2- NEGRI, A. Cinco Lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.173.

 3- NEGRI, A. Cinco Lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.227.

4- NEGRI, A. Idem, ibidem.